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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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  1. ORDNUNGSPOLITIK

Em La Rebelión de las Masas, José Ortega y Gasset a dado passo escreve: El Estado contemporâneo es el produto más visible y notório de la civilización. Y es muy interessante, es revelador, percatarse de la actitud que ante él adopta el hombre-masa. Éste lo ve, lo admira, sabe que está ahí, assegurando su vida; pero no tiene conciencia que es una creación humana inventada por ciertos hombres y sostenida por ciertas virtudes y supuestos que hubo ayer en los hombres y que puede evaporarse mañana. Por otra parte el hombre-masa ve en el Estado un poder anónimo, y como él se siente a sí mismo anónimo  -  vulgo  -, cree que el Estado es cosa suya. Imagínese que sobreviene en la vida pública de un país cualquiera dificultad, conflicto o problema: el hombre-masa tenderá a exigir que inmediatamente lo assuma el Estado, que se encargue directamente de resolverlo com sus gigantescos y incontrastables médios. Éste es el mayor peligro que hoy amenaza a la civilización: la estatificacion de la vida, el intervencionismo del Estado, la absorción de toda espontaneidad social por el Estado; es decir, la anulación de la espontaneidad histórica, que en definitiva sostiene, nutre y empuja los destinos humanos. (O sublinhado é meu). Palavras pronunciadas num tempo em que, pela Europa, já se impunham, se formavam ou ameaçavam, os totalitarismos que todos conhecemos. Lembrei-me delas ao ler, no nº 737 de Le Monde Diplomatique, um artigo assinado por dois franceses (um sociólogo do CNRS e um jornalista) e uma alemã (jornalista) e intitulado L´ordolibéralisme allemand, cage de fer pour le Vieux Continent, que me fez regressar à minha circunstância intelectual em finais dos anos 60 e início dos 70, quando eu era um jovem próximo do movimento de liberalização do Estado Novo e, indigitado por Rogério Martins  -  o terminador do condicionamento industrial em Portugal  - , fui nomeado delegado do nosso país ao Comité da Indústria da OCDE, em Paris. Nesse tempo, falávamos muito de um novo liberalismo económico europeu, mais político e social, designadamente no seu modelo alemão, posto em prática, no pós-guerra, por Ludwig Erhard, ministro da economia de Adenauer (1949-63) e, mais tarde, chanceler da RFA (1963-66). O pensamento subjacente surgira, ainda no período nazi, na universidade de Friburgo-em-Brisgau, movido por intelectuais católicos e conservadores, oponentes do hitlerismo. Adiante veremos isso. Agora, parece-me interessante traduzir para aqui o início do artigo acima referido:  «Se alguém quisesse ainda provas do perigo com que os referendos ameaçam o funcionamento das democracias modernas, ei-la aqui!», fulminava o semanário Der Spiegel de 6 de Julho de 2015, logo depois do anúncio dos resultados da consulta grega. A sideração provocada na Alemanha por este retumbante «não» explica-se pela colisão frontal entre duas concepções da economia e, mais latamente, dos negócios públicos. A primeira achega, que em princípios de Julho os dirigentes gregos incarnavam, reflecte um modo de governo propriamente político. O sufrágio popular tem primazia sobre a regra contabilística, e um poder eleito pode optar por mudar as regras. A segunda, inversamente, subordina a acção governamental à estrita observância de uma ordem. Os políticos podem agir como entenderem, desde que não saiam do enquadramento, que de facto está subtraído à deliberação democrática. O ministro alemão das finanças, Wolfgang Schäuble, personifica esse estado de espírito. «Para ele, as regras têm um carácter divino», observou o seu antigo homólogo grego Yanis Varoufakis. Esta ideologia alemã mal conhecida tem um nome: ordoliberalismo. Tal como os adeptos anglo-saxões do «laissez faire», os ordoliberais recusam que o Estado falseie o jogo do mercado. Mas, contrariamente àqueles, estimam que a livre-concorrência não se desenvolve espontaneamente. O Estado deve organizá-la; deve edificar o quadro jurídico, técnico, social, moral, cultural, do mercado. E fazer respeitar as regras. É isto a «ordopolítica» ou Ordnungspolitik. Estamos assim perante uma corrente do neoliberalismo, isto é, da renovação ou revisão do pensamento liberal, que ocorreu entre as duas grandes guerras do sec. XX e divergia, na cultura austro-germânica, da tradição liberal, tal como esta era defendida por Ludwig von Mises e Friedrich Hayek, por exemplo. Curiosamente, o ordoliberalismo, apesar ou, quiçá, precisamente em razão da desconfiança na capacidade de autogoverno das massas (que, aliás, o coevo Ortega partilhava), inspirava-se também em princípios de justiça e estabilidade social, que não eram estranhos à doutrina social da Igreja e, mais tarde, alicerçaram os modelos social-democratas europeus, designadamente o alemão. Mas não vou demorar-me em considerações sobre o pensamento da chamada "Escola de Friburgo", na qual o próprio ministro Schäuble se filia, nem nas suas correspondências com outras correntes do pensamento socioeconómico. Limitar-me-ei a sublinhar que, tal como os seus actuais seguidores e praticantes hoje o defendem, ele é, certamente, um produto da cultura germânica e, como tal, encontra, alhures, críticas, discordâncias e oposições. Pessoalmente  --  e consciente das muitas virtudes que lhe reconheço  --  acho que, como qualquer olhar sobre o mundo e a sociedade, ele é susceptível de revisão, quer para se adaptar a circunstâncias diferentes, quer pelo dever democrático de respeitar a espontaneidade social, como Ortega, aliás, há quase um século vislumbrava. No seu Le Capital au XXIe siècle, Thomas Piketty dedica o capítulo que precede imediatamente as conclusões à questão da dívida pública. Aí recorda como a inflação pode ser um meio eficaz de redução da dívida pública, dado que esta é nominal, pelo que o seu valor real irá diminuindo à medida da desvalorização monetária. E escreve: Assim foi reduzida a maioria das dívidas públicas importantes na história, designadamente, no decurso do século XX, no conjunto dos países europeus. Por exemplo, na França e na Alemanha, a inflação anual foi, respectivamente, de 13% e 17%, em média, de 1913 a 1950. Foi o que permitiu a esses dois países lançarem-se à sua reconstrução com uma dívida pública insignificante no início dos anos 50. A Alemanha, em particular, é de longe o país que mais massivamente recorreu à inflação (e também à anulação pura e simples de créditos) para se desembaraçar das suas dívidas públicas ao longo da sua história. E recorrendo ao historiador alemão Albrecht Ritschl (Does Germany owe Greece a debt? The European debt crisis in historical perspective, LSE, 2012), lembra que uma parte importante da dívida alemã  -  e esta incluía custos de ocupação debitados à Grécia  -  foi pura e simplesmente anulada pelos Aliados a seguir à 2ª Grande Guerra, reportada a uma eventual unificação alemã e nunca mais reembolsada. É fácil conjeturar que a tensão entre os blocos separados pela "cortina de ferro" e a necessidade de fomentar as economias ocidentais tivessem determinado tais generosidades políticas e financeiras, através de medidas e comportamentos menos ortodoxos e mais inovadores. Tal como não será difícil imaginar como povos castigados por décadas de altas de preços e encargos de dívida, na sequência da 1ª Guerra, sentissem receio e raiva a qualquer nova ameaça de desestabilização económica, financeira e social. Já antes, na periferia europeia, a maioria dos portugueses aceitara como mal menor, ou mesmo salvador, depois da desordem da 1ª República, o Estado Novo. Mas talvez se possa hoje pedir, à opinião pública da Alemanha reunificada, uma lembrança mais clara e um entendimento mais sensato das circunstâncias em que foi socorrida e das ajudas então recebidas. Para que, por sua vez, se debruce sobre a diferente condição de outros e se interrogue sobre as necessárias e possíveis inovações políticas  --  no plano nacional como internacional, designadamente quanto à indispensável reestruturação da União Europeia e dos seus mecanismos. Já sabemos que, além de demasiado pesada e injusta para muitos, a "austeridade" vem sendo democraticamente cada vez mais contestada; também sabemos que não tem conseguido reduzir as chamadas dívidas soberanas; nem travado o crescimento do endividamento privado, nem fomentado o desenvolvimento económico e social. E, ora, será bom não esquecer que a circunstância da própria Alemanha tem evoluído muito: já não é a de um país que recebeu muitos apoios e incentivos e logo integrou a CEE, porque era necessário assegurar uma paz duradoura numa Europa desfeita por duas grandes guerras em menos de meio século, e um robustecimento económico das democracias europeias face ao desafio dos países reunidos, sob tutela soviética, pelo Pacto de Varsóvia. Hoje, a Europa conta já mais de meio século de paz e prosperidade, e a CEE passou de seis a quase trinta nações reunidas na União Europeia, integrando a periferia sul do continente e vários países emancipados do jugo comunista ; a imigração, nas economias mais abastadas, já não é só o fluxo pacífico de mão de obra necessária, mas depara-se com a chegada incessante de infelizes que não encontram, nas suas regiões de origem, nem a paz nem o trabalho e progresso que lhes proporcionem uma vida humana digna. E, à volta desta Europa cheia de novos problemas e desafios, agita-se um mundo em globalização acelerada, onde já se destacam, emergentes, novas potências políticas, económicas e financeiras, e muitas vezes se escondem conspirações e poderes do capital não controlado politicamente. Precisamos todos, Alemanha inclusive, de uma nova ordem internacional que permita e fomente um desenvolvimento económico e social mais distribuído e autónomo. O que, evidentemente, só será possível na medida em que, pacífica e construtivamente, soubermos mudar algumas regras das ortodoxias reinantes.


Camilo Martins de Oliveira