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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

O ALERTA DAS JORNADAS DO PATRIMÓNIO

Por Guilherme d’Oliveira Martins (*)

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Tenho pena que nos debates europeus sobre as saídas da crise se fale tão pouco de Cultura, de Educação e de Ciência. Muitos pensam falsamente que se trata de temas secundários, no entanto falamos do cerne da inovação e da criatividade, únicas respostas ao primado ilusório do imediatismo, da vulgaridade, da indiferença e da mediocridade que nos trouxe até onde nos encontramos. As Jornadas Europeias do Património de 2015 realizam-se com um pano de fundo dramático – o drama dos refugiados, a prevalência dos egoísmos nacionais, a incapacidade de encontrar respostas comuns que defendam a justiça e a humanidade, bem como as destruições absurdas de bens do património comum, como temos assistido em Palmyra. Como poderemos falar do Património Cultural e da sua defesa se não começarmos por cuidar das pessoas? Julien Green disse um dia que «ignorar o passado é encurtar o futuro» - e a verdade é que na tragédia humanitária a que assistimos falta consciência de passado e de presente. A noção dinâmica de Património Cultural obriga à tomada de consciência de que são as pessoas que estão em causa e que a Humanidade está ameaçada quer com as mortes dos refugiados, quer com as destruições das marcas dos nossos antepassados. Estamos perante a noção indivisível de dignidade humana. O nosso Alexandre Herculano dizia: «Nossos pais destruíram por ignorância e ainda mais por desleixo: destruíram, digamos assim, negativamente; nós destruímos por ideias, ou falsas ou exageradas. Destruímos ativamente, destruímos porque a destruição é uma vertigem desta época. Eu ficaria feliz se pudesse, ao menos, salvar uma pedra, só que fosse, das mãos dos modernos hunos». O programa era e é simples: não destruir ou deixar estragar o que existe, restaurar o que tem valor, divulgar, conservar, tornar acessível… Investir não é lançar dinheiro sobre os problemas – é escolher o que permite preservar com os meios disponíveis e da melhor maneira o que tem valor.

Nuno Bragança disse um dia: “A relação dos portugueses com Portugal é muito estranha. Estão todos de acordo em dizer mal de Portugal – e isto é uma constante que já vem de há muitos anos -, todos recusam um Portugal que obviamente existe porque eles são como são. As pessoas em Portugal têm a tendência para culpar os outros de defeitos que elas próprias também têm” («Raiz e Utopia», nº 3-4). E em “Direta” afirmava ainda: “O passado de uma nação é como o passado de uma pessoa; quanto mais remoto ele é, mais importante pode ser. Só quando uma pessoa – ou uma nação – se conhece a si própria, se pode assumir, e então escolher». Interessará, por isso, nessa relação entre passado, presente e futuro, segundo o escritor, “encontrar o passado que está presente no presente”. Falar de património cultural é isto mesmo: ter consciência de que a memória viva do que recebemos da História exige o respeito pela responsabilidade que temos de fazer da criatividade e da inovação o enriquecimento do que recebemos e legamos a quem nos sucede. A crise, cujos efeitos sofremos, deve-se ao predomínio da ilusão – em vez da capacidade de criar valor.

Identidade de várias identidades e de várias culturas, a Europa tem de recusar o egoísmo e a irrelevância que têm prevalecido. Por exemplo, «se, como é inquestionável, uma cultura nacional – ou regional – se exprime pela língua, é indispensável assegurar que as línguas serão protegidas e estimuladas através do ensino escolar desde o nível básico, da tradução, da edição, da legendagem, da dobragem, da produção audiovisual e multimédia» - como disse Helena Vaz da Silva. No entanto, para que a diversidade cultural seja preservada, é indispensável que o respeito pelas várias línguas seja garantido plenamente, sob pena de se criarem focos de tensão cultural e política. Estamos a falar de educação, de informação e de comunicação em todos os seus aspetos. Não se salvaguarda a cultura defendendo, por princípio, indiscriminadamente todas as culturas. Defende-se a cultura procurando definir medidas para cada situação e pondo-as em prática no tempo próprio. Torna-se necessário trabalhar em sólidas bases. A política do património cultural, centrada na integração, no conhecimento e na ação, deve ser articulada, como fator de coesão territorial, de integração social e de desenvolvimento sustentável, dentro das fronteiras e para além das fronteiras. E urge assumir um conceito dinâmico de fronteira, como um fator de aproximação e não de separação, como ensinava Jacek Wosniakowski. Daí a importância da criação de um quadro que permita a convergência dos ordenamentos jurídicos, de redes de bancos de dados, de sistemas de arquivos compatíveis, de catálogos partilhados, do uso de várias línguas, do desenvolvimento de itinerários culturais e da coprodução de multimédia sobre a história e o património partilhados. As Jornadas Europeias do Património põem a tónica na defesa e salvaguarda dos marcos da cultura, materiais e imateriais – os monumentos, os arquivos, as paisagens, os costumes, as tradições. Tudo obriga a deveres e responsabilidades dos cidadãos. Este ano o tema «Património Industrial e Técnico» das JEP leva-nos à consideração do diálogo entre a tradição e a modernidade, entre o artesanato e a tecnologia, numa perspetiva em que não basta a lógica da conservação, devendo entender-se a defesa do património cultural como fator ativo de desenvolvimento. A Convenção de Faro do Conselho da Europa (24.10.2005), cujos dez anos comemoraremos em breve na capital algarvia com a Universidade, abre caminhos que têm de ser seriamente desenvolvidos, articulando a defesa do património e a consideração inteligente da criação contemporânea – numa lógica de enriquecimento mútuo. Urge mobilizar recursos, realizar inventários fidedignos e estudos credíveis e envolver todos. Os Estados, a sociedade civil e a comunidade internacional têm de partilhar responsabilidades. Eis o alerta!

 

(*) Presidente do Centro Nacional de Cultura. O CNC teve a coordenação geral das Jornadas Europeias do Património, do Conselho da Europa, entre 2001 e 2005.

 

CARTAS DE CAMILO MARIA, MARQUÊS DE SAROLEA

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«From Animals into Gods» de Yuval Harari

Minha Princesa de mim: 

Quando me perguntam se tenho saudades de meu Pai  -  que perdi tão novo  -  respondo apenas que dele guardo sempre  o gosto imenso de ser humano. Aprendi com ele esse milagre que tanto me tem ajudado a viver a nossa condição : sentirmo-nos leves e pesados, pesados e leves... Habitantes do nosso tempo, curiosos da nossa eternidade. Fugindo sempre e só da impossível fuga, ganhando quando perdemos, quiçá perdendo quando julgamos ganhar. Sabendo que o que define o nosso estado é a impermanência. Ou, se quiseres pensá-lo assim, que o limite do nosso ser agora é a esperança. E seja qual for o lado pelo qual nos surpreendamos, só o amor dá sentido à fé. E à vida. Sem amor, é desgraçada a vida. A alegria de viver - que meu Pai tão radiantemente tinha - é o gosto de amarmos, de coração agradecido, tudo o que o ar que respiramos envolve. Tinha uma alma franciscana: já várias vezes te contei essas lembranças tão vivas, vindas do remoto da minha infância, de meu Pai comprar gaiolas inteiras de pássaros nos mercados, e de as abrir no grande terraço lá de casa, sobranceiro ao jardim, para que as aves voassem livres... Muitas delas iam voltando depois, para comerem a alpista que lhes deixara, dormirem ou construírem os seus ninhos. Às vezes iam à palma da mão que, aberta, lhes estendia o que procuravam. E também te falei do Rosinho, esse pombo que uma fotografia mostra empoleirado no meu ombro e que meu Pai podia despertar a qualquer hora do dia ou da noite, para o mandar arrulhar ou, até, dançar : «Canta, Rosinho, canta! Dança, Rosinho, dança!» E esse amigo, na plataforma do pombal, arrulhando, ia volteando como se cortejasse uma pomba! Este homem - que a todos os animais domésticos, como a todas as flores, plantas e árvores, do nosso jardim ou da quinta,  estendia uma ternura comunicativa - era, todavia, grande caçador e aficionado de corridas de touros. Hoje ainda, muitas vezes me interrogo sobre a minha própria paixão tauromáquica, eu que, menino ainda, percorri centenas e centenas de quilómetros para ir a corridas, com meu Pai! Que misterioso mandato genético me fará vibrar tão intensamente com a lide taurina? Nunca o percebi bem, sei só que faz parte de mim, como esses sentimentos antigos que não conseguimos objectivar nem discutir. Mas falo-te nisso agora, porque me ocorreu uma explicação, quiçá parcial, ao ler há dias o From Animals into Gods: A Brief History of Humankind do professor Yuval Harari, da Universidade Hebraica de Jerusalém. Sendo, certamente, discutíveis, a caça e a tauromaquia são dificilmente compreensíveis por critérios próprios à cultura do nosso tempo actual. Só podemos entendê-las pela perspectiva do antiquíssimo de nós. Ainda agora, a conceituada revista Science publicou um extenso artigo sobre o homem enquanto insustentável predador. Quer isto dizer que, milénios depois do sucesso da revolução agrícola, que transformou o homo sapiens, de simples colector de raízes, folhas e frutos, e caçador de animais, em cultivador agrícola e pastor ou criador de gado e animais domésticos, ele ainda é - e mais do que nunca - um predador terrestre, marítimo e aéreo. Dizem cientistas e investigadores que ele apanha 14 vezes mais peixe do que os outros predadores marítimos, e mata 9 vezes mais animais selvagens de porte (lobos, leões, ursos, etc.) do que estes entre eles. Paralelamente, sabemos que a domesticação tornou a vida de certas espécies na mais infeliz e baça à superfície da terra : normalmente, um vitelo criado em exploração intensiva de gado bovino, é alimentado em espaço fechado, onde não possa mover-se, para que a sua carne seja tenra e suculenta, e é abatido com cerca de 4 meses, altura em que, pela única vez na vida, se mexe e acompanha outros vitelos, a caminho do matadouro. E que dizer dos nossos conhecidos aviários? Assim vamos cumprindo o mandamento bíblico de submeter ao homem e suas necessidades a terra inteira e tudo o que nela vive... Pode ser chocante. Mas poderá ser de outro modo? E como? Yuval Harari traça um percurso fascinante  -  e latentemente inquietante  - da evolução do homo sapiens sobre o nosso planeta e em relação a todas as espécies que neste vivem ou viveram, incluindo, portanto, as desaparecidas ou exterminadas, como várias primitivas espécies animais de enorme porte (que eram ameaças constantes para o homem) ou primatas humanoides como os Neandertal, que surgiram na Europa e foram sendo eliminados pelo Sapiens que, oriundo da África Oriental, se espalhou pela terra inteira. A supremacia desta nossa espécie dever-se-ia ao que se chama revolução cognitiva, essa capacidade de nos diferenciarmos do mundo e transformá-lo, de inventar linguagens e imaginar mitos e regras que nos permitem comunicar e organizar, socializar. A consciência de si individualiza, abre a distância do subjectivo para o objectivo, torna-nos simultaneamente solitários e relacionais. Não mais dominados apenas pelo instinto, já nada poderá ser-nos unívoco, há sempre dúvida, interrogação, alternativa. Quantas vezes, Princesa de mim, ter-te-ei repetido essa frase do Ortega e Gasset no seu De la aventura y la caza: El hombre es un transfuga de la naturaleza? Quer dizer que transitamos, não só individualmente para a morte, mas enquanto condição, espécie humana, retomando o subtítulo do professor Harari, from animals into gods... E este longuíssimo processo, minha amiga, não se desenrola linearmente, por caminho sempre recto... A cada passo - e lá volto eu ao Ortega - somos nós e a nossa circunstância. Pelos tempos que correm - perdoa-me o reacionarismo - a circunstância será talvez, como se diz em gíria bolsista, muito volátil... Olha, pensa nas dietas, por exemplo, no que atarefados ignorantes, na malchamada comunicação social, todos os dias te vão dizendo o que podes ou deves, ou não podes e muito menos deves comer... Ai flores, ai flores do verde pinho! Como são variáveis os gostos e as afirmações, como serpenteia e até se contradiz o nosso pensamento! As regras que nos orientam e obrigam, os princípios e critérios que condicionam as nossas sensibilidades e juízos, todas essas arquitecturas mentais são, afinal, criação nossa. Não há "direito natural", o direito, todos os direitos, são definições nossas. A natureza regula-se pela emergência e curso das suas forças físicas, químicas, biológicas, pelo desenvolvimento dos seus factores genéticos. É esse o seu "direito", não tem outro. Excepcional, porque pensa e pode agir fora do determinismo natural, o homo sapiens foi imaginando, pelos tempos, as nomenclaturas e as regras que lhe servissem os entendimentos da natureza e fossem definindo os modos do seu comportamento. Assim foram surgindo esses ecossistemas que transcendem a ordem meramente biológica e a que chamamos culturas e civilizações. Mesmo quando referimos os nossos mitos e princípios constituintes - ou, acreditando numa revelação divina, até os atribuímos - a um ou vários entes superiores, teremos, objectivamente, de reconhecer, inclusive pelas suas muitas manifestas diferenças, que estes são nossos e outros de outros. Se esses princípios, verdades e valores, fossem naturais - no sentido de natureza determinada e determinante - seriam universais, iguais. Mas não são, antes se têm diversamente modelado e definido. A consciência de tal realidade fundamentará a tolerância, o diálogo e a paz. A recusa dela pode levar - e historicamente tem levado - ao totalitarismo e à guerra. E estou eu a invadir-te com esta conversa toda, só porque gosto de corridas de touros e tu não. Compreendo que te firam a sensibilidade, e até te acendam brios de defesa dos direitos dos animais, hoje tanto na moda, mas, mal ou bem, frutos da mente humana... O meu fascínio pela lide taurina habitará talvez aquela parte de mim que ainda não "transfugiu" da natureza. Sou o homo sapiens que vive num mundo que lhe é simultaneamente sustento e hostilidade, do qual ele tem consciência e no qual terá de lutar e fazer pela vida, para tanto se servindo sobretudo da faculdade que o distingue e lhe dá vantagem: a inteligência, que lhe permite adivinhar outros comportamentos e iludir ameaças e ataques. Assim sinto minha a festa tauromáquica. Sorrindo-te e rindo (de mim), ao som dum paso doble te atiro, do centro da arena, um beijo saleroso


Camilo Maria 

Camilo Martins de Oliveira