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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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ATORES, ENCENADORES - XLIII

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A MODERNIDADE DE EMILIA DAS NEVES
NA RENOVAÇÃO DO TEATRO PORTUGUÊS

Nesta série de evocações, temos sempre presente que o conceito estético de “modernidade” em arte transcende a própria cronologia. “Modernos” são os que renovaram e mantem hoje qualidade. Isto, em termos gerais: mas é evidente que na arte de representar, antes do cinema pelo menos, o conceito não é diretamente analisável: sabemos que um texto clássico é atual pela qualidade e pela problemática - mas não podemos aplicar o conceito com rigor à arte de representar, como era efetuada no passado.

A não ser pelos testemunhos diretos que nos merecem credibilidade. E nesse sentido, uma apreciação contemporânea, imediata, de figuras como Garrett por exemplo, garantem-nos a qualidade e a modernidade epocal dos artistas referenciados nessas apreciações da época, desde que quem as formula mantenha e guarde, ainda hoje o prestígio histórico e estético correspondente.

Justifica-se pois claramente, neste série de crónicas em que se alternam referências “históricas” e referências contemporâneas, a evocação da então chamada “grande Emília das Neves” (1820-1883), atriz que esteve ligada, por mérito e talento, à renovação estética e dramatúrgica do teatro português. Garrett, em carta datada de 1849, é enfático: “bem sabe que sou e sempre hei-de ser seu verdadeiro admirador”. Tratava-se então da estreia da “Adriana Lecouvreur” de Eugène Scribe, dramaturgo e libretista então em pleno prestígio europeu e que curiosamente dedicou a personagens da História de Portugal pelo menos dois textos dramáticos relevantes, ´na época de extrema modernidade, e ainda hoje de qualidade – os libretos das óperas “D. Sebastien” de Donizetti e de “A Africana” de Meyerber, esta sobre Vasco da Gama.

Não admira que Garrett se entusiasmasse com “Adriana Lecouvreur” representada por Emília das Neves: a atriz protagonizou a estreia do garretteano “Um Auto de Gil Vicente”, peça iniciática do romantismo no teatro português, no então Theatro da Rua dos Condes em 15 de Agosto de 1838. Foi também o primeiro grande desempenho de Emília das Neves, no papel da protagonista, D. Beatriz de Saboia.

Ora, passados 8 anos, o Diário do Governo publica uma Portaria com o elenco dos artistas que integram a primeira companhia do Teatro de D. Maria II (21 de Fevereiro de 1846). São 24 atrizes e atores, o melhor que haveria na época, curiosamente divididos em “artista de 1ª classe e de 2ª classe”… E não se trata de um mera lista de elenco: os artistas são devidamente caracterizados na respetiva criação artística, bem como, em muitos casos, o teatro e a companhia de onde provêm.

Repita-se, são os melhores nomes da época, com prestígio ainda hoje evocado nos estudos da especialidade. E Emília das Neves é a primeira atriz citada com uma referência também muito da época: “Emília das Neves e Sousa, primeira dama absoluta; vinda do Condes”. Esta lista é transcrita na íntegra por Ana Isabel B. Teixeira de Vasconcelos, que precisamente salienta a carreira da então jovem Emília, “cuja vida percorreu praticamente todo o século XIX” e cujos admiradores “não poupavam esforços para a ver representar tendo mesmo comportamentos de adulação”! (in “O Teatro em Lisboa no Tempo de Almeida Garrett”, ed. Museu Nacional do Teatro - 2003, de onde transcrevemos também as opiniões de Garrett e a imagem de Emilia das Neves.

Por seu lado, Sousa Bastos, no “Dicionário do Teatro Português” (1908) identifica quase 100 peças protagonizadas, ao longo da longa carreira, por Emília das Neves: e lá encontramos de facto todo o teatro que, na transição do romantismo duro e puro para os primeiros sinais de realismo, marca a dramaturgia sobretudo portuguesa e francesa, como era habitual na época, mas também os grandes clássicos.

E finalmente: Gustavo de Matos Sequeira analisa a escritura celebrada pela Jovem Emília das Neves em 30 de Dezembro de 1846 com a então chamada Sociedade Artística do Teatro de D. Maria II. São cerca de 15 cláusulas contratuais, que vão desde a natureza e escolha do repertório à estrutura das temporadas (10 meses e máximo de 14 peças/ano), encargos de guarda-roupa, direito de “franquear o camarim a quem quisesse”, não ser obrigada a cantar em cena… e sobretudo, um honorário muito significativo para a época: “só a Srª Emília recebia por ano, pelo seu contrato especialíssimo, 2.500$000 reis com dois benefícios garantidos de 500$000 reis cada um (isto rendendo a casa quatrocentos) afora outras condições que correspondiam, indiretamente, a novos encargos” diz-nos Matos Sequeira (in “História do Teatro Nacional D. Maria II” vol. I - 1955).

Era dinheiro, na época! Por aqui se vê também o prestígio da atriz, então com 26 anos de idade!

 

DUARTE IVO CRUZ