VIAJAR E VER
4. SÃO PETERSBURGO
Fundada por Pedro, o Grande, em 1703, foi elevada a capital em 1712, deixando de o ser em 1918, após a revolução bolchevique de 1917. Conhecida por “Janela sobre o Ocidente”, uma vez inspirada em ideias e novidades arquitetónicas que o seu fundador assimilou e importou do ocidente europeu, situa-se nas margens do rio Neva, junto ao Golfo da Finlândia, no Mar Báltico, sendo também conhecida por Petersburgo, outrora Petrogrado e Leninegrado. Cidade imperial, mágica, heroica e mártir, é mais celebrada, de momento, como capital cultural e monumental da Rússia, sendo o seu centro histórico património mundial da humanidade. Residência da corte e família imperial, em mais de duzentos anos, foi um dos centros culturais europeus mais aclamados, com habitantes famosos, como Pushkin, Nikolai Gogol, Dostoievsky, Tchaikovsky, Ivan Pavlov, Malevich, Anna Pavlova, Stravinsky, Vaslaw Nijinsky, Anna Akhmatova, Prokofiev e Shostakovich. Atento o historial e currículo, a expetativa era elevada.
Alguns quilómetros percorridos, dão-me uma sensação agradável, de uma metrópole cosmopolita, com dignidade e personalidade. Atravesso a periferia avistando canais, pontes, as águas do Neva e seus afluentes, barcos e táxis aquáticos, por entre edifícios apalaçados, palácios aristocráticos, cúpulas, torres e agulhas erguidas para o céu, com realce para a sumptuosa cúpula dourada da Catedral de Santo Isaac. Na Avenida Nevsky há uma profusão de edifícios e estilos, do barroco ao neoclássico e moderno, numa zona central cosmopolita, de inegável interesse arquitetónico, histórico, comercial, turístico e cultural. Um cartão e sala de visitas da capital imperial da antiga Rússia, como avenida (e rua) mais imortalizada e famosa do país. Instalo-me e sou bem recebido, nesta alegre, histórica e movimentada artéria, com tudo em redor. Com o resto do dia disponível em família, recolho informações sobre um restaurante próximo de qualidade. Considerando que o almoço fora substituído por uma alimentação ligeira, aceitámos a sugestão de um muito bom, tido como acessível para ocidentais. Eis que, aí chegados, nos sentámos em cadeiras almofadadas e de braços de encosto, num restaurante de mesas atoalhadas, decoradas com flores e velas brancas em castiçais de prata. Com revestimentos em mármore e madeiras trabalhadas, entre tons brancos, amarelados e acastanhados, candeeiros florais suspensos pelas paredes, simulando magias, encantos e iluminações noturnas, num cenário encantatório e romântico. Sem pressas, fazendo o culto da contemplação e conversação, apreciámos e saboreámos o menu, por entre surpresas do chefe e da casa. De preço acima da média para a maioria dos russos, foi medianamente acessível para nós, com custos bem superiores se pago em euros no nosso país. Gastronomia e refeições assim são pontuais. Mas compensam e memorizam-se. Ficámos surpreendidos quando atendidos por um empregado, fardado a rigor, que só falava russo, apesar da ementa disponível em inglês, socorrendo-nos ocasionalmente de um colega seu. Vanguardista, ostensivo, de um novo-riquismo algo despropositado, era o revestimento a mármore, em várias cores, da casa de banho masculina, além de molduras com desenhos e gravuras nas paredes, torneiras douradas, enquadramento artístico de um espelho e plasma com desfiles de design e moda.
Dia seguinte, visita obrigatória à Catedral de S. Pedro e S. Paulo, singular obra-prima do barroco, exteriormente um todo de elegância pela harmonia, leveza, combinações, linhas e proporção das formas, encimada por um anjo-catavento, sobre uma agulha dourada de 122 m de altura, cujo interior, riquíssimo, me lembrou igrejas barrocas italianas, atualmente panteão dos czares, para onde recentemente trasladados os restos mortais do último Romanov e família. À saída, numa capela lateral, cânticos ortodoxos num canto devocional de natureza religiosa, louvando o divino. Entre tantos turistas, divulga-se o trabalho e recolhem-se receitas. Seguiu-se a Catedral de Santo Isaac, na era soviética um museu do ateísmo, grandiosa e monumental, imponente e majestosa, no exterior e interior, cuja cúpula, dourada e esplêndida, domina toda a cidade, abundando em obras de arte, desde os ícones de mosaico na iconóstase, ao vitral de Cristo em Majestade, pinturas, colunas de granito vermelho, malaquite, lápis-azuli, minerais e pedras preciosas. Assemelha-se mais, no conjunto, a outras congéneres do ocidente, que à arquitetura ortodoxa. Na praça Santo Isaac, aprecia-se também o monumento a Nicolau I, o palacete neoclássico onde viveu o enciclopedista francês Diderot, a convite de Catarina II, e a atual Câmara Municipal. De tarde, a Igreja do Sangue Derramado, no local onde o czar Alexandre II foi assassinado, em 1881. Já fechada, admirei o exterior. Pelas cúpulas, justaposição de materiais e cores, forma e porte, lembrou-me a Catedral de S. Basílio, em Moscovo, embora menos imponente. Foi chamativo um mercado local, tipo feira, contíguo, de artesanato e recordações. Adquirimos, após regateio, três marcantes e pequenas aguarelas. Procurámos as bonecas matryoshka, inserindo-se umas nas outras, desde as tradicionais e mais clássicas, às de chefes políticos soviéticos, russos, mundiais, de escritores, compositores e futebolistas, entre estes Cristiano Ronaldo. A oferta é contínua, desde caixas Palekh, ovos Fabergé, samovares, objetos da época soviética, lacados, vestuário, postais, livros, caviar, vodka. Quem vende, além de russo, fala inglês, alguns espanhol, outros algum português, francês, italiano. Ouve-se um bom dia, boa tarde, obrigado/a, em face da nossa nacionalidade. Sintoma da maior abertura de São Petersburgo ao exterior, ao invés de Moscovo, mais fechada, mas com mais viajantes, pelo que me disseram. Mais homens de negócios, empresários, industriais e políticos, e não turistas, predominando estes em Petesburgo.
Novo dia, nova visita, ao Palácio Imperial de Pedro, o Grande, em Peterhof, a 30 kms de São Petersburgo, rivalizando com o de Versalhes, com acesso interior pela escadaria principal de Rastrelli. Há uma sucessão de aposentos imperiais, rivalizando entre si, destacando-se a sala do trono, salão de honra e de refeições de gala. Novidade e deslumbramento não tive, pois já visualizara aposentos reais e imperiais parecidos ou superiores. O apogeu do triunfalismo imperial surge com a beleza, imponência e magnificência da Grande Cascata, alimentada por nascentes subterrâneas, composta de 37 esculturas de bronze dourado, 64 fontes e 142 jatos de água saindo de dragões, leões, peixes, tritões, descendo dos terraços até ao canal marinho e mar, tendo como peça modelar uma escultura de bronze dourado de Sansão a dilacerar a garganta de um leão, evocando a vitória da Rússia sobre a Suécia. Há outros motivos de interesse, em que o mais popular é a fonte do guarda-chuva, que improvisa partidas com “chuva” quando alguém se aproxima. No regresso à urbe, o arrefecimento e tempo chuvoso prejudicaram um cruzeiro por canais e rios, com o uso de cobertores e guarda-chuvas na parte aberta do navio. Mas era noite de ópera, no celebérrimo Teatro Mariinsky (Kirov, para os soviéticos). De imprevisto e quase em cima da hora, suprimos obstáculos com ajuda logística da guia local russa. Restava antecipar uma refeição ligeira e familiar, frustrada num snack-restaurante em que a alegada celeridade não se compadecia com a nossa. Aceite, em desespero, a sugestão jovial (da Primogénita e Benjamim) de uma oferta célere, globalizada e adaptada ao consumismo velocista, fomos atendidos e libertos em 20 minutos. Em cena “La Forza Del Destino”, de Verdi, cantada em italiano, um drama de amor contrariado que acaba em tragédia e morte, dado que a força do destino, no seu determinismo, assim quis. Os belíssimos cenários e executantes não desiludiram, a que acresce uma sala emblemática e memorável do mundo das artes, incluindo o ballet. Seguir-se-ia o Hermitage, com três milhões de peças, em vários edifícios, onde pontua o Palácio de Inverno, que foi residência oficial dos czares. Entrada pela monumental escadaria principal, em estilo barroco, obra-prima de Rastrelli, seguindo-se salões, salas, galerias, um pavilhão, as loggias de Rafael e os aposentos do museu, findando com a arte de pintura europeia dos séculos XIX e XX. Retive o notável Pavilhão em ouro e mármore branco, belíssimo em tudo: colunas, teto, chão, candelabros, adornos, mesas, desenhos embutidos, o excecional relógio-pavão de James Cox. As colunas e vãos de malaquite, portas douradas, tetos, cores e parquet a condizer na sala do trono. Após tanto ver, e numa outra visita ao majestoso exemplar do barroco russo do palácio imperial de Tsarkoe Selo, o que mais me seduziu foi a excecional originalidade duma sala totalmente revestida a âmbar. É uma recriação, à base de fotografias, dado que a inicial foi desmontada a mando dos nazis, cujo conteúdo e valor deslocalizarem para lugar incerto. Sem esquecer a Catedral de S. Nicolau, de Nossa Senhora de Kazan, de Santo André, de Smolnny, Mosteiro Alexander Nevsky, Museu Russo, Ponte dos Leões, Egípcia, Anichkov e da Trindade, Almirantado, colunas Rostral, o Cavaleiro de Bronze e o Monumento à Vitória na sua evocação austera e solene aos herois e sobreviventes do cerco de Leninegrado. E a influência das mulheres e czarinas Isabel e Catarina II, misticismo, poderes paranormais e influência de Rasputine na corte russa, notória ocidentalização iniciada pelo fundador que perdura, onde a influência soviética é menos institucional e marcante que em Moscovo. Por confronto com a capital, falaram-me em desemprego, vi pedintes, alguns cidadãos negros.
Gratificante haver uma jovem guia russa falando a nossa língua, que interpelei quanto à sua omissão de Ribeiro Sanches e Luísa Todi, frequentadores da corte de Catarina II, aquele como médico da czarina, a segunda como cantora lírica das mais célebres de sempre. Constou-lhe ter havido um médico luso de Catarina, nada sabendo da cantora de Setúbal, prometendo investigar. A guia de Moscovo falara neles, apesar de melhor inseridos em Petersburgo, onde habitaram. Aludidos o vinho da Madeira e ilha do Pico (Açores), já conhecidos e consumidos pelas elites russas no tempo dos czares. E os Madre Deus, conhecidos pela guia, à semelhança da de Moscovo.
Pode entender-se que cidades assim deslumbram e esmagam pelo seu excesso, dado que tudo o que é excessivo cansa, embacia e turva os sentidos, a começar pela vista, ofuscando-a ou perturbando-a. Não foi isso que senti, mas sim, no geral, encantamento e fascínio, tocando-me os sentidos. Mas compreendo que exista uma expetativa mais elevada para nos maravilharmos ao conhecemos, de antemão, outros patrimónios arquitetónicos e culturais no mesmo patamar (ou subjetivamente superiores), confrontando o que vimos com o que vemos, ou o inverso. Em Petersburgo sucedeu-me de tudo, numa multiplicidade de sensações que justificam mais que uma visita. Mas não duvido que vale a pena visitar São Petersburgo.
Impressões pessoais de São Petersburgo, em Agosto de 2009
Texto revisto em 5 de Outubro de 2015
Joaquim Miguel De Morgado Patrício