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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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A VIDA DOS LIVROS

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De 12 a 18 de outubro de 2015

«O Islão e o Ocidente – A Grande Discórdia» de Jaime Nogueira Pinto (D. Quixote, 2015) é uma obra necessária e de grande oportunidade, que faz uma análise histórica e um enquadramento dos acontecimentos atuais com grande rigor e pormenor, que permitem uma compreensão informada do momento.

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UMA RELAÇÃO MUITO DIFÍCIL
A capa do livro reproduz os Quatro Cavaleiros do Apocalipse, de Mathias Gerung (1532), dando o tom geral não apenas das ameaças vividas em todos os tempos (representadas pelo turco), mas também da necessidade de uma compreensão mútua ditada pelos desígnios fundamentais de uma Humanidade criada à semelhança de uma Providência una. Longe de simplificações, o autor procede a uma criteriosa descrição dos diversos fatores que é preciso considerar quando falamos do complexo diálogo entre o Islão e o Ocidente. E se referimos a complexidade, não podemos esquecer diversos momentos desse diálogo, que oscilam entre uma rica complementaridade e a agudização de uma violenta conflitualidade. No fundo, ao estudarmos a realidade, chegamos à conclusão de que não deve haver fatalismo sobre a impossibilidade de caminhos de convergência, num sentido do desenvolvimento humano. As dificuldades não devem ser iludidas, o conhecimento mútuo tem de ser exigente, uma cultura de paz e de dignidade deve ser partilhada – para o que há passos muito seguros a dar no sentido de compreensão das diferenças e de reconhecimento da liberdade de consciência. «Se quisermos evitar a catástrofe do confronto e da Guerra de Civilizações, o único caminho é tentar conhecer e compreender, com realismo, astúcia, paciência e humildade, a nossa própria história, cabeça e sensibilidade do outro e dos outros, sem amálgamas nem preconceitos, agindo com firmeza mas respeitando a importância e a presença da transcendência e do sagrado e evitando a imposição dialética de dogmas ou descrenças».


FAZER A RECONCILIAÇÃO
Ahmed Abbadi, presidente da Liga dos Ulemas de Marrocos, põe o dedo na ferida: «É tempo de pôr em marcha um movimento de equidade e reconciliação inter-civilizacional para que possamos sarar as feridas do passado – que são recíprocas e que se vão sedimentando nos nossos subconscientes. Temos de fazer esse exorcismo, essa reconciliação; sair da tensão em que hoje vivemos e voltar à interdependência e ao reconhecimento mútuo». O Estado Islâmico (ISIS, Islamic State of Irak and Syria) e o chamado Califado, construídos com a invocação sunita do Islão histórico e com o apoio de populações descontentes, sob o comando de um tal Abu Bakr al-Baghdadi, dominaram na Primavera de 2014 cerca de 100 mil quilómetros quadrados numa zona de grande instabilidade política, alardeando um clima de terror, de morte e de destruição. Para se compreender a raiz dos conflitos no seio dos Islão, entre sunismo e xiismo, temos de ir à morte do Profeta Maomé, em 632, e à sua sucessão. Sucedeu-lhe um companheiro próximo, Abu Bakr, cujo califado apenas durou dois anos, a este sucedeu Omar, outro companheiro do profeta, que nos dez anos de califado conquistou a Síria, a Palestina, o Egipto e a Mesopotâmia. Com a morte de Omar, um conselho de seis membros escolheu Osman do clã dos Omíadas de Meca. Entretanto, Ali, primo, companheiro e genro de Maomé, casado com a filha Fátima, apesar de ter votado em Osman, não gosta da escolha de um membro da comunidade que perseguira Maomé e resistira ao Islão. Osman viria a ser morto na sequência da disputa do poder e Ali foi aclamado como califa em junho de 656, o que abriu um conflito que chega até hoje. Os Omíadas da Síria comandados por Muawia consideraram que Ali era responsável pela morte de Osman e em 661 Ali seria assassinado em Kufa, nas margens do Eufrates, na sequência do que Muawia far-se-ia aclamar Califa em Jerusalém. Lançou-se então na perseguição dos descendentes de Ali. Hassan, o neto primogénito do profeta, renunciaria ao Califado e Hussein, o outro neto de Maomé, tentou resistir sem sucesso, tendo sido decapitado em Karbala e enterrado em Damasco.


UM POVO DE PENITENTES…
Símbolo do xiismo, Hussein tornou-se exemplo de um inglório martírio, arrastando os seus apoiantes («Penitentes») para a culpa de não terem permitido a sua vitória. Até ao século IX (d. C.) os descendentes de Hussein sucederão na liderança dos xiitas, enquanto os califas Omíadas alargarão as conquistas de um modo impressionante e rápido: depois de saírem das fronteiras da Arábia, em 633, tomaram Damasco em três anos; Jerusalém em cinco; a Síria, Palestina e Egipto em oito; em 20, todo o Império Persa até ao Oxus; e em 30, o Afeganistão e a maior parte do Punjab… Foram feitas tentativas em Constantinopla, sem sucesso, e Cartago apenas cairia em 693, sendo fácil o avanço daí até ao Atlântico. Em 711, aproveitando a crise dinástica visigótica, Tariq ibn Zaid, iniciaria a conquista da Península Ibérica. O motivo da velocidade da marcha muçulmana tem a ver não só com a cavalaria muito rápida mas também a tolerância dos conquistadores para com as populações cristãs e judaicas. Após o domínio Omíada, sucede o tempo dos Abássidas (século VIII) que corresponde a um período áureo no Islão, no tempo de Harun al-Rashid, o califa das «Mil e uma Noites». No século XI os turcos seljúcidas conquistam Bagdad e derrubam os Abássidas. Alexandria, Antioquia e Jerusalém ficam em poder do Islão – apenas escapam Constantinopla e Roma… A História é conhecida, as Cruzadas não permitem aos reinos cristãos impor-se, Frederico II de Hohenstaufen na quinta cruzada aceita que os muçulmanos controlem os lugares santos e salvaguarda o acesso pelos cristãos a Nazaré e Belém, pelo que é excomungado pelo Papa…


ESPAÇOS DE CONFRONTO
Os principais espaços de confronto do Islão com a Cristandade foram, sobretudo depois da conquista de Constantinopla (1453), o Mediterrâneo Oriental e os Balcãs. E até ao século XIX os corsários muçulmanos mantiveram-se ativos a partir de Túnis e Argel, enquanto os portugueses, no Império do Índico (por exemplo com Albuquerque) sustentaram até tarde a antiga tensão político-religiosa. Em momentos como o da Batalha de Lepanto (1571) os monarcas cristãos uniram-se contra a «Sublime Porta» (símbolo do Palácio do Grão-Vizir em Istambul), mas houve inúmeras oscilações, até ao fim dos grandes impérios e à eclosão das guerras mundiais do século XX. Lawrence da Arábia foi símbolo de uma estratégia ambígua de «Entente Imperial» e de recolonização, depois há o nacionalismo árabe, os novos tempos do Islão do fim do século XX, as tempestades no deserto, o grande ataque, a guerra de sombras, as Primaveras Árabes e as grandes incertezas atuais… Todos sabemos que não é fácil encontrar saídas pacíficas, uma vez que, a cada passo, encontramos a emergência de dogmatismos de negação, que mais não conseguem do que acirrar o radicalismo e a irracionalidade. No entanto, nesse sentido, o Papa Francisco (como os seus antecessores) tem-se dado conta do alto risco do momento, apelando ao diálogo entre as religiões abraâmicas, o que obriga a humildade, paciência e boa vontade. Há, pois, um longo caminho a percorrer, perante o carácter explosivo da situação política no Mediterrâneo Oriental – de que o problema dos refugiados é uma consequência.

 

Guilherme d’Oliveira Martins