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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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ATORES, ENCENADORES - XLV

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UMA CRIAÇÃO DE GARRETT: GIL VICENTE ENCENADOR

Já aqui evocamos Garrett ator: e não foram poucas as intervenções nas suas próprias peças, desde escolar de Leis em Coimbra, a dirigir, em 1819, os ensaios da Mérope”, primeira peça completa que nos legou; ou em 1821 no ”Catão”, estreado no Teatro do Bairro Alto, ou no “Impropeto de Sintra” representado em 8 de abril de 1822 na Quinta do Cabeço em Sintra; ou, mais tarde e mais exigente no desempenho, o papel de Telmo Pais na estreia do “Frei Luís de Sousa” na Quinta do Pinheiro em Lisboa, 4 de Julho de 1843, contracenando com um dos grandes nomes da cena da época, a atriz Emília Kruz, que fez a D. Madalena de Vilhena.

E podemos também recordar a reforma do teatro português, elaborada por Garrett em 1836 e consagrada por Portaria de D. Maria II datadas de 15 de Novembro daquele ano, a qual lança as bases da estrutura da formação e profissionalização do setor teatral, que ainda hoje perduram.

Mas o que hoje aqui evoco é a convergência digamos assim de Garrett e de Gil Vicente nas funções de criação do espetáculo, numa curiosíssima antevisão do que viria a ser – tal como temos aqui evocado, nesta série de artigos – o papel e a intervenção do encenador na criação do teatro-espetáculo.

É em “Um Auto de Gil Vicente”, primeira peça “de fundo” de Garrett, “Drama representado pela primeira vez em Lisboa no teatro da Rua dos Condes, em 16 de Agosto de MDCCCXXXVIII” diz a edição da época. Aí encontramos 22 personagens, entre eles, o próprio Gil Vicente, Bernardim Ribeiro, Paula Vicente, Garcia de Resende e atores e atrizes envolvidos na primeira representação de As Cortes de Júpiter” perante a corte de D. Manuel I.

Estamos perante uma reconstituição do ensaio do espetáculo, dirigido – hoje diríamos encenado – pelo próprio Gil Vicente, e tendo como protagonista, diríamos hoje também, a Paula Vicente.

Evoquemos pois esse ensaio inicial. Desde logo, a intervenção do “encenador Gil Vicente”, que refere em síntese o teor da peça e orienta os atores:

«Gil Vicente - (…) Vamos. - Porte, dignidade, - um ar majestoso e grande. As ”Cortes de Júpiter” é o título da nossa comédia. Deuses e deusas: não há outra gente aqui. Paula, tu sabes que és a “Providência”, que vais ordenas a Júpiter que chame a cortes os regedores de todas as coisas, o deus do mar, o dos ventos, da guerra, Sol, lua, estrelas.»

E segue-se a cena do ensaio, entremeada com as galanterias - expressão mais dos tempos de Garrett do que dos nossos tempos! - de Bernardim Ribeiro dirigidas a Paula Vicente:

«Bernardim – Providência! De molde lhe vai a esta altivez natural e génio sobranceiro. – Dizia-me Pêro que ereis a Lua/ Paula – Não me contento de luz emprestada, senhor cavaleiro./ Bernardim – Porque da própria sabeis quanto brilha».

E continua o ensaio, com uma clara direção de atores por parte de Gil Vicente, com transcrições do Auto e com intervenções dos próprios atores. Mas a grande protagonista desta cena é na realidade a Paula Vicente, que reage com impaciência às orientações de Gil Vicente e aos avanços de Bernardim.

«Paula – Deixemos esse tom de galanteria, senhor cavaleiro. Não vos fica bem a vós e sabeis que não me agrada a mim. (…) O meu papel todo agora! Isso é impossível. Tirava-me a ânimo de o repetir logo. Demais o tendes ouvido todos. Fazei de conta que está dito.»

E noutra fala: «Praz-lhe ao Senhor Bernardim Ribeiro zombar de nós e da nossa humilde profissão.”

Segue o ensaio, com uma crescente indisposição de Paula Vicente, que imita e critica os próprios colegas: assim, na sequência das indicações aos outros atores, e da intervenção de Pero Sáfio, no papel de Marte, em transcrição rigorosa do auto vicentino intercalada pelos comentários de Gil Vicente/Garrett:

«Paula (interrompendo-os e parodiando o tom da declamação): - É a Providência divina que está secadíssima de ouvir as conversas sensabores destes deuses pagãos, ordena que vos caleis já, e guardeis isso para logo.”

Ora bem: esta simbiose, permita-se o termo, entre classicismo e romantismo, ou, se quisermos, esta visão romântica do teatro clássico, esta interpretação de Gil Vicente feita por Garrett, constitui, na síntese de épocas e estilos, um documento notável no ponto de vista estético, mas também cronológico, da evolução histórica do teatro, e neste caso, a partir de dois nomes cimeiros da nossa literatura dramática, Gil Vicente e Garrett. E ambos marcam de que maneira a época, a estética técnica dos atores e dos encenadores, no século XVI, no século XIX e no século XXI!

E uma nota final: ao publicar em 1841 a peça “Um Auto de Gil Vicente”, Garrett fá-la anteceder de longa Introdução, onde traça uma interessantíssima teoria geral do teatro português e do teatro em Portugal. Dela destacamos as passagens que se seguem, até porque em muitos aspetos não perderam atualidade:

«Em Portugal nunca chegou a haver teatro: o que se chama teatro nacional, nunca (…) O teatro é um grande meio de civilização mas não prospera onde a não há. Não têm procura os seus produtos enquanto o gosto não forma os hábitos e com eles a necessidade. (…) Depois de criado o gosto público, o gosto público sustenta o teatro”.

No seu tempo, com a sua obra e com a sua intervenção, Garrett, muito ajudou a criar o hábito, o gosto, a necessidade – e a qualidade!

DUARTE IVO CRUZ