A FORÇA DO ATO CRIADOR
António Costa Pinheiro e a pintura memorável.
‘Uma ambição que acredito ter: desconfiar permanentemente de todas as formas de criação que possam levar a uma espécie de ‘sujeição mental’’, Costa Pinheiro
Vindo de Lisboa, António Costa Pinheiro (1932-2015) instalou-se pela primeira vez em Munique, em 1957. Logo após a exposição ‘Vier Maler aus Portugal’, que participou com Lourdes Castro, René Bertholo e Gonçalo Duarte, Costa Pinheiro decidiu não regressar a Lisboa, estabelecendo-se na cidade alemã com Gonçalo Duarte. Em Munique, teve a possibilidade de estudar e aprender nas oficinas gráficas da Academia de Belas Artes. Encontrou um ambiente liberal, no bairro Schwabing (centro dos artistas) onde Ludwig Grote comissariava as animadas exposições que se faziam na Haus der Kunst. Em 1960, ganha uma bolsa da Fundação Gulbenkian, muda-se para Paris passa a colaborar na revista KWY. Em 1962, desloca-se a Portugal e é preso na fronteira pela polícia política. Só em 1963 regressará a Munique.
Jürgen Claus escreve, no catálogo da exposição ‘KWY, Paris 1958-1968’, que Costa Pinheiro criava através de uma imaginação poética. E é uma poética rigorosa, que tem um objeto escolhido, específico e um decidir livre, e que por isso faz perturbar qualquer ditadura. Segundo Claus, a evolução da pintura de Costa Pinheiro deu-se no sentido de adquirir mais precisão e de ter maior rigor poético.
Costa Pinheiro inicia os anos sessenta com uma pintura gestual e experimental mas que rapidamente evolui para uma pintura de fragmentos de uma realidade que se quer memorável (como se verifica em ‘Paisagem Portuguesa’ (1964), ‘Outra Realidade’ (1964), ‘V Paisagem Absurda’ (1964) e ‘Esta Paz Moderna’ (1964)). O vocabulário formal, aqui utilizado, é denso, variado, texturado, rasurado, ambíguo e narrativo onde flutuam personagens (também históricas, como na série dos Quadros Históricos (1964) da qual fazem parte: ‘O Rei menino não voltou’, ‘Alcácer Quibir’, e ‘El-Rei D. Sebastião’), legendas inscritas e diversas forças da natureza. Nestas pinturas, Costa Pinheiro tenta descrever algo fora do seu tempo, através de uma figuração subtil, invulgar, recortada e misteriosa que parece divinizar o inacreditável. Estas composições, acima de tudo imaginadas – onde vários planos internos correspondem a distintos acontecimentos – tentam, através da memória, explicar mitos e ensaiar a determinação de uma identidade. Foi sobre estas bases iconográficas que Costa Pinheiro construiu toda a sua pintura.
Ora, na série de ‘Os Reis’ (que o consagrou), apresentada pela primeira vez em Munique, em 1966, Costa Pinheiro desejava criar uma antologia histórica imaginada e contribuir para a criação de uma nova cultura visual. ‘Os Reis’ (de D. Afonso Henriques a D. Sebastião) são verdadeiros ícones, em irónicos modelos de cartas de jogar. Através desta série, o artista desenvolveu um alfabeto imagético singular e único fundado em lendas, tradições, emblemas, insígnias, motivos anatómicos, elementos da natureza e invenções pessoais. As mãos dos reis são, por exemplo, de uma grande multiplicidade – os dedos ora são plantas ora tamborilam sobre a superfície de uma esfera. Também os olhos fazem parte destes motivos – transformam-se em pássaros, corações, cruzes e animais. Costa Pinheiro diviniza os seus reis, como de deuses e heróis se tratassem. Em ‘Costa Pinheiro’, de Bernardo Pinto de Almeida (2005), lê-se que ‘Os Reis’ resultaram de uma aturada investigação, que invocava um aprofundamento de origens – por um lado, na tentativa de descrever o entendimento da natureza do distanciamento em que o artista vivia e por outro ao explorar uma inventariação mitográfica de uma tradição portuguesa perdida. Costa Pinheiro trabalha, assim, a memória de um país (através da sua própria memória) expondo ‘o avesso de uma representação oficial que se esboroava a pouco e pouco, sem que alguém se lembrasse de lhe dar espessura ou consistência, uma dignidade, em que os portugueses se reconhecessem diversos. (Os Reis) Formaram no seu conjunto um cortejo poderoso.’ (Bernardo Pinto de Almeida, 2005).
Terminada a série dos reis, Costa Pinheiro abandonou a pintura por um período de tempo e em 1968, distribuía o projecto Citymobil, em policópias nos corredores do metropolitano de Munique.
Ana Ruepp