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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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COM ÉMILE ZOLA E GEORGES BERNANOS

4.   N O V A   C A R T A   Q U A R T A

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Minha Princesa de mim:

Começo a escrever-te esta, perguntando-me já se nela caberá toda a conversa que, na minha peregrina cabeça, imagino ter contigo. Caminhei, longa e demoradamente, de mãos dadas com o Zola do caso Dreyfus e o Bernanos da guerra de Espanha. Sem preconceitos nem partidos, atento apenas à verdade interior que deve inspirar a honestidade intelectual com que olhamos para os factos e para os confrontos humanos. Lembrei-me muito dessa afirmação do monárquico Bernanos: Há uma burguesia de esquerda e uma burguesia de direita. Não há povo de esquerda nem povo de direita, há só um povo. E logo me ocorreu que esse sopro anima o Pas pleurer, romance de memórias de Lydie Salvayre, prémio Goncourt de 2014, filha de republicanos espanhóis refugiados em França, e que escreveu este livro entrelaçando as recordações de guerra de sua mãe, Montserrat Monclus Arjona, doméstica, com as de Bernanos em Les Grands Cimetières sous la lune... Traduzo-te aqui o resumo dos factos da guerra civil espanhola, que ela faz naquela obra: A deceção do povo espanhol perante as medidas dilatórias tomadas pela jovem República e as vacilantes vontades do seu Presidente,

   o denegrir furioso dessa República por uma Igreja insolentemente poderosa, provida de bancos insolentemente poderosos e de empresas insolentemente poderosas,

   a associação mafiosa do episcopado com os militares e as classes possidentes, a fim de melhor defender os seus próprios interesses,

   o seu santo furor face às apressadas reformas conduzidas pelo governo para estabelecer a laicidade e o casamento civil,

   o seu desejo fanático de travar contra essas reformas uma Guerra Santa em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo,

   a raiva desesperada da grande burguesia perante a criação de um imposto progressivo sobre o rendimento, aumentada pelo ódio dos grandes latifundiários perante eventuais confiscos,

   a sua aversão feroz ao socialismo e ao seu sulfuroso igualitarismo e o susto com a ideia de que o povo pudesse revoltar-se,

   a revolução ardentemente desejada pelas esquerdas radicais desde a violenta repressão pelo governo das greves de 34 na região das Astúrias,

   todos estes elementos resultaram na divisão da República una e indivisível em dois campos (cada um deles puxando a si a História para a confiscar em seu proveito): de um lado uma frente dita popular composta das diferentes esquerdas que bem cedo se entrebateram para acabarem por se entredestruírem, e do outro uma frente dita nacional formada pelas direitas coligadas, das mais respeitáveis às mais extremas, surdas à voz de um povo exausto por décadas de miséria, e que recusavam inclinar-se perante a nova república obtida por sufrágio universal.

Há neste texto sumário uma intuição iniciadora dessa interrogação que é, afinal, o sentimento de justiça. Porque, contrariamente ao vulgo, fazer justiça não é dar razão às razões de um vencedor, é procurar  - e dever  -  dar a cada um o seu direito. Quem não entender isso nada poderá compreender do cristianismo. Até o perdão concedido é  -  no final de contas  -  o reconhecimento, também, da culpa ou falta ou imperfeição de quem perdoa. Recordando citações de Bernanos, que te traduzi em carta anterior,  há um só pecado, e um povo só. Os fins nunca justificam os meios, as eventualidades não nos justificam nem condenam. A estas horas, o papa Francisco, vindo de Cuba, está nos EUA, e aí se confronta com uma direita conservadora (até há quem pense que ele é comunista!), que, curiosamente, sendo sobretudo de raiz fundamentalista protestante e puritana, lembra certas intolerâncias católicas, que se vão repetindo e de que é, com grande sacrifício de vidas humanas, de espírito de justiça e caridade cristã, lamentável exemplo o comportamento da maioria do episcopado espanhol durante a guerra civil.  A única sanção do cristão é o amor do humano, dignidade e vida, sem o qual não existe amor de Deus. Não sei, Princesa, se perceberás bem o que te digo, através deste trecho dos Grands Cimetières que aqui transcrevo porque, mutatis mutandis, reflecte o que eu mesmo, quiçá homem de direita, em circunstâncias várias penseissenti:

Por ingénuas que sempre tenham sido as gentes de direita, ou poderoso o instinto que as leva a infalivelmente escolher as causas e os homens desde logo fadados para a impopularidade, talvez hoje me concedam que a guerra de Espanha perdeu o carácter de uma explosão do sentimento nacional ou cristão. Quando, na primavera passada, tentava prepará-los para certas  decepções, riram-se-me na cara. Agora, já não se trata de explosão, mas de incêndio. E um incêndio que já dura há dezoito meses começa a merecer o nome de sinistro, não acham? Vi, vivi em Espanha, o período pré-revolucionário. Vivi-o com um punhado de jovens falangistas, cheios de honra e de coragem, cujo programa eu não aprovava inteiramente, mas que era animado, tal como o seu nobre chefe (José-Antonio Primo de Rivera, 1906-1936), por um sentimento violento de justiça social. Afirmo que o desprezo que eles professavam pelo exército republicano e os seus estados-maiores, traidores do seu rei e do seu juramento, igualava a sua justa desconfiança de um clero perito em negociatas e disfarces eleitorais efectuados a coberto da Acción Popular e por interposta pessoa, o incomparável Gil Robles. Perguntar-me-ão "Que aconteceu a esses rapazes?" Meu Deus, vou dizer-vos! Não chegavam a quinhentos em Maiorca, na véspera do pronunciamento. Dois meses depois, eram quinze mil, graças a um recrutamento desavergonhado, organizado pelos militares interessados em destruir o Partido e a sua disciplina. Sob a direcção de um aventureiro italiano chamado Rossi, a Falange tornara-se na polícia auxiliar das Forças Armadas, sistematicamente encarregada das tarefas baixas, enquanto aguardava que os seus chefes fossem executados ou aprisionados pela ditadura, e os seus melhores elementos despojados dos seus uniformes e atirados à tropa. --  Mas, como diz Kipling, isso é outra história. Seja onde for que o general do episcopado espanhol ponha agora o pé, a mandíbula duma caveira fechar-se-á sobre o seu calcanhar, e ele terá de sacudir a bota, para se libertar! Boa sorte para Suas Senhorias!

Para Bernanos, escritor católico, monárquico (toda a vida o foi), catalogado à direita (e oriundo da Action Française), a visão de crimes cometidos em nome de Deus e da Pátria não é moralmente sustentável sem protesto firme e arriscado da sua consciência cristã. Nas ilhas Baleares, onde mora, ele sabe que "os cruzados de Maiorca" nome que dá aos franquistas, vão, pela calada da noite, às casas das famílias  a quem roubarão maridos e pais e filhos, para os levar, com prisioneiros feitos nas trincheiras, "como gado até à praia", onde os fuzilam "sem pressa, besta a besta" e, na presença de padres que lançam absolvições in hora mortis, "os amontoam  --  gado absolvido ou não  --  " e regam com gasolina, para os queimarem. E, com a santa fúria de uma consciência cristã, acrescenta: É bem possível que essa purificação pelo fogo tenha então revestido, em razão da presença dos padres de serviço, um significado litúrgico. Infelizmente, só dois dias depois vi esses homens negros e lustrosos torcidos pelas chamas, e dos quais alguns mostravam na morte poses obscenas, capazes de entristecer as senhoras de Palma e os seus distintos confessores... Bernanos sabia bem  --  e disse-o  --  que, do lado republicano,  se cometiam também muitas barbaridades: sacrificaram-se inocentes, violaram-se freiras, assassinaram-se padres. Mas esse terrorismo não se escondia, expunha-se. Escândalo maior, para ele, enquanto e porque católico, era a pretensa justificação de outro terrorismo, igualmente nojento, perpetrado com a bênção da hierarquia da Igreja espanhola, e que era depois negado ou ocultado pelos seus autores. Mandava a hipocrisia que culpados fossem só os outros...A estatura moral de Bernanos constrói-se pela sua íntima fidelidade à sua fé cristã, que o leva a pôr sempre acima de simpatias e opções ideológicas ou políticas o valor universal da caridade  --  que não é uma esmola, mas sim o respeito devido à dignidade de todos e qualquer ser humano. É esse resistente amor a Deus através dos homens que distingue Bernanos do católico Claudel que apoiava o franquismo em tudo, ou do comunista Neruda, adorador de Estaline, que comungava com os sequazes bolcheviques no ódio aos cristãos e também às outras esquerdas espanholas.  Disse-te, Princesa, que esta conversa não caberia numa carta. Antes de me despedir, deixa-me todavia dizer-te que Hannah Arendt, na sua análise das origens do totalitarismo, tem um capítulo sobre o caso Dreyfus. Como aperitivo da próxima carta, deixo-te umas citações... Para ela, o caso Dreyfus é muito mais um caso político do que propriamente um processo judicial: Quando Dreyfus morreu, em 1935, a imprensa, por medo, não comentou a questão. Só os jornais de esquerda voltaram a referir-se à inocência de Dreyfus, enquanto os de direita retomaram as acusações de culpa. Ainda hoje, mesmo que em menor escala, o caso Dreyfus divide politicamente a França. Tal como a guerra de Espanha teima em continuar a ser pomo de discórdia entre espanhóis, ela que dramatizou o confronto entre oposições e partidarismos europeus: de nacionalistas e internacionalistas, socialistas e capitalistas, anarquistas e comunistas... Mais ainda do que ter prefigurado a 2ª Grande Guerra, essa em que a aliança táctica entre as potências que, mais tarde, sustentariam os dois blocos opostos da guerra fria derrotou os totalitarismos nazi e fascista que haviam apoiado a rebelião franquista. O diabo é, literalmente, aquele que divide, separa. Por isso mesmo, os representantes da Igreja visível  --  sobretudo aqueles que são seus pastores  --  não devem esquecer-se de que Deus une, pelo amor. Não persegue nem agride, antes vai em busca e acolhe as ovelhas transviadas. A Igreja não é de esquerda nem de direita, não tem partido ou facção política, deve só procurar promover o diálogo e o respeito mútuo. Mas vamos então aos anunciados passos de Hannah Arendt, que julga ter o prejuízo causado a um só judeu (Dreyfus) em França levantado mais indignação em todo o mundo do que todas as perseguições a judeus alemães uma geração depois. E acrescenta: Os protagonistas do caso pareciam ter saído das páginas de Balzac: de um lado, os generais classistas procurando freneticamente encobrir os do seu grupo e, do outro, o adversário deles, Picquart, com a sua honestidade tranquila, clarividente e algo irónica. Paralelamente, estava a malta indefinida dos parlamentares, cada um deles receando o que o vizinho pudesse saber.  O presidente da República, conhecido cliente dos bordéis de Paris; e os juízes que tinham o processo em mãos e funcionavam em função da sua promoção. Logo a seguir, o próprio Dreyfus, um oportunista, gabarola, falando muito da fortuna familiar e de mulheres...   ... E que dizer de Zola, cheio de exaltado fervor ético, atitudes patéticas e fúteis, como quando, em vésperas do exílio em Londres, declara ter ouvido a voz de Dreyfus a pedir-lhe esse sacrifício? Pessoalmente, penso que Zola sofreria , talvez, desses arrebatamentos retóricos  très XIXème siècle, mas mesmo assim  -- quiçá discordando de Bernanos  -- respeito e admiro a sua declaração de 21 de Fevereiro de 1898: Dreyfus est innocent, je le jure. J´y engage ma vie, j´y engage mon honneur. Penso que cumpriu. Poderei discordar de coisas que ele disse ou escreveu, sobretudo sei que não teríamos a mesma perspectiva de olhar o mundo, mas nada disso retira ou diminui o respeito que me merece o seu livre pensamento e a sua coragem. Fica para outra carta. Beijo-te a mão

                            Camilo Maria 

 

Camilo Martins de Oliveira