ATORES, ENCENADORES - XLVII
UMA REFERÊNCIA HISTÓRICA AOS PRIMEIROS “ATORES” PORTUGUESES
As Histórias do Teatro Português são unanimes em atribuir a dois jograis portugueses, em finais do século XII, a primeira referência documental referente ao espetáculo entre nós celebrado e como tal reconhecido e devidamente compensado, o que aponta para o ano de 1193 o início da profissionalização devidamente reconhecida. Diz um documento recolhido por Santa Rosa de Viterbo e citado por Teófilo Braga na sua obra clássica “Gil Vicente e as Origens do Teatro Medieval”, e depois transcrita, glosada e até retraduzida ou completada em sucessivas obras de análise e historiografia, até hoje.
Diz então o documento, na transcrição de Viterbo:
“No ano de 1193, el-Rei D. Sebastião, com sua mulher e filhos, fizeram doação de um casal, dos quatro que a coroa tinha em Canelas de Poiares do Douro, ao histrião ou bobo Bonamis e a seu irmão Acompaniado, para eles e seus descendentes”.
E mais acrescenta o documento uma espécie de quitação:
“Nós, mimos acima referido, devemos ao Senhor nosso Rei um arremedilho para efeitos de compensação”.
Com variantes e com alguma controvérsia interpretativa, que incide particularmente sobre a própria transcrição/modernização do texto integral, este documento é realmente considerado o primeiro testemunho de um atividade, insista-se, não tanto de teatro como de espetáculo, sendo certo, entretanto, que os “mimos ou histriões” não devem ser encarados como meros travadores ou bobos da corte, usando a expressão mais corrente: o desempenho envolve uma criação dramática, elementar que fosse.
E em qualquer caso, Teófilo, na sempre citável História do Teatro Português, lança hipóteses de expressões adequadas à criação de texto-espetáculo medieval, mesmo que o texto fosse incipiente. E interroga-se, e cito, se “começaria o teatro português pelas pantomimas rudes e não conheceria nunca o nosso povo outra forma, por isso que a única forma de designação inventada por ele fosse a palavra bonifrate (nome puramente português dos espetáculos a que os espanhóis chamaram títeres e os franceses marionettes)” (in “História do Teatro Português” vol. I - Imprensa Nacional Editora - Porto 1870).
A historiografia do teatro português desenvolve várias hipóteses de formulação dos géneros de texto - espetáculo na Idade Média, abrangendo desde as expressões populares às mais sofisticadas, (diríamos hoje…) manifestações na corte. Mas se deslocarmos a análise, não tanto para os espetáculos mas para a dramatização de textos, mesmo que não concebidos diretamente para a representação cénica, encontramos uma tradição que remonta aos Cancioneiros Medievais e que antecipa a consagração de texto-espetáculo do séculos XV/XVI e à consagração e transição do medieval para o renascentista em Gil Vicente.
Vejamos então, para terminar, a dramaticidade, no sentido de “teatro implícito” no diálogo conflituoso de mãe e filha nesta “cantiga” do trovador Pedro Meogo:
“MÃE – Digastes, filha, mia filha querida: /porque tardastes na fontana fria?/ Digastes, filha, mia filha louçana/ Porque tardastes na fria fontana?/ FILHA - Tardei, mia madre, na fontana fria/ cervos do monte a água volviam./ Tardei, mia madre, na fira fontana/ cervos do monte volviam a água./ MÃE – Mentir mia filha, mentir por amigo./ Nunca vi cervo que volvesse o rio./ Mentir mia filha, mentir por amado/ Nunca vi cervo que volvesse o alto./Os amores ei”…
É espetáculo? Diretamente não: mas é diálogo - e potencialmente, todo o diálogo é espetáculo, sobretudo quando põe em confronto situações diretamente dramatizáveis. E o confronto da mãe e filha a partir de um amor oculto e contrariado, aqui expresso num ritmo dialogado, potencialmente dramatizável e eminentemente conflitual, constitui germe do espetáculo que Henrique da Mota e sobretudo Gil Vicente iriam em breve consagrar.
DUARTE IVO CRUZ