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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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ATORES, ENCENADORES - XLVI

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EVOCAÇÕES A PROPÓSITO DA ESTREIA DE IRENE CRUZ

Recordo o início da carreira de Irene Cruz quando frequentou, a partir de 1958, o Conservatório Nacional. Na época, a chamada Secção de Teatro era dirigida por Fernando Amado, que tinha a seu cargo direto as cadeiras de Estética Teatral e de Arte de Representar e Encenação. Essa viria a ser articulada com Álvaro Benamor na complementação do profissionalismo de carreira: e ambos marcaram profundamente o ensino e a formação artística e profissional dos alunos.

Permita-se uma nota pessoal. Nesse ano de 1958 comecei a escrever sobre teatro na imprensa. Acompanhei diretamente esse período do Conservatório, frequentando a cadeira de Filosofia do Teatro de Gino Saviotti, num horário que conciliava com a Faculdade de Direito. Assistia a muitas aulas de outras disciplinas: e não esqueci a experiência que era participar, no mesmo dia, a uma aula de Paulo Cunha, Marcello Caetano ou Adelino da Palma Carlos de manhã e a uma aula de Fernando Amado, Gino Saviottti ou Álvaro Benamor à tarde…

Nesse tempo, havia uma espécie de acordo do Conservatório com a Companhia Rey-Colaço Robles Monteiro, que encaminhava alunos ou recém-licenciados para o Teatro Nacional D. Maria II. E nesse contexto, a estreia de Irene Cruz remonta a espetáculos de Fernando Amado na Casa da Comédia e mais ou menos na mesma época, à “Visita da Velha Senhora” de Francis Durrenmatt no TNDMII, na temporada de 1958-59.

Assisti a todos esses espetáculos: e da Casa da Comédia já aqui muito temos falado. Em qualquer caso, “A Visita da Velha Senhora” constituiu na época uma extraordinária revelação, inclusive porque representou uma renovação de repertório com base num elenco consagrado mas que, na época, não se salvava de críticas de rotina própria e alheia. E no entanto, o texto de Durrenmatt com Amélia e Raul de Carvalho nos protagonistas foi no mínimo uma inesperada “revelação” de quem levava já algo como meio século de carreira… e esteve em cena meses com enorme sucesso de crítica e público.

A então muito jovem aluna Irene Cruz participava neste elenco, Simultaneamente ou sucessivamente, trabalhou com Couto Viana no Teatro do Gerifalto e designadamente na Companhia Nacional de Teatro – Teatro da Trindade, onde contracenou com Benamor a partir de 1961 no “Príncipe de Homburgo” de Kleist, “espetáculo digno, numa realização por vezes notável (…) (n)um ritmo excelente, de uma beleza plástica frequentemente admirável”, escrevi na época: e passados estes anos, a recordação de um grande espetáculo mantem-se.

Mas Brecht marca a careira de Irene Cruz ao longo de décadas, novamente no TNDMII com a “Mãe Coragem e os seus Filhos” em 1986, mas sobretudo no Teatro Aberto, companhia que fundou com João Lourenço em 1982, e que levará à cena designadamente “A Alma Boa de Setzun”, novamente a “Mãe Coragem”, “A Ópera dos Três Vinténs” e mais largas dezenas de peças quase sempre de autores do século XX, e isto praticamente até hoje.

E também sobre o Teatro Aberto muitas vezes escrevi, designadamente assinalando “a transformação de grupos e companhias independentes e experimentais em projetos estáveis, sólidos e consistentes de profissionalismo de exigência cultural (…) na tradição do Teatro Estúdio do Salitre e do Teatro Experimental do Porto” entre outros mais que de fato marcaram e marcam a renovação da cultura teatral portuguesa.

DUARTE IVO CRUZ

LONDON LETTERS

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Much a do, 2015

A agitação política eleva-me para a biblioteca, sinal concludente de que nestes tempos incertos talvez seja fatal regressar às trincheiras culturais em defesa de algo maior que a tranquilidade. Começa o formal debate in/out que algures até 2017Untitled 2.jpgculmina no referendo europeu. — Chérie! L'argent est un bon serviteur mais un mauvais maître. O dedo vagueia por títulos familiares em busca da quilha do baixel para apartar as ondas. Declino a veia do ativismo, retiro para fora o que é de abandonar e detenho-me em inspiração serena: Mr Michael J Oakeshott (1901-90), aquele mesmo que rejeita a oferta da Companion of Honour para o qual é proposto por TRH Margaret Thatcher. Primeiro ensaio a ler é o On being conservative. Tão agradável quanto as últimas delícias de Dowton Abbey. — Well. The real battle is to make time for what really matters. O congresso do SNP reúne em Aberdeen enquanto coreografa em dó maior e menor a cantata do neverendum. O US President Barack Obama decide manter 10,000 soldados no Afghanistan em 2016, sob aplauso do Gen David Petraeus. O líder chinês Mr Xi Jinping visita London. The Magna Carta vai viajar até Lisboa.

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Some showers within mainly dry days por The Great London. As melhores notícias, first of all. Boa fonte informa que o Magna Carta Trust e o Foreign Office selecionam Portugal como um dos países eleitos para receber um dos quatro manuscritos existentes de documento fundacional da liberdade atlântica. O evento comemorará simultaneamente os 800 anos da carta selada em Runnymede (Surrey) pelo Bad King John com os barões do reino, em 1215, como também celebrará a mais velha aliança política ocidental — radicada num primevo acordo de paz e amizade entre Edward III of England e D. Fernando I de Portugal, em 1373, posteriormente lacrado com perpétuos laços diplomáticos e de defesa mútua no Treaty of Windsor, de 9 May 1386, assinado agora pelo novo rei D. João I a casar com Lady Philippa da House of Lancaster. A qualidade deste nó luso-britânico é tal que, cedo, durante a II WW (1939-45), Sir Winston S Churchill o invoca junto do Governo do Professor Oliveira Salazar na proteção do Free World e para garantir a neutralidade ibérica.

Se a nobre e leal Lisboa entra assim no 800th Magna Carta Global Map, também a silver city with the golden sands do North Sea pontua nos domésticos party games. A temperatura está elevada. Seis Tory Cabinet ministers exigem ao Prime Minister David Cameron o EU free vote. No Labour, Mr Jeremy Corbyn tenta debelar as primeiras rebeliões com efeitos no Parliament. Os Liberal Democrats de RH Tim Farron seguem missing in action. O Scottish National Party agrupa no Aberdeen Exhibition and Conference Centre o magote de deputados e militantes saídos das legislativas da primavera. No discurso a triunfante congresso da First Minister RH Nicola Sturgeon sobressai a escala dos ganhos eleitorais e ainda a linha do combate aos rivais de Westminster, i.é: os Conservatives e os Labourites, em robustecida agenda anti austeridade. O SNP resguarda-se agora para uma eventual desfiliação do reino unido na European Union; com quanto daqui possa então resultar para obter novo referendo local sobre a independência. No mais, e quando quem mexe fronteiras bate no paradoxo do euro princípio do free movement, a Northern exposure: Holyrood quer abolir a House of Lords.

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 And now something new. Suffragette é já um dos 2015 British movies, apesar de só esta semana chegar às salas londrinas mas após todo um ano de calendário político-comercial. O drama roda em torno das militantes do voto feminino no dealbar de 900 e tem o adicional de contar com Mrs Meryl Streep (three-time Holywood Academy Award winner) num brevíssimo papel da lendária Mrs Emmeline Pankhurst (1858-928). Sob a direção da Bafta's Sarah Gavron e com argumento de Mrs Abi Morgan, autora do filme The Iron Lady (2011) e ainda da série televisiva The Hour, o elenco é de luxo: Helena Bonham Carter, Brendan Gleeson, Geoff Bell, Romola Garai, Ben Whishaw, Anne-Marie Duff, Samuel West e a resoluta Carey Mulligan são alguns dos protagonistas que revivem momentos marcantes no UK do movimento Votes for Women entre os ecos dos vivos e acesos debates na House of Commons. O trailer circula online à volta do globo. Do screening que vi, gostei, da luz e fotografia aos movimentos da câmara. O sorriso chega também quando se ouve a cinevoz de Lady Thatcher/Streep a clamar o “never surrendeer, never give up the fight.” Um filme poderoso para tempos em que a superpotência norte-americana tem duas senhoras como sérias candidatas a ocupar o Oval Office de Washington DC, em tendência que progressivamente alastrará até à margem de cá do oceano. — Hmm! The right thing lasts.

St James, 19th October
Very sincerely yours,
V.

A VIDA DOS LIVROS

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De 19 a 25 de outubro de 2015

«Guerra e Paz – 1614-1714» de Jordi Savall, com Hespèrion XXI, Le Concert des Nations e La Capella Reial de Catalunya é um conjunto de interpretações e de reflexões da responsabilidade dos grupos animados pelo grande músico catalão que nos transportam a um tempo à herança musical histórica, à defesa do património imaterial, da cultura da paz e do respeito da dignidade humana.

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TRABALHO ADMIRÁVEL

A atribuição do Prémio Europeu Helena Vaz da Silva para a Divulgação do Património Cultural a Jordi Savall constitui o reconhecimento de um trabalho intenso e admirável de uma personalidade notável, de um artista e de um cidadão que, no âmbito da música, tem sabido ilustrar e desenvolver um conceito dinâmico de defesa e preservação da herança e da memória históricas como realidades vivas, nas quais o passado é enriquecido no presente para poder projetar-se no futuro como mais-valia. Falar de património cultural é isto mesmo: ter consciência de que a memória viva do que recebemos da História exige o respeito pela responsabilidade que nos levará a fazer da criatividade e da inovação o enriquecimento necessário do que recebemos e legamos a quem nos sucede. Se na atribuição dos prémios da Europa Nostra e do Centro Nacional de Cultura, em anos anteriores, Claudio Magris e Ohran Pamuk representaram, no domínio da literatura, a demonstração de como a memória obriga a tornar ativo, pela narrativa, o diálogo entre o código genético que recebemos, como acervo multifacetado, e a capacidade de sermos nós próprios, enriquecendo o que recebemos, Jordi Savall completa essa mensagem, ligando a arte à síntese fecunda que resulta do diálogo entre culturas e gerações.


SENTIDO LIBERTADOR DA CULTURA

Jordi Savall conta-nos como, nos já distantes anos sessenta, descobriu a magia e a força do «Requiem» de Mozart, na Escola de Música de Barcelona. Como o Danúbio e Istambul, dos anteriores premiados, é a música antiga, agora, que dá sentido libertador à cultura. «Era inverno, chovia, fazia frio, eu tinha uma pequena gabardina, um cigarrito, e estava bêbedo de alegria. Disse então “Vou economizar para comprar um violoncelo”». Depois nunca mais parou, encontrou-se, em 1965, com Montserrat Figueras, violoncelista como ele, no Conservatório de Barcelona, com quem casa três anos mais tarde, depois de ela o ter integrado no Ensemble Barroco Catalão, «Ars Musicae», onde tocava o seu próprio pai de Figueras. Nascido em Igualada, na Catalunha, a 1 de agosto de 1941, filho de um republicano, empregado numa pequena fábrica industrial, Jordi beneficiou do contacto precoce com a melhor música religiosa na escola católica que frequentou. Mas o essencial da obra deste espiritualista laico passou pela sensibilidade única, que cedo começou a cultivar, para descobrir na música antiga motivos fantásticos de beleza e de humanidade. Lembremo-nos do belo filme, premiadíssimo, de Alain Corneau, «Tous les matins du monde», segundo o romance de Paul Quignard, marcado pela música que Savall concebeu e interpretou, em que a viola de gamba, caída em desuso no século XVIII, renasce em todo o seu esplendor, com nostálgica sensualidade, e surpresa de todos. Como tem sido referido, Savall fez renascer a memória barroca com tal força, que quase nos esquecemos de que o seu primeiro disco foi de 1975, depois de um denodado trabalho de estudo, aprendizagem e ensino na Academia de Música Antiga de Basileia. O conjunto Hespèrion XX e XXI, como La Capella Reial de Catalunya e Le Concert des Nations têm uma marca muito forte de Jordi Savall e de Montserrat Figueras. E a lógica da partilha de talentos e de uma incansável investigação está bem presente. «Gostaria que os meus músicos continuassem para além de mim. Aprenderam a fazer um som e isso pode sobreviver».


IMPROVISAÇÃO NÓMADA

Fazer viver um som, usufruir sons ou êxtases, eis o que entusiasma o mestre, fascinado pela ideia de tornar o património herdado uma realidade que permanentemente se recria numa espécie de «improvisação nómada». Que faziam os velhos «aedos» na Antiga Grécia, senão cantar as epopeias, refazendo-as permanentemente, até a uma cuidadosa maturação? A Ilíada e a Odisseia assim começaram. As «Vésperas da Beata Virgem» de Monteverdi demoraram dois anos para ser gravadas por Jordi Savall, e foram-no numa noite: «trata-se do espírito de duende. São experiências que não se fazem às quatro da tarde, entre duas pausas sindicais». O mesmo aconteceu com a sinfonia «Heróica» de Beethoven, cuja invocação fúnebre foi gravada ao raiar da aurora, pois de outro modo não poderia sentir-se adequadamente a dimensão trágica. Jordi Savall cultiva várias épocas e diferentes culturas, desde a Idade Média a Beethoven, envolvendo influências orientais e ocidentais, do norte e do sul, do Atlântico e do Mediterrâneo… «A Catalunha tem nos seus genes uma conivência cultural, espiritual e humana entre os mundos árabe, judeu e cristão. Tocar estas músicas populares ou eruditas, foi sempre para mim uma atitude natural». Mas que significa esta «naturalidade»? Um esforço muito exigente e rigoroso de investigação, de estudo e de busca incessante das raízes. Daí a noção novíssima de património, como realidade que se atualiza e renova, que se enriquece e desenvolve, permanentemente! Não por acaso, Jordi Savall invoca figuras históricas, como D. Quixote, Cristóvão Colombo, Joana d’Arc, e lugares marcantes, como Jerusalém, Istambul, Arménia e Síria…


CIDADANIA ARTÍSTICA

Estamos perante a cidadania que nos conduz a uma música informada pela História. No entanto, «a História não é o que se pensa conhecer. A sua memória nos livros torna-se abstrata. Para a música, porém, a memória pode tornar-se viva. Só a emoção nos torna responsáveis por um mundo que herdámos e que devemos legar aos vindouros». Eis por que razão o prémio europeu reforça uma vocação multímoda e inovadora. Para o «gambista comprometido» (como lhe chamou «Le Monde», na entrevista que temos vindo a seguir, 26.9.2015), as causas da paz, da liberdade e da dignidade não podem ser alheias à defesa genuína do património como realidade que articula arte e vida, sendo material e imaterial, obras e tradições. Pensemos no trabalho relativo às «Rotas dos Escravos» - pondo em contacto as músicas antigas do México, da Colômbia, do Brasil, do Mali, de Marrocos ou de Madagáscar… «O contacto com esses músicos para quem a música ficou como um modo de sobreviver é vital para mim» - confessa Jordi Savall. «Graças a eles, toco melhor as Suites de Bach ou “Le Tombeau – Les Regrets» de Sainte-Colombe»… De facto, a defesa do património cultural envolve sempre direitos e deveres, autonomia e responsabilidade, conhecimento e compreensão – direitos a usufruir e a entender; deveres a proteger e a salvaguardar; autonomia como singularidade, responsabilidade como recusa de indiferença; conhecimento do outro e das diferenças, compreensão de que pede a nossa atenção e cuidado. Quando Dostoievski, em «O Idiota», põe na boca de Hipólito a pergunta ao Príncipe Michkine se haverá uma beleza que salve o mundo, não há uma resposta, apenas silêncio. Mas na nota a «Guerra e Paz», Savall responde com clareza: «cremos, como Antoni Tàpies, numa arte que seja útil à sociedade, uma arte que pela beleza, a graça, a emoção e a espiritualidade possa ter o poder de nos transformar e possa tornar-nos mais sensíveis e mais solidários»…

Guilherme d'Oliveira Martins

COM ÉMILE ZOLA E GEORGES BERNANOS

4.   N O V A   C A R T A   Q U A R T A

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Minha Princesa de mim:

Começo a escrever-te esta, perguntando-me já se nela caberá toda a conversa que, na minha peregrina cabeça, imagino ter contigo. Caminhei, longa e demoradamente, de mãos dadas com o Zola do caso Dreyfus e o Bernanos da guerra de Espanha. Sem preconceitos nem partidos, atento apenas à verdade interior que deve inspirar a honestidade intelectual com que olhamos para os factos e para os confrontos humanos. Lembrei-me muito dessa afirmação do monárquico Bernanos: Há uma burguesia de esquerda e uma burguesia de direita. Não há povo de esquerda nem povo de direita, há só um povo. E logo me ocorreu que esse sopro anima o Pas pleurer, romance de memórias de Lydie Salvayre, prémio Goncourt de 2014, filha de republicanos espanhóis refugiados em França, e que escreveu este livro entrelaçando as recordações de guerra de sua mãe, Montserrat Monclus Arjona, doméstica, com as de Bernanos em Les Grands Cimetières sous la lune... Traduzo-te aqui o resumo dos factos da guerra civil espanhola, que ela faz naquela obra: A deceção do povo espanhol perante as medidas dilatórias tomadas pela jovem República e as vacilantes vontades do seu Presidente,

   o denegrir furioso dessa República por uma Igreja insolentemente poderosa, provida de bancos insolentemente poderosos e de empresas insolentemente poderosas,

   a associação mafiosa do episcopado com os militares e as classes possidentes, a fim de melhor defender os seus próprios interesses,

   o seu santo furor face às apressadas reformas conduzidas pelo governo para estabelecer a laicidade e o casamento civil,

   o seu desejo fanático de travar contra essas reformas uma Guerra Santa em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo,

   a raiva desesperada da grande burguesia perante a criação de um imposto progressivo sobre o rendimento, aumentada pelo ódio dos grandes latifundiários perante eventuais confiscos,

   a sua aversão feroz ao socialismo e ao seu sulfuroso igualitarismo e o susto com a ideia de que o povo pudesse revoltar-se,

   a revolução ardentemente desejada pelas esquerdas radicais desde a violenta repressão pelo governo das greves de 34 na região das Astúrias,

   todos estes elementos resultaram na divisão da República una e indivisível em dois campos (cada um deles puxando a si a História para a confiscar em seu proveito): de um lado uma frente dita popular composta das diferentes esquerdas que bem cedo se entrebateram para acabarem por se entredestruírem, e do outro uma frente dita nacional formada pelas direitas coligadas, das mais respeitáveis às mais extremas, surdas à voz de um povo exausto por décadas de miséria, e que recusavam inclinar-se perante a nova república obtida por sufrágio universal.

Há neste texto sumário uma intuição iniciadora dessa interrogação que é, afinal, o sentimento de justiça. Porque, contrariamente ao vulgo, fazer justiça não é dar razão às razões de um vencedor, é procurar  - e dever  -  dar a cada um o seu direito. Quem não entender isso nada poderá compreender do cristianismo. Até o perdão concedido é  -  no final de contas  -  o reconhecimento, também, da culpa ou falta ou imperfeição de quem perdoa. Recordando citações de Bernanos, que te traduzi em carta anterior,  há um só pecado, e um povo só. Os fins nunca justificam os meios, as eventualidades não nos justificam nem condenam. A estas horas, o papa Francisco, vindo de Cuba, está nos EUA, e aí se confronta com uma direita conservadora (até há quem pense que ele é comunista!), que, curiosamente, sendo sobretudo de raiz fundamentalista protestante e puritana, lembra certas intolerâncias católicas, que se vão repetindo e de que é, com grande sacrifício de vidas humanas, de espírito de justiça e caridade cristã, lamentável exemplo o comportamento da maioria do episcopado espanhol durante a guerra civil.  A única sanção do cristão é o amor do humano, dignidade e vida, sem o qual não existe amor de Deus. Não sei, Princesa, se perceberás bem o que te digo, através deste trecho dos Grands Cimetières que aqui transcrevo porque, mutatis mutandis, reflecte o que eu mesmo, quiçá homem de direita, em circunstâncias várias penseissenti:

Por ingénuas que sempre tenham sido as gentes de direita, ou poderoso o instinto que as leva a infalivelmente escolher as causas e os homens desde logo fadados para a impopularidade, talvez hoje me concedam que a guerra de Espanha perdeu o carácter de uma explosão do sentimento nacional ou cristão. Quando, na primavera passada, tentava prepará-los para certas  decepções, riram-se-me na cara. Agora, já não se trata de explosão, mas de incêndio. E um incêndio que já dura há dezoito meses começa a merecer o nome de sinistro, não acham? Vi, vivi em Espanha, o período pré-revolucionário. Vivi-o com um punhado de jovens falangistas, cheios de honra e de coragem, cujo programa eu não aprovava inteiramente, mas que era animado, tal como o seu nobre chefe (José-Antonio Primo de Rivera, 1906-1936), por um sentimento violento de justiça social. Afirmo que o desprezo que eles professavam pelo exército republicano e os seus estados-maiores, traidores do seu rei e do seu juramento, igualava a sua justa desconfiança de um clero perito em negociatas e disfarces eleitorais efectuados a coberto da Acción Popular e por interposta pessoa, o incomparável Gil Robles. Perguntar-me-ão "Que aconteceu a esses rapazes?" Meu Deus, vou dizer-vos! Não chegavam a quinhentos em Maiorca, na véspera do pronunciamento. Dois meses depois, eram quinze mil, graças a um recrutamento desavergonhado, organizado pelos militares interessados em destruir o Partido e a sua disciplina. Sob a direcção de um aventureiro italiano chamado Rossi, a Falange tornara-se na polícia auxiliar das Forças Armadas, sistematicamente encarregada das tarefas baixas, enquanto aguardava que os seus chefes fossem executados ou aprisionados pela ditadura, e os seus melhores elementos despojados dos seus uniformes e atirados à tropa. --  Mas, como diz Kipling, isso é outra história. Seja onde for que o general do episcopado espanhol ponha agora o pé, a mandíbula duma caveira fechar-se-á sobre o seu calcanhar, e ele terá de sacudir a bota, para se libertar! Boa sorte para Suas Senhorias!

Para Bernanos, escritor católico, monárquico (toda a vida o foi), catalogado à direita (e oriundo da Action Française), a visão de crimes cometidos em nome de Deus e da Pátria não é moralmente sustentável sem protesto firme e arriscado da sua consciência cristã. Nas ilhas Baleares, onde mora, ele sabe que "os cruzados de Maiorca" nome que dá aos franquistas, vão, pela calada da noite, às casas das famílias  a quem roubarão maridos e pais e filhos, para os levar, com prisioneiros feitos nas trincheiras, "como gado até à praia", onde os fuzilam "sem pressa, besta a besta" e, na presença de padres que lançam absolvições in hora mortis, "os amontoam  --  gado absolvido ou não  --  " e regam com gasolina, para os queimarem. E, com a santa fúria de uma consciência cristã, acrescenta: É bem possível que essa purificação pelo fogo tenha então revestido, em razão da presença dos padres de serviço, um significado litúrgico. Infelizmente, só dois dias depois vi esses homens negros e lustrosos torcidos pelas chamas, e dos quais alguns mostravam na morte poses obscenas, capazes de entristecer as senhoras de Palma e os seus distintos confessores... Bernanos sabia bem  --  e disse-o  --  que, do lado republicano,  se cometiam também muitas barbaridades: sacrificaram-se inocentes, violaram-se freiras, assassinaram-se padres. Mas esse terrorismo não se escondia, expunha-se. Escândalo maior, para ele, enquanto e porque católico, era a pretensa justificação de outro terrorismo, igualmente nojento, perpetrado com a bênção da hierarquia da Igreja espanhola, e que era depois negado ou ocultado pelos seus autores. Mandava a hipocrisia que culpados fossem só os outros...A estatura moral de Bernanos constrói-se pela sua íntima fidelidade à sua fé cristã, que o leva a pôr sempre acima de simpatias e opções ideológicas ou políticas o valor universal da caridade  --  que não é uma esmola, mas sim o respeito devido à dignidade de todos e qualquer ser humano. É esse resistente amor a Deus através dos homens que distingue Bernanos do católico Claudel que apoiava o franquismo em tudo, ou do comunista Neruda, adorador de Estaline, que comungava com os sequazes bolcheviques no ódio aos cristãos e também às outras esquerdas espanholas.  Disse-te, Princesa, que esta conversa não caberia numa carta. Antes de me despedir, deixa-me todavia dizer-te que Hannah Arendt, na sua análise das origens do totalitarismo, tem um capítulo sobre o caso Dreyfus. Como aperitivo da próxima carta, deixo-te umas citações... Para ela, o caso Dreyfus é muito mais um caso político do que propriamente um processo judicial: Quando Dreyfus morreu, em 1935, a imprensa, por medo, não comentou a questão. Só os jornais de esquerda voltaram a referir-se à inocência de Dreyfus, enquanto os de direita retomaram as acusações de culpa. Ainda hoje, mesmo que em menor escala, o caso Dreyfus divide politicamente a França. Tal como a guerra de Espanha teima em continuar a ser pomo de discórdia entre espanhóis, ela que dramatizou o confronto entre oposições e partidarismos europeus: de nacionalistas e internacionalistas, socialistas e capitalistas, anarquistas e comunistas... Mais ainda do que ter prefigurado a 2ª Grande Guerra, essa em que a aliança táctica entre as potências que, mais tarde, sustentariam os dois blocos opostos da guerra fria derrotou os totalitarismos nazi e fascista que haviam apoiado a rebelião franquista. O diabo é, literalmente, aquele que divide, separa. Por isso mesmo, os representantes da Igreja visível  --  sobretudo aqueles que são seus pastores  --  não devem esquecer-se de que Deus une, pelo amor. Não persegue nem agride, antes vai em busca e acolhe as ovelhas transviadas. A Igreja não é de esquerda nem de direita, não tem partido ou facção política, deve só procurar promover o diálogo e o respeito mútuo. Mas vamos então aos anunciados passos de Hannah Arendt, que julga ter o prejuízo causado a um só judeu (Dreyfus) em França levantado mais indignação em todo o mundo do que todas as perseguições a judeus alemães uma geração depois. E acrescenta: Os protagonistas do caso pareciam ter saído das páginas de Balzac: de um lado, os generais classistas procurando freneticamente encobrir os do seu grupo e, do outro, o adversário deles, Picquart, com a sua honestidade tranquila, clarividente e algo irónica. Paralelamente, estava a malta indefinida dos parlamentares, cada um deles receando o que o vizinho pudesse saber.  O presidente da República, conhecido cliente dos bordéis de Paris; e os juízes que tinham o processo em mãos e funcionavam em função da sua promoção. Logo a seguir, o próprio Dreyfus, um oportunista, gabarola, falando muito da fortuna familiar e de mulheres...   ... E que dizer de Zola, cheio de exaltado fervor ético, atitudes patéticas e fúteis, como quando, em vésperas do exílio em Londres, declara ter ouvido a voz de Dreyfus a pedir-lhe esse sacrifício? Pessoalmente, penso que Zola sofreria , talvez, desses arrebatamentos retóricos  très XIXème siècle, mas mesmo assim  -- quiçá discordando de Bernanos  -- respeito e admiro a sua declaração de 21 de Fevereiro de 1898: Dreyfus est innocent, je le jure. J´y engage ma vie, j´y engage mon honneur. Penso que cumpriu. Poderei discordar de coisas que ele disse ou escreveu, sobretudo sei que não teríamos a mesma perspectiva de olhar o mundo, mas nada disso retira ou diminui o respeito que me merece o seu livre pensamento e a sua coragem. Fica para outra carta. Beijo-te a mão

                            Camilo Maria 

 

Camilo Martins de Oliveira

A FORÇA DO ATO CRIADOR

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António Costa Pinheiro e a pintura memorável.

‘Uma ambição que acredito ter: desconfiar permanentemente de todas as formas de criação que possam levar a uma espécie de ‘sujeição mental’’, Costa Pinheiro

Vindo de Lisboa, António Costa Pinheiro (1932-2015) instalou-se pela primeira vez em Munique, em 1957. Logo após a exposição ‘Vier Maler aus Portugal’, que participou com Lourdes Castro, René Bertholo e Gonçalo Duarte, Costa Pinheiro decidiu não regressar a Lisboa, estabelecendo-se na cidade alemã com Gonçalo Duarte. Em Munique, teve a possibilidade de estudar e aprender nas oficinas gráficas da Academia de Belas Artes. Encontrou um ambiente liberal, no bairro Schwabing (centro dos artistas) onde Ludwig Grote comissariava as animadas exposições que se faziam na Haus der Kunst. Em 1960, ganha uma bolsa da Fundação Gulbenkian, muda-se para Paris passa a colaborar na revista KWY. Em 1962, desloca-se a Portugal e é preso na fronteira pela polícia política. Só em 1963 regressará a Munique.

J­ürgen Claus escreve, no catálogo da exposição ‘KWY, Paris 1958-1968’, que Costa Pinheiro criava através de uma imaginação poética. E é uma poética rigorosa, que tem um objeto escolhido, específico e um decidir livre, e que por isso faz perturbar qualquer ditadura. Segundo Claus, a evolução da pintura de Costa Pinheiro deu-se no sentido de adquirir mais precisão e de ter maior rigor poético.

Costa Pinheiro inicia os anos sessenta com uma pintura gestual e experimental mas que rapidamente evolui para uma pintura de fragmentos de uma realidade que se quer memorável (como se verifica em ‘Paisagem Portuguesa’ (1964), ‘Outra Realidade’ (1964), ‘V Paisagem Absurda’ (1964) e ‘Esta Paz Moderna’ (1964)). O vocabulário formal, aqui utilizado, é denso, variado, texturado, rasurado, ambíguo e narrativo onde flutuam personagens (também históricas, como na série dos Quadros Históricos (1964) da qual fazem parte: ‘O Rei menino não voltou’, ‘Alcácer Quibir’, e ‘El-Rei D. Sebastião’), legendas inscritas e diversas forças da natureza. Nestas pinturas, Costa Pinheiro tenta descrever algo fora do seu tempo, através de uma figuração subtil, invulgar, recortada e misteriosa que parece divinizar o inacreditável. Estas composições, acima de tudo imaginadas – onde vários planos internos correspondem a distintos acontecimentos – tentam, através da memória, explicar mitos e ensaiar a determinação de uma identidade. Foi sobre estas bases iconográficas que Costa Pinheiro construiu toda a sua pintura.

Ora, na série de ‘Os Reis’ (que o consagrou), apresentada pela primeira vez em Munique, em 1966, Costa Pinheiro desejava criar uma antologia histórica imaginada e contribuir para a criação de uma nova cultura visual. ‘Os Reis’ (de D. Afonso Henriques a D. Sebastião) são verdadeiros ícones, em irónicos modelos de cartas de jogar. Através desta série, o artista desenvolveu um alfabeto imagético singular e único fundado em lendas, tradições, emblemas, insígnias, motivos anatómicos, elementos da natureza e invenções pessoais. As mãos dos reis são, por exemplo, de uma grande multiplicidade – os dedos ora são plantas ora tamborilam sobre a superfície de uma esfera. Também os olhos fazem parte destes motivos – transformam-se em pássaros, corações, cruzes e animais. Costa Pinheiro diviniza os seus reis, como de deuses e heróis se tratassem. Em ‘Costa Pinheiro’, de Bernardo Pinto de Almeida (2005), lê-se que ‘Os Reis’ resultaram de uma aturada investigação, que invocava um aprofundamento de origens – por um lado, na tentativa de descrever o entendimento da natureza do distanciamento em que o artista vivia e por outro ao explorar uma inventariação mitográfica de uma tradição portuguesa perdida. Costa Pinheiro trabalha, assim, a memória de um país (através da sua própria memória) expondo ‘o avesso de uma representação oficial que se esboroava a pouco e pouco, sem que alguém se lembrasse de lhe dar espessura ou consistência, uma dignidade, em que os portugueses se reconhecessem diversos. (Os Reis) Formaram no seu conjunto um cortejo poderoso.’ (Bernardo Pinto de Almeida, 2005).

Terminada a série dos reis, Costa Pinheiro abandonou a pintura por um período de tempo e em 1968, distribuía o projecto Citymobil, em policópias nos corredores do metropolitano de Munique.

Ana Ruepp

COM ÉMILE ZOLA E GEORGES BERNANOS

3.   N O V A   C A R T A   T E R C E I R A

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Minha Princesa de mim:

O erro de muitos padres, mais zelosos do que sábios, é suporem a má fé: «Vocês já não acreditam, porque crer vos incomoda.» A quantos padres ouvi falar assim! Não seria mais justo dizer: a pureza não nos é receitada como um castigo, é uma das condições misteriosas mas evidentes  -  atesta-o a experiência  -  desse conhecimento sobrenatural de nós mesmos, de nós mesmos em Deus, que se chama fé. A impureza não destrói esse conhecimento, aniquila-lhe a necessidade. Já não acreditamos, porque não desejamos acreditar mais. Já não queremos conhecer-nos. Essa profunda verdade, a nossa, já não nos interessa. E é bonito dizermos que os dogmas que, ontem, obtinham a nossa adesão, continuam presentes no nosso pensamento, que só a razão os afasta, isso que importa? Na realidade, não possuímos mais do que aquilo que desejamos, pois que para o homem não há posse total, absoluta. Já não nos desejamos. Já não desejamos a nossa alegria. Só em Deus nos poderíamos amar, e já não nos amamos. Nem nunca mais nos amaremos, neste ou no outro mundo, eternamente...   ... Escrevi isto em grande e plena angústia do coração e dos sentidos. Tumulto de ideias, de imagens, de palavras. A alma cala-se. Cala-se Deus. Silêncio. Traduzo-te estes passos do Journal d´un Curé de Campagne, Princesa, ouvindo ainda as Rosenkrantz Sonaten do Biber. Viajei de Zola a Bernanos, de cura a cura de aldeia, partilhando essa interrogação da nossa solidão sobre o mistério de nós, que fatalmente sempre nos conduz a essa encruzilhada do desejo e do amor... O padre de Bernanos nada tem a ver com o tema polémico e literariamente exploradíssimo do celibato, do conflito entre os deveres do sacerdócio e as forças da natureza, de que trataram tantos romancistas, médicos e fisiologistas, um destes, aliás, o dr. Jean-Ennemonde Dufieux, dando a um livro seu, publicado em 1854, um título que resume bem o fundo da questão: Nature et Virginité: considérations physiologiques sur le célibat religieux. Parece-me ainda que, sendo tão vulgar o assunto, nem sequer fará muito sentido suspeitar ou atribuir plágios de romances ou autores. No badalado cotejo de O Crime do Padre Amaro com La Faute de l´Abbé Mouret, esquece-se quase sempre que, não sendo evidentemente alheio ao pretenso carácter antinatural do celibato, nem à alegada artificialidade e hipocrisia da lei canónica, Zola escreve sobretudo um conto de exaltação da natureza primitiva: o próprio parque dos amores, chamado Paradou, é uma metáfora do Paraíso (Paradis) do livro do Génese, e mesmo o "suicídio" da jovem amante grávida  --  que  é desespero de causa, por perceber que o regresso do padre ao dever religioso o rouba ao amor dela  --  processa-se num quarto fechado, onde a pobrezinha se fechou, rodeada de flores silvestres, cujo perfume inebria e mata... Enquanto que o livro de Eça é apologeticamente anticlerical, e uma crítica feroz de uma sociedade provinciana e beata, onde o pecado tem mais a ver com o egoísmo, a intemperança, a luxúria das pessoas  --  ou, ainda, com a sua ganância, carreirismo e falsas aparências  --  do que com qualquer desafio às leis determinantes da natureza. A crítica social tem aí a boca do palco, Eça não se demora em descrições de êxtases carnais, como Zola, por exemplo, no relato do advento do desejo de Sérgio, com Albina mergulhado na ternura telúrica, genética, da vegetação do Paradou: Sei que és o meu amor, vens da minha carne, aguardas que te tome nos meus braços, para que nos tornemos num só... Sonhava contigo. Estavas no meu peito e eu dava-te o meu sangue, os meus músculos, os meus ossos. Não sofria. Tiravas-me metade do meu coração, com tanta doçura, que era para mim uma volúpia partilhar-me assim. Procurava o que tinha de melhor, de mais belo, para te lo abandonar. Se tivesses levado tudo, ter-te-ia agradecido... E teria acordado quando saíste de mim. Saíste pelos meus olhos e pela minha boca, bem o senti. Estavas toda quentinha, toda perfumada, tão acariciante, que foi o próprio estremecimento do teu corpo que me ergueu. Sérgio refere-se à  recuperação da sua saúde, cuidada por Albina, a quem seu tio Pascal, médico, o confiara, depois do abalo que, na sequência de uma oração mística a Nossa Senhora, o prostrara. Talvez por esse paralelo estabelecido entre a devoção à Virgem, mulher ideal, e a amante, mulher real, Barbey d´Aurevilly, entre outros críticos do romance, tivesse dito: É o naturalismo do animal, posto, sem pudor e sem vergonha, acima do nobre espiritualismo cristão!... Não creio que, neste tempo de coisas baixas, se tenha escrito algo que, no conjunto, nos pormenores e na linguagem, fosse tão baixo como La Faute de l´Abbé Mouret (in Le Constitutionnel, 20 de Abril de 1875). Mas dizia-te eu, Princesa, que o cura do diário de Bernanos respira outro ar, ainda que vivendo neste mundo, entre as gentes. Mesmo se nunca falasse de Deus, de Cristo, de Maria ou de todos os santos, sempre adivinharíamos nele o homem religioso, livre e despojado, humilde, sofredor e sensível, esse que aí está, para servir. Em carta enviada, de Palma de Maiorca, em 6 de Janeiro de 1935, a Robert Vallery-Radot, escreve Bernanos: Comecei um belo velho livro de que, penso eu, vais gostar. Resolvi fazer o diário de um jovem padre, à sua entrada para uma paróquia. Vai buscar o meio dia às catorze horas, desenrascar-se como quatro, fazer projectos miríficos, que falharão naturalmente, deixar-se, mais ou menos, enganar por imbecis, viciosas, ou sacanas, e, quando pensa que tudo está perdido, terá já servido a Deus, na medida exacta em que pensava ter-lhe prestado um mau serviço. A sua ingenuidade terá vencido tudo, e morrerá tranquilamente de cancro. O Journal foi certamente o livro que mais intimamente o seu autor gostou de escrever. Pensossinto, Princesa, que Georges Bernanos conseguiu aí a sua mais profunda meditação sobre o mistério da vida cristã. Em carta a sua irmã, ainda em Janeiro de 1935, confessa: Aliás, o livro que neste momento escrevo compensa-me das minhas penas. Creio que o sobrenatural corre em cheio por ele. É um pouco idiota falar assim do que fazemos, mas parece-me que dou um abanão às almas...   ... Vejo erguer-se, a pouco e pouco, à minha frente, um rosto inesquecível, e tudo tento para o pintar com toda a minha fé e todo o meu amor. Que olhar, dia e noite, sobre o meu! Esse padre não vive em obsessão do pecado da carne, nem de qualquer outro individualmente perseguidor, menos ainda no zelo de regulamentos canónicos. Tem sobre o drama da condição humana, como sobre a luta de Jacó com o Anjo, ou sobre a economia do pecado e da graça, o olhar mortificado de Cristo na cruz, a dor que perdoa, regenera e é mãe da alegria. Como a heroína de La Joie, também ele, na hora da sua morte, professará, como Bernanos ele mesmo, essa verdade intimíssima ao coração de Santa Teresinha do Menino Jesus: Tudo é graça! Regista no seu diário o que disse a Chantal, nobre paroquiana revoltada contra o conde seu pai e a sua madrasta: Não passo de um pobre padre, muito indigno e muito infeliz. Mas sei o que é o pecado. Você não sabe. Todos os pecados se assemelham, há um só pecado. Não lhe estou a falar numa língua obscura. Estas verdades estão ao alcance do mais humilde cristão, desde que ele queira vir cá buscá-las. O mundo do pecado faz frente ao mundo da graça, como a imagem reflectida de uma paisagem à beira de uma água escura e profunda. Há uma comunhão dos santos, há também uma comunhão dos pecadores. No ódio que os pecadores têm uns aos outros, no desprezo, eles unem-se, abraçam-se, agregam-se, confundem-se, e um dia não serão, aos olhos do Eterno, mais do que esse lago de lama sempre viscosa sobre que passa e volta a passar em vão a imensa maré do amor divino, o mar de chamas vivas e rugidoras que fecundou o caos. Quem somos nós para julgar o pecado de outrem? Quem julga o pecado, torna-se num só com ele, desposa-o. Quanto a essa mulher que você odeia, você acha que está muito longe dela, mas afinal o seu ódio e o pecado dela não passam de dois rebentos do mesmo ramo. Que importam as vossas zangas? gestos, gritos, nada mais... só vento! A morte, seja como for, em breve vos devolverá à imobilidade, ao silêncio. Que importa isso tudo se, já a partir de agora, vós estais unidos no mal, apanhados na ratoeira do mesmo pecado  --  uma mesma carne pecadora  --  companheiros  --  sim, companheiros!  --  companheiros para a eternidade. Já olhámos, Princesa, para outros retratos de padres feitos por Zola. Não te falei de outros ainda, que serão a maioria, por não lhes ter achado densidade espiritual:  são exemplos desse clero que, aos olhos das gentes, sobretudo urbanas, da segunda metade do século XIX, influenciava, na sombra dos confessionários, as consciências femininas, e, na urbanidade dos salões burgueses, a condução da res publica, as distribuições de favores e nomeações. A literatura da época está cheia deles, certamente por haver muitos assim. Também por isso, são em regra enaltecidas as excepções, pese embora o "castigo" que as diferentes novelas frequentemente lhes reserva: eis a figura do justo e do inocente perseguidos. Há ainda aqueles casos de clérigos fanáticos que, insensíveis à fragilidade humana, trovantes condenam os erros e pecados dos outros. Mas não é desses todos que cabe falarmos aqui, em cartas amigas, com alguma intimidade e muita confiança. A nossa conversa não é de análise social nem de crítica de costumes, antes tem a ver com esse companheirismo de todos na condição humana... Chego assim ao padre Pierre Froment, que perde a fé, mas mantém uma piedade muito humana e atenta aos outros. Uma das últimas personagens criadas por Zola, o próprio nome  --  Pedro Trigo  --  é um anúncio: primeiro papa e pão. Um novo cristianismo? Sou tentado a imaginar que o seu autor, no fim da vida, se entusiasma com o projecto espiritual de um cristianismo laico, sem padres nem igreja. (Estarei a pensar em Tolstoi?). Pierre Froment surge, não só como eixo da trilogia das cidades (Lourdes, Rome, Paris são os títulos dos três romances escritos, sob a referência abrangente de Les Tois Villes, em 1894, 96 e 98, respectivamente) mas será ainda o pai de Mathieu, Luc, Marc e Jean, criados para autores dos "evangelhos" (Les Quatre Évangiles) : Fécondité, Travail, Vérité, este 3º já póstumo (1903), os dois outros publicados em 1899 e 1901, três e um ano antes da morte de Zola. O 4º nem esboçado ficou. Os valores que neles se defendem  --  no conturbado período da viragem do século XIX para o XX  --  são próprios do humanismo cristão da Igreja Católica: fecundidade da família, trabalho honesto, amor da verdade. Porque terá, então, triunfado tanto afastamento, tanta surdez entre o mundo moderno e a Igreja clerical? Porque terá havido tanto arremesso recíproco de queixas e acusações? Se Bernanos estivesse hoje aqui, conversando comigo, talvez juntos fizéssemos a mesma pergunta: teremos esquecido aquela sublime lição de Jesus de que quem nunca pecou lhe atire a primeira pedra? Só uma Igreja humilde, Princesa, poderá despertar nos outros a memória evangélica... Dou-te a mão.

                                 Camilo Maria  

        

Camilo Martins de Oliveira

Tomas Tranströmer

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Poesia Haikai

I

O sol junto ao horizonte.

As nossas sombras são gigantes.

Não tarda, tudo serão sombras.

II

E a noite decorre

de leste para oeste

à velocidade da lua.

III

Um par de libélulas

Encaixadas uma na outra

Esvoaçou por nós.

 

Tomas é muito amado no Japão justamente pela beleza da sua poesia haikai. No haikai japonês a sua técnica de surpreender no último verso é profundamente admirada. Entende-se hoje que Tomas Tranströmer influenciará necessariamente este género poético, segundo a opinião de estudiosos, num simpósio realizado em Quioto.

Como se sabe o poeta sueco Tomas Tranströmer foi o Prémio Nobel da Literatura de 2011. É um poeta de produção pequena mas traduzido em mais de 30 línguas. Vasco Graça Moura que traduziu alguma da sua poesia, afirmou na altura: “Tranströmer é o maior poeta sueco vivo”. Em Portugal, Tomas Tranströmer está representado na colectânea "21 poetas suecos", editada pela Vega, em 1981.

Em 1990 foi Tranströmer vítima de um acidente vascular cerebral que o deixou em parte afásico e hemiplégico. Ele estava a ouvir música, na ilha onde vivia recolhido, depois de doente, longe dos olhares do mundo, quando soube da atribuição do Nobel. Ficou surpreendido, acrescentou ainda o secretário da Academia.

Tomas Tranströmer: “The Music Says Freedom Exists

Allegro

After a black day, I play Haydn,

and feel a little warmth in my hands.

The keys are ready. Kind hammers fall.

The sound is spirited, green, and full of silence.

The sound says that freedom exists

and someone pays no tax to Caesar.

I shove my hands in my haydnpockets

and act like a man who is calm about it all.

I raise my haydnflag. The signal is:

“We do not surrender. But want peace.”

The music is a house of glass standing on a slope;

rocks are flying, rocks are rolling.

The rocks roll straight through the house

but every pane of glass is still whole.

Hoje sentei-me ao piano e toquei a quatro mãos com o poeta. A emoção, não a contive, e ele entregou-me um papel onde tinha escrito há uns anos atrás

À procura de uma caixa de correio

atravesso a cidade com uma carta na mão.

Na imensa floresta de pedra e betão

adejava esta borboleta perdida.

Olhei-o, e nos seus olhos de neve, pus-me à escuta com este seu livro na mão: “50 Poemas” pela chancela da Relógio D’Água. De repente em mim o seu predominante tema de escrita: o carácter efémero da vida. A verdade no chão.

Acontece, a meio da vida, a morte bater-nos à porta

e tomar-nos as medidas. Essa visita é esquecida,

e a vida continua. O fato, porém, esse

   é cosido em silêncio.

 

Imagino o quanto o gelo hoje está azul como o céu, e este, este é o meu agora para ti, Tomas Tranströmer.

Por cá tudo vai devagar. Talvez baste pôr em liberdade toda a verdade dos livros e fazermo-nos ao caminho, enquanto.

Uma árvore (…)apanha vida da chuva/(…) à espera, como nós, do instante

Escreveste.

E disseste que ao sol, damos a impressão de sermos quase felizes e ao mesmo tempo sangramos de mágoas que desconhecemos. E eu digo-te que espero um amigo na oscilante mesa da humanidade. Um amigo que avelude o ar.

Um amigo longamente amigo. Tua

Teresa Bracinha Vieira

Outubro 2015

ATORES, ENCENADORES - XLV

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UMA CRIAÇÃO DE GARRETT: GIL VICENTE ENCENADOR

Já aqui evocamos Garrett ator: e não foram poucas as intervenções nas suas próprias peças, desde escolar de Leis em Coimbra, a dirigir, em 1819, os ensaios da Mérope”, primeira peça completa que nos legou; ou em 1821 no ”Catão”, estreado no Teatro do Bairro Alto, ou no “Impropeto de Sintra” representado em 8 de abril de 1822 na Quinta do Cabeço em Sintra; ou, mais tarde e mais exigente no desempenho, o papel de Telmo Pais na estreia do “Frei Luís de Sousa” na Quinta do Pinheiro em Lisboa, 4 de Julho de 1843, contracenando com um dos grandes nomes da cena da época, a atriz Emília Kruz, que fez a D. Madalena de Vilhena.

E podemos também recordar a reforma do teatro português, elaborada por Garrett em 1836 e consagrada por Portaria de D. Maria II datadas de 15 de Novembro daquele ano, a qual lança as bases da estrutura da formação e profissionalização do setor teatral, que ainda hoje perduram.

Mas o que hoje aqui evoco é a convergência digamos assim de Garrett e de Gil Vicente nas funções de criação do espetáculo, numa curiosíssima antevisão do que viria a ser – tal como temos aqui evocado, nesta série de artigos – o papel e a intervenção do encenador na criação do teatro-espetáculo.

É em “Um Auto de Gil Vicente”, primeira peça “de fundo” de Garrett, “Drama representado pela primeira vez em Lisboa no teatro da Rua dos Condes, em 16 de Agosto de MDCCCXXXVIII” diz a edição da época. Aí encontramos 22 personagens, entre eles, o próprio Gil Vicente, Bernardim Ribeiro, Paula Vicente, Garcia de Resende e atores e atrizes envolvidos na primeira representação de As Cortes de Júpiter” perante a corte de D. Manuel I.

Estamos perante uma reconstituição do ensaio do espetáculo, dirigido – hoje diríamos encenado – pelo próprio Gil Vicente, e tendo como protagonista, diríamos hoje também, a Paula Vicente.

Evoquemos pois esse ensaio inicial. Desde logo, a intervenção do “encenador Gil Vicente”, que refere em síntese o teor da peça e orienta os atores:

«Gil Vicente - (…) Vamos. - Porte, dignidade, - um ar majestoso e grande. As ”Cortes de Júpiter” é o título da nossa comédia. Deuses e deusas: não há outra gente aqui. Paula, tu sabes que és a “Providência”, que vais ordenas a Júpiter que chame a cortes os regedores de todas as coisas, o deus do mar, o dos ventos, da guerra, Sol, lua, estrelas.»

E segue-se a cena do ensaio, entremeada com as galanterias - expressão mais dos tempos de Garrett do que dos nossos tempos! - de Bernardim Ribeiro dirigidas a Paula Vicente:

«Bernardim – Providência! De molde lhe vai a esta altivez natural e génio sobranceiro. – Dizia-me Pêro que ereis a Lua/ Paula – Não me contento de luz emprestada, senhor cavaleiro./ Bernardim – Porque da própria sabeis quanto brilha».

E continua o ensaio, com uma clara direção de atores por parte de Gil Vicente, com transcrições do Auto e com intervenções dos próprios atores. Mas a grande protagonista desta cena é na realidade a Paula Vicente, que reage com impaciência às orientações de Gil Vicente e aos avanços de Bernardim.

«Paula – Deixemos esse tom de galanteria, senhor cavaleiro. Não vos fica bem a vós e sabeis que não me agrada a mim. (…) O meu papel todo agora! Isso é impossível. Tirava-me a ânimo de o repetir logo. Demais o tendes ouvido todos. Fazei de conta que está dito.»

E noutra fala: «Praz-lhe ao Senhor Bernardim Ribeiro zombar de nós e da nossa humilde profissão.”

Segue o ensaio, com uma crescente indisposição de Paula Vicente, que imita e critica os próprios colegas: assim, na sequência das indicações aos outros atores, e da intervenção de Pero Sáfio, no papel de Marte, em transcrição rigorosa do auto vicentino intercalada pelos comentários de Gil Vicente/Garrett:

«Paula (interrompendo-os e parodiando o tom da declamação): - É a Providência divina que está secadíssima de ouvir as conversas sensabores destes deuses pagãos, ordena que vos caleis já, e guardeis isso para logo.”

Ora bem: esta simbiose, permita-se o termo, entre classicismo e romantismo, ou, se quisermos, esta visão romântica do teatro clássico, esta interpretação de Gil Vicente feita por Garrett, constitui, na síntese de épocas e estilos, um documento notável no ponto de vista estético, mas também cronológico, da evolução histórica do teatro, e neste caso, a partir de dois nomes cimeiros da nossa literatura dramática, Gil Vicente e Garrett. E ambos marcam de que maneira a época, a estética técnica dos atores e dos encenadores, no século XVI, no século XIX e no século XXI!

E uma nota final: ao publicar em 1841 a peça “Um Auto de Gil Vicente”, Garrett fá-la anteceder de longa Introdução, onde traça uma interessantíssima teoria geral do teatro português e do teatro em Portugal. Dela destacamos as passagens que se seguem, até porque em muitos aspetos não perderam atualidade:

«Em Portugal nunca chegou a haver teatro: o que se chama teatro nacional, nunca (…) O teatro é um grande meio de civilização mas não prospera onde a não há. Não têm procura os seus produtos enquanto o gosto não forma os hábitos e com eles a necessidade. (…) Depois de criado o gosto público, o gosto público sustenta o teatro”.

No seu tempo, com a sua obra e com a sua intervenção, Garrett, muito ajudou a criar o hábito, o gosto, a necessidade – e a qualidade!

DUARTE IVO CRUZ

LONDON LETTERS

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Lord Howe of Aberavon, 1926-2015

A família conservadora perde um dos seus grandes no momento hegemónico do auge no poder. Sir Geoffrey Richard Edward Howe parte aos 88 anos. Ele é o arquiteto mor do Thatcherism. Ele é a primeira causa da queda no Number 10 de TRH Margaret Thatcher. Após 11 anos como Chancellor of Exchequer da Iron Lady, demite-se em 1990 por Untitled 2.jpgdissidência na questão europeia. — Chérie! C'est l'exception qui confirme la règle. A conferência Tory encerra em Manchester sob a boa estrela centrista de RH George “The Builder” Osborne. A comemorar o 49.º aniversário, o Prime Minister RH David Cameron janta no Chequers com Die Bundeskanzlerin Frau Angela Merkel. Do encontro a dois saem as bases para as sensíveis renegociações da presença do UK na European Union. — Well. Do not sell the bearskin before you have caught the bear. Roma reúne em sínodo para moderada refundação do processo canónico matrimonial. Mrs Svetlana Alexievich ganha o 2015 Nobel Prize in Literature pela documentária do pós-sovietismo. Ms Edith Cavell é fuzilada há 100 anos pelas tropas alemãs, por dita traição, após socorrer soldados nos dois lados das barricadas belgas da I World War. Paris informa que um em cada três franceses vota em Madame Le Pen para o Elisée.

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Clement skyes numa anil London. O Tory people conclui uma eficaz conferência anual em pleno coração das Northern no-go areas, puxando o partido para o centro com o modernérrimo blue colar conservatism. O encontro serve para pragmático retrato de Sir Cameron como um vigilante pastor, que adverte contra a "security-threatening, terrorist-sympathising, Britain-hating ideology" à frente do Labour Corbyn’s Party. Assiste também ao reforço das altas ambições dos Right Honourables George Osborne, Theresa May e Boris Johnson para lhe suceder na liderança e em Downing Street. Novidades? O adiar das cisões em torno da ‘Brexit,’ com os próximos dias ocupados em montar o all-for-the euro inners/quitters na public square, a prédica da soberania pela Home Secretary em vésperas do debate da Immigration Bill na House of Commons a par dos tax credit cuts a fixar pelo Chancellor no 2016 Budget mais… The One-Nation Tory RH Boris MP always thinking with the few and speaking with the many [lembram-se de alguém assim!?]. A generalidade da Press discorre sobre “the impenetrable forcefield around the centre ground of British politics” e “The Osborne supremacy.” Mas, pela pena do assertivo Mr Janan Ganesh, e em tom gladstoniano, o Financial Times bem disserta que “the vision of a new Victorian era will test the Tory soul.”

O discurso do PM repete 39 vezes a palavra country e apenas contém uma referência ao défice mas encerra conhecida lógica de responsabilidade financeira e de mobilidade social no desígnio da "Britain turnaround decade." O rótulo e a abordagem reformista remetem necessariamente para uma famosíssima frase proferida há 35 anos em Brighton: “The lady is not for turning.” Ainda sem a aura mitológica desta mulher, no Daily Telegraph, Mr Dan Hodges argumenta até que “the socially progressive Left has a new leader”. Ora, conselheiro discreto deste Tory Govt, a Thatcherite religion perde um dos cardeais com o passamento de Lord Howe of Aberavon. Admirador de Mr Enoch Powell nos 1960s e do monetarismo nos 80s, ele começa por ser um dos candidatos à eleição de 1975 em que Mrs T conquista a Tory leadership e culmina em 1990 com um troante resignation statement na House of Commons por muitos classificado como “her political assassination.” O resto da longa carreira pública repousará nos livros de história. O biógrafo oficial da Old Maggie, Mr Charles Moore, consagra já um duplo one-line script de: (1) “between them, Mrs Thatcher and Howe transformed the British economy;” (2) “Geoffrey Howe was the tapestry-master of Thatcherism, but also the nemesis of Margaret Thatcher.”

Uns dias atrás, no The Guardian, o sempre straight to the point Professor Timothy Garton Ash examina as eleições norte-americanas para concluir que "[t]o watch American politics today is to watch money speaking." O Oxonion Fellow questiona a integridade do processo eleitoral. Um relatório especial do New York Times densifica a análise e segue o rasto monetário das várias candidaturas republicanas e democratas para a White House: "Just 158 families gave nearly half the early money in the race." Mais apura: São astronómicas as somas envolvidas no sufrágio do próximo outono. A campanha mobiliza $400m só na primeira metade de 2015 e as estimativas para os gastos finais ascendem a $7bn (cerca de £4.6bn). A fim de aferir as apostas, para comparação, o conjunto de todos os partidos concorrentes às legislativas britânicas em 2010 gastaram menos que £46m. Este disparo nos dinheiros políticos deriva fundamentalmente de disputada decisão do US Supreme Court, seguida de cascata jurisprudencial, cuja doutrina sustenta que, tal qual como as pessoas, as empresas têm direito a ter voz na polis. A igualdade do 2010 Citizens United Judgment certifica-se agora nos muitos zeros da equação presidencial. — Well! The greatest skill in any deed consists in the sure mastery with which it is executed.

St James, 12th October
Very sincerely yours,
V.

 

A VIDA DOS LIVROS

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De 12 a 18 de outubro de 2015

«O Islão e o Ocidente – A Grande Discórdia» de Jaime Nogueira Pinto (D. Quixote, 2015) é uma obra necessária e de grande oportunidade, que faz uma análise histórica e um enquadramento dos acontecimentos atuais com grande rigor e pormenor, que permitem uma compreensão informada do momento.

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UMA RELAÇÃO MUITO DIFÍCIL
A capa do livro reproduz os Quatro Cavaleiros do Apocalipse, de Mathias Gerung (1532), dando o tom geral não apenas das ameaças vividas em todos os tempos (representadas pelo turco), mas também da necessidade de uma compreensão mútua ditada pelos desígnios fundamentais de uma Humanidade criada à semelhança de uma Providência una. Longe de simplificações, o autor procede a uma criteriosa descrição dos diversos fatores que é preciso considerar quando falamos do complexo diálogo entre o Islão e o Ocidente. E se referimos a complexidade, não podemos esquecer diversos momentos desse diálogo, que oscilam entre uma rica complementaridade e a agudização de uma violenta conflitualidade. No fundo, ao estudarmos a realidade, chegamos à conclusão de que não deve haver fatalismo sobre a impossibilidade de caminhos de convergência, num sentido do desenvolvimento humano. As dificuldades não devem ser iludidas, o conhecimento mútuo tem de ser exigente, uma cultura de paz e de dignidade deve ser partilhada – para o que há passos muito seguros a dar no sentido de compreensão das diferenças e de reconhecimento da liberdade de consciência. «Se quisermos evitar a catástrofe do confronto e da Guerra de Civilizações, o único caminho é tentar conhecer e compreender, com realismo, astúcia, paciência e humildade, a nossa própria história, cabeça e sensibilidade do outro e dos outros, sem amálgamas nem preconceitos, agindo com firmeza mas respeitando a importância e a presença da transcendência e do sagrado e evitando a imposição dialética de dogmas ou descrenças».


FAZER A RECONCILIAÇÃO
Ahmed Abbadi, presidente da Liga dos Ulemas de Marrocos, põe o dedo na ferida: «É tempo de pôr em marcha um movimento de equidade e reconciliação inter-civilizacional para que possamos sarar as feridas do passado – que são recíprocas e que se vão sedimentando nos nossos subconscientes. Temos de fazer esse exorcismo, essa reconciliação; sair da tensão em que hoje vivemos e voltar à interdependência e ao reconhecimento mútuo». O Estado Islâmico (ISIS, Islamic State of Irak and Syria) e o chamado Califado, construídos com a invocação sunita do Islão histórico e com o apoio de populações descontentes, sob o comando de um tal Abu Bakr al-Baghdadi, dominaram na Primavera de 2014 cerca de 100 mil quilómetros quadrados numa zona de grande instabilidade política, alardeando um clima de terror, de morte e de destruição. Para se compreender a raiz dos conflitos no seio dos Islão, entre sunismo e xiismo, temos de ir à morte do Profeta Maomé, em 632, e à sua sucessão. Sucedeu-lhe um companheiro próximo, Abu Bakr, cujo califado apenas durou dois anos, a este sucedeu Omar, outro companheiro do profeta, que nos dez anos de califado conquistou a Síria, a Palestina, o Egipto e a Mesopotâmia. Com a morte de Omar, um conselho de seis membros escolheu Osman do clã dos Omíadas de Meca. Entretanto, Ali, primo, companheiro e genro de Maomé, casado com a filha Fátima, apesar de ter votado em Osman, não gosta da escolha de um membro da comunidade que perseguira Maomé e resistira ao Islão. Osman viria a ser morto na sequência da disputa do poder e Ali foi aclamado como califa em junho de 656, o que abriu um conflito que chega até hoje. Os Omíadas da Síria comandados por Muawia consideraram que Ali era responsável pela morte de Osman e em 661 Ali seria assassinado em Kufa, nas margens do Eufrates, na sequência do que Muawia far-se-ia aclamar Califa em Jerusalém. Lançou-se então na perseguição dos descendentes de Ali. Hassan, o neto primogénito do profeta, renunciaria ao Califado e Hussein, o outro neto de Maomé, tentou resistir sem sucesso, tendo sido decapitado em Karbala e enterrado em Damasco.


UM POVO DE PENITENTES…
Símbolo do xiismo, Hussein tornou-se exemplo de um inglório martírio, arrastando os seus apoiantes («Penitentes») para a culpa de não terem permitido a sua vitória. Até ao século IX (d. C.) os descendentes de Hussein sucederão na liderança dos xiitas, enquanto os califas Omíadas alargarão as conquistas de um modo impressionante e rápido: depois de saírem das fronteiras da Arábia, em 633, tomaram Damasco em três anos; Jerusalém em cinco; a Síria, Palestina e Egipto em oito; em 20, todo o Império Persa até ao Oxus; e em 30, o Afeganistão e a maior parte do Punjab… Foram feitas tentativas em Constantinopla, sem sucesso, e Cartago apenas cairia em 693, sendo fácil o avanço daí até ao Atlântico. Em 711, aproveitando a crise dinástica visigótica, Tariq ibn Zaid, iniciaria a conquista da Península Ibérica. O motivo da velocidade da marcha muçulmana tem a ver não só com a cavalaria muito rápida mas também a tolerância dos conquistadores para com as populações cristãs e judaicas. Após o domínio Omíada, sucede o tempo dos Abássidas (século VIII) que corresponde a um período áureo no Islão, no tempo de Harun al-Rashid, o califa das «Mil e uma Noites». No século XI os turcos seljúcidas conquistam Bagdad e derrubam os Abássidas. Alexandria, Antioquia e Jerusalém ficam em poder do Islão – apenas escapam Constantinopla e Roma… A História é conhecida, as Cruzadas não permitem aos reinos cristãos impor-se, Frederico II de Hohenstaufen na quinta cruzada aceita que os muçulmanos controlem os lugares santos e salvaguarda o acesso pelos cristãos a Nazaré e Belém, pelo que é excomungado pelo Papa…


ESPAÇOS DE CONFRONTO
Os principais espaços de confronto do Islão com a Cristandade foram, sobretudo depois da conquista de Constantinopla (1453), o Mediterrâneo Oriental e os Balcãs. E até ao século XIX os corsários muçulmanos mantiveram-se ativos a partir de Túnis e Argel, enquanto os portugueses, no Império do Índico (por exemplo com Albuquerque) sustentaram até tarde a antiga tensão político-religiosa. Em momentos como o da Batalha de Lepanto (1571) os monarcas cristãos uniram-se contra a «Sublime Porta» (símbolo do Palácio do Grão-Vizir em Istambul), mas houve inúmeras oscilações, até ao fim dos grandes impérios e à eclosão das guerras mundiais do século XX. Lawrence da Arábia foi símbolo de uma estratégia ambígua de «Entente Imperial» e de recolonização, depois há o nacionalismo árabe, os novos tempos do Islão do fim do século XX, as tempestades no deserto, o grande ataque, a guerra de sombras, as Primaveras Árabes e as grandes incertezas atuais… Todos sabemos que não é fácil encontrar saídas pacíficas, uma vez que, a cada passo, encontramos a emergência de dogmatismos de negação, que mais não conseguem do que acirrar o radicalismo e a irracionalidade. No entanto, nesse sentido, o Papa Francisco (como os seus antecessores) tem-se dado conta do alto risco do momento, apelando ao diálogo entre as religiões abraâmicas, o que obriga a humildade, paciência e boa vontade. Há, pois, um longo caminho a percorrer, perante o carácter explosivo da situação política no Mediterrâneo Oriental – de que o problema dos refugiados é uma consequência.

 

Guilherme d’Oliveira Martins