COM ÉMILE ZOLA E GEORGES BERNANOS
- NOVA CARTA SÉTIMA
Minha Princesa de mim:
O que será que reúne em mim o Nana do Zola com os Dialogues de Carmélites do Bernanos? Talvez um qualquer encontro de misericórdias por sobre fatalidades, numa convergência de olhares díspares sobre o destino de condições humanas em circunstâncias trágicas... Ou quiçá a força dessa contradição que é a coincidência, nas nossas vidas, do pecado e da graça, da aspiração ao bem na obsessão do mal, desse naufrágio da consciência que se abandona, gritando sempre, à tormenta das tentações. Preso por doença persistente, tenho lido e relido muito. Quando paro, escolho um disco em que, por qualquer razão escondida, sinto poder continuar o passeio de uma meditação, mas de olhos fechados, ouvindo música. Voltara ontem à Nana, e quando fechei o livro, esta manhã, logo me ocorreram os Dialogues. Pus a girar os discos da ópera do Poulenc, pondo em música a peça de Georges Bernanos, inspirada na Die Letzte am Schaffot (A Última no Cadafalso ) da Gertrud von Le Fort e no guião para cinema (para este, precisamente, escreveu Bernanos os diálogos) de Philippe Agostini e do padre Brückberger, dominicano francês, que conheci na minha juventude. Mas que têm em comum a prostituta Nana e a aristocrata Blanche de La Force (Irmã Branca da Agonia de Cristo) ? Terá a ver com o que a esta carmelita diz outra, a Irmã Constança: Não morremos cada um por si, mas uns pelos outros, ou mesmo uns em lugar de outros, quem sabe? Interroga-se assim, no fim de um dueto entre ambas, mais longo na peça do que na ópera, em que todavia Poulenc põe em música o texto de Bernanos (abreviado) : O que chamamos acaso é talvez a lógica de Deus. Pense na morte da nossa querida Madre, Irmã Branca! Quem acreditaria que lhe custaria tanto morrer, que pudesse morrer tão mal! Dir-se-ia que no momento de lha dar, Deus se enganou de morte, como no vestiário se troca um casaco por outro. Sim, aquela devia ser uma morte para outra, uma morte pequena demais para ela, ela nem sequer conseguia enfiar-lhe as mangas. --- A morte de outra? Que pode isso querer dizer, Irmã Constança? --- Quer dizer que essoutra, quando chegar a hora da morte, se admirará de nela entrar tão facilmente e de nela se sentir confortável... Sabes, Princesa, que a história ali contada se fundamenta na realidade do acontecimento da execução, na guilhotina, de dezasseis monjas carmelitas de Compiègne, em 17 de Julho de 1794, durante o Terror da Revolução Francesa. Mas Gertrud von Le Fort projecta na personagem de Blanche de La Force o drama da sua própria angústia e da fé que lhe dizia que essa angústia seria vencida pela Graça. Branca também era medrosa, tinha medo do medo, e medo da morte, ao ponto de fugir à proximidade do martírio...para regressar, na hora do cumprimento, e ser a última a subir ao cadafalso, cantando: Deo Patri sit gloria, et Filio qui a mortuis surrexit, ac Paraclito, in saeculorum saecula... Bernanos, por outro lado, porá em epígrafe aos Dialogues, na dedicatória dos mesmos, estas palavras do seu romance La Joie: Em certo sentido, vede bem, o Medo é mesmo filho de Deus, resgatado na noite de Sexta Feira Santa. Não é bonito de ver-se -- não! -- ora escarnecido, ora maldito, renunciado por todos... E todavia, não nos enganemos: ele está à cabeceira de cada agonia, ele intercede pelo homem. Nana nasceu num bairro pobre, foi, em criança, servente de uma tia florista. Mas senhora de um corpo cheio de atributos que enlouquecem a libido dos homens em geral e a dos burgueses e aristocratas, mais ou menos idosos ou jovens, mais ou menos ricos ou atrevidos, em especial, vai finalmente ganhando a vida em palcos de teatro de variedades e na prostituição, exercício em que, caprichosa, sabedora e sem escrúpulos nem temores, explora uns, sobretudo os senhores mais abastados e socialmente respeitáveis, e favorece outros, amigos do coração ou amantes passageiros, numa promiscuidade organizada por ela só. Conta-nos Zola uma história pouco verosímil como biografia (tantos parceiros, tantas situações, tantas variantes são muita areia para a camionete de uma só mulher), mas bom retrato do luxo e da luxúria desregrados da sociedade parisiense no Segundo Império. É, quiçá, o romance de Zola que mais me lembra o nosso Eça, por um escárnio latente, um pessimismo descrente de tudo, ou, talvez apenas, pelas páginas sobre as corridas de cavalos em Longchamp, com tantas cenas semelhantes às evocadas por Eça em Os Maias, nas corridas em Belém. Recordo-te alguns passos, do penúltimo capítulo e do final. Encontramos Nana no cenário espampanante do seu palacete, oferecido pelo Conde Muffat -- que ela pervertera -- mas recheado também de luxos pagos por conta de outros amantes ou de simples serviços num prostíbulo. Calça as luvas, vai sair para ir a um hospital visitar Satin, sua velha amiga e companheira de ofício, finalmente sua amante também, agora pobre moribunda. Diz para dois proxenetas de teatro que a foram visitar: « Vou ao hospital... Ninguém me amou como ela. Ah! Temos razão em acusar os homens de falta de coração!... Sabe-se lá! Talvez já não a encontre. Pouco importa, pedirei para vê-la. Quero abraçá-la.» ... Já não estava triste, também sorriu, porque aqueles dois não contavam, até podiam perceber... ... Quedava-se só, de pé, no meio das riquezas acumuladas do seu palacete, com um povo de homens abatidos a seus pés. Como esses monstros antigos, cujo temido domínio estava coberto de ossos, ela punha os pés sobre crâneos; e rodeavam-na catástrofes, a furiosa imolação de Vandeuvres pelo fogo, a melancolia de Foucarmont perdido nos mares de China, a ruína de Steiner, reduzido a viver honestamente, a imbecilidade satisfeita de La Faloise, o trágico descalabro dos Muffat, e o branco cadáver de Georges, em cuja vigília estava Pierre, saído da prisão na véspera. A sua obra de ruína e morte estava feita, a mosca saída do lixo dos subúrbios trouxera o fermento das podridões sociais e envenenara esses homens, só por pousar neles. Tudo batia certo, era justo, ela tinha vingado o seu mundo, os mendigos e os abandonados. E enquanto, em glória, o seu sexo se levantava e irradiava sobre as suas vítimas jacentes, qual sol nascente que ilumina um campo de carnificina, ela conservava a sua inconsciência de animal soberbo, ignorando a sua tarefa, e sempre boa rapariga... ... e saiu, muito bem vestida, para ir abraçar Satin pela última vez, com ar todo juvenil, como se nunca tivesse servido. Nessa altura, Nana despede-se da sua circunstância parisiense, vende mansão e mobília, o recheio todo. Uma fortuna em dinheiro vai permitir-lhe lançar-se na aventura de uma longa viagem pelo Médio Oriente e pela Rússia. Terá amantes no Cairo e seduzirá um príncipe russo, que a cobrirá de joias e mais riquezas. Talvez por se amofinar com ele, regressará a Paris, com vagões cheios de bagagem, e vai logo visitar o menino, seu filho de pai incógnito, que deixara entregue à sua tia florista. O pequeno tem bexigas, morre delas, contagia a mãe. Nana refugia-se então num quarto mobilado, só. Será Rose Mignon, antiga rival na exploração de homens e de contratos no teatro, sua quase inimiga detestada, que a irá ali buscar e a instalará no Grand Hotel, onde, apesar do risco de contágio, a acompanhará e tratará até à morte. Sabedoras da situação, algumas cortesãs irão visitar a moribunda, sempre vigiada por Rose, enquanto os homens, fumando charuto, se ficam pela rua, à porta do hotel, só para terem notícias. Quando Nana está morrendo, agitam-se multidões pelos bulevares, anunciando e aclamando a guerra contra a Prússia de Bismarck, gritando: "Para Berlim, para Berlim!". Esse será então o fim do Segundo Império, com a derrota da França. Rose, na sua corajosa misericórdia, será a última a abandonar o quarto, depois de com água lavar o rosto e as mãos, se vestir para sair, acender um candelabro de vigília, correr os cortinados e murmurar, ao ver, à luz da chama acesa, o rosto descomposto e irreconhecível: "Como ela mudou...como ela mudou!" Zola comenta: Vénus descompunha-se. Parecia que o vírus que ela apanhara nos ribeiros, em cima dos cadáveres tolerados, esse fermento com que ela envenenara um povo, acabara por subir-lhe ao rosto e o apodrecera... O mesmo Zola que, algures, em esboço do romance Nana, muito antes escrevera: O assunto filosófico é este: toda uma sociedade a atirar-se ao sexo. Uma matilha atrás de uma cadela, que não está em calores, e troça dos cães que a perseguem. O poema dos desejos do macho, a grande alavanca que agita o mundo. Só há sexo e religião. É, pois, intencional, a coincidência do apodrecimento mortal de Nana com o estertor final da França, da Paris, de Napoleão III. Todavia, isolada, contrastante, eleva-se, como uma assunção, a piedosa misericórdia de Rose Mignon. Uma formosa flor desabrochou na lixeira. Deus sabe se a presença de Rose à cabeceira da sua agonia, não terá confortado Nana, quando de morte vestia... Nem nós sabemos se Rose terá pensado que Nana talvez morresse por ela... Como disse a carmelita: Não morremos cada um por si, mas uns pelos outros, ou mesmo uns em lugar de outros, quem sabe? Sabes tu, Princesa de mim, como frequentemente me acontece contemplar esse grande mistério da unidade da condição humana, da nossa comum dignidade, do inalienável valor divino do humano. Numa perspectiva teológica, o cristianismo chama-lhe comunhão dos santos: reunidos para formar o corpo místico de Cristo, cujo sacramento é a eucaristia -- reconciliação, comunhão, acção de graças -- vivemos, uns pelos outros, na economia da salvação. Digo-te isto agora, pensando que Zola talvez fosse menos amargo e corrosivo, se, no seu tempo, tivesse deparado menos com uma igreja clerical que pregava penitências e indulgências, e reclamava para si o poder de atribuir ou apontar pecados e culpas e dispensar castigos e absolvições, traçando percursos salvíficos, ou condenatórios, individualizados... Simbolizando isso mesmo, anda, sub-repticiamente, por Nana, a personagem de Théophile Venot, advogado aposentado, devoto e metediço, que vai aconselhando, perdoando, limando arestas, tentando recompor, disfarçar ou fazer esquecer situações pecaminosas, para, pelo menos, salvar as aparências ad majorem Dei gloriam... Como seria Zola se, invertida a cronologia, tivesse podido descobrir, lendo Léon Bloy ou Bernanos, a sobrenatural misericórdia que, pela calada, vai vigiando as nossas vidas. Deixo-te, Princesa, este sentimento -- talvez desejo -- de que, na hora da nossa morte, seja ouvido o miserere em que pedimos que o nosso medo seja vencido pela misericórdia...
Camilo Maria
Camilo Martins de Oliveira