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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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COM ÉMILE ZOLA E GEORGES BERNANOS

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  1. NOVA CARTA OITAVA

         Minha Princesa de mim:

O mundo do teatro, na obra de Zola, em Nana, por exemplo, é representado acanalhado, imoral, quase indecente. Eça de Queiroz não será mais caridoso, mas apenas goza a cena e diverte-se. Zola é mais cáustico do que só irónico, irrita-se, despreza, mas, na realidade, vai andando por lá, informa-se, tira, meticulosamente, apontamentos, e vai também pedindo e colhendo informações para os seus romances. Mais virulento enquanto jornalista, em 1868 e, depois, em Outubro de 69, já em vésperas da queda de Napoleão III, ele publica, no La Tribune, artigos danados com a ópera bufa e o teatro de variedades, aliás parodiado pela peça que, em Nana, tornará esta vistosa cortesã, sem talentos dramáticos nem cénicos, na titular de La Blonde Vénus, que é, no romance, o ídolo e a tentação lúbrica do público parisiense : Os nossos fidalgos, os nossos filhos família vivem num riso idiota. Aplaudem as bobadas dos Srs. Offenbach e Hervé, promovem a rainhas umas miseráveis dançarinas de corda que, quais artistas de feira, dão pulinhos nos tablados dos teatros... O artigo de 3 de Outubro de 1869 é uma crítica acérrima, mordaz e sarcástica, à digressão egípcia de La Grande Duchesse de Gerolstein, de Offenbach que, pobre de mim, sempre preso em casa, ouvirei esta tarde: Ladro, assim que ouço a música desabrida do Sr. Offenbach. Odeio aquelas cascalhices, com todos os meus ódios literários. Nunca a farsa estúpida se exibiu com tanto impudor...   ...um público de claques que se pelam por uma obscenidade, bem  acentuada por um dar de ancas! ...   ...Que miséria! no dia em que uma mulher tiver a ideia sublime de se pôr de gatas no palco e desempenhar ao natural o papel de cadela errante, nesse mesmo dia Paris adoecerá de entusiasmo! O romance Nana começa mesmo com cenas do teatro Variétés, onde se estreia La Blonde Vénus, a Nana de que já tanta gente intriga: "Conheces a Nana? Sabes quem é?" Até que ela surge em palco: Nesse momento, as nuvens, ao fundo, afastaram-se, e apareceu Vénus. Nana, muito alta, muito forte para os seus dezoito anos, na sua túnica branca de deusa, com os cabelos compridos simplesmente soltos sobre os ombros, desceu para a rampa em pose tranquila, rindo para o público. E começou a sua grande ária : "Quando Vénus anda na ronda da noite..."  Logo ao segundo verso, cruzavam-se olhares na sala... Seria brincadeira? Nunca se ouvira voz tão pífia, conduzida com tão pouco método. O seu director julgava-a bem, ela cantava como uma seringa. Mas, mais adiante, o público parece esquecer-se daquela voz avinagrada, e Nana... Ela continuava a balancear-se, só isso sabia fazer. E já ninguém achava isso feio, não senhor, muito pelo contrário, os homens apontavam os binóculos. E quando ela terminava a estrofe, a voz acabou-se-lhe de vez, percebeu que não chegaria ao fim. Então, sem se inquietar, deu um golpe de ancas, que desenhou uma redondeza sob a túnica fina, enquanto, de cintura dobrada, garganta para trás, estendia os braços. Rebentaram aplausos. E logo ela  se virara, voltando para cima, deixando ver uma nuca em que cabelos ruivos punham como que uma tonsura de animal. E os aplausos tornaram-se tremendos. A mim, Princesa, a música de Offenbach tem o condão de indeferir... A vulgaridade dos recitativos, a pobreza das letras cantadas, os repetentes cancãs, os galopes que se agitam sem entusiasmar, tudo isso me entedia... Com a pretensão de as tornar divertidas  --  ou talvez mesmo paródias críticas das gentes que se afirmam na sociedade vigente  --  os autores retiram-lhes qualquer densidade humana, fazem das suas personagens marionetes sem alma. Zola, que devia acreditar cientemente nas artes como meios de transformação social, desesperava e produzia bílis em excesso...Afinal, não consegui voltar a ouvir integralmente La Grande Duchesse de Gerolstein, que todavia foi o maior (ou quase) êxito de bilheteira de Offenbach, exibindo-se em cinco teatros parisienses, em 1867. Os Contos de Hofmann já se distinguirão das óperas bufas e operetas desse judeu de Colónia (Offenbach era o nome da terra natal de seu pai), depois convertido ao catolicismo e naturalizado francês --  mas as outras obras, por muito que as anime a intenção da crítica social, militar e política do Segundo Império, são, deste, uma farsa inconsequente. Curiosamente, o êxito público-teatral de Offenbach desvanece-se com a queda de Napoleão III.  E, dez anos depois do êxito da Grande Duchesse, o júri do Salon recusará expor um quadro de Edouard Manet : Nana. O romance de Zola, com esse título, só será publicado três anos mais tarde, em 1880, mas sendo, o pintor e o escritor, grandes amigos  --  e de muita conversa no ateliê daquele  --  é natural que ocorresse o nome de guerra da cortesã Louise Duval ( personagem fictícia de L´Assomoir e, depois, de Nana) para intitular o retrato de que fora modelo a actriz, demi-mondaine e amiga de Manet, Henriette Hauser, aliás ruiva como a protagonista do romance. A mulher de Georges Bernanos chamava-se, em solteira, Jeanne d´Arc. Não só por devoção de quem lhe dera o nome, mas por genealogia: era descendente directa do irmão da Donzela de Orleães. Já te falei no Saint Dominique de Bernanos, e só lhe conheço outro ensaio hagiográfico: Jeanne, Relapse et Sainte. Adiante iremos percebendo que é, também, hagiografia à la Bernanos... Já o título nos dá um cheirinho disso: Joana, Relapsa (isto é: reincidente, teimosa, impenitente) e Santa ! Aliás, o culto de Joana d´Arc não é, em França, exclusivamente católico e religioso, antes já Napoleão I restaurara, em Orleães, em 8 de Maio, a festa de Joana d´Arc, abolida pela Revolução, e essa se celebra agora, todos os anos, desde 1920, como outro dia nacional da França, no segundo domingo de Maio. Tem sido tal culto partilhado pelo sentimento nacional que atravessa a sociedade francesa, desde a direita nacionalista, barresiana e maurrasiana, ou simplesmente monárquica, à esquerda socialista, maioritariamente laica, republicana e agnóstica, com notáveis excepçoes, como a do religioso Charles Péguy, de alma católica e partido republicano e socialista. O tal que, no seu drama Jeanne d´Arc, põe a donzela de Orleães a recitar esta oração, na 4ª feira, dia 30 de Maio de 1431, antes de ser conduzida, da sua cela em Rouen, para a fogueira a que foi condenada:

                         Ó meu Deus,

                         já que Rouen deverá ser agora a minha casa, escutai bem a minha oração:

                         Peço-vos que aceiteis esta oração como sendo verdadeiramente a minha oração de mim,

                         porque logo não estarei totalmente segura do que farei quando estiver na rua... ,

                         e na praça pública, nem do que direi.

                         Perdoai-me, perdoai-nos a todos, todo o mal que fiz, ao servir-vos.

 

                        Mas sei bem que fiz bem em servir-vos.

                        Fizemos bem em servir-vos assim.

                        As minhas vozes não me tinham enganado.

 

                       Portanto, meu Deus, tratai de nos salvar a todos, Deus meu!

                       Jesus, salvai-nos a todos para a vida eterna.

 

O Santa Joana de Bernanos começa, precisamente, lembrando Péguy, que morreu no campo de batalha da guerra de 14-18: Desde que o querido Péguy se foi para o seu fim  --  um, dois  --  com o forte bater dos pesados sapatos na estrada  --  um, dois  --  e o seu lenço aos quadrados a tapar-lhe a nuca  --  um, dois  --  na imensa poeira do Verão... queríamos que Joana d´Arc pertencesse apenas às crianças. Quem isto escreveu acredita, profundamente, que, como disse Jesus, das crianças é o reino dos céus, porque a fé não pactua com a mentira. A inocência da infância, para Bernanos, responde à pergunta que repetidamente fazemos: Ainda bate o coração do mundo? Mais le coeur du monde bat toujours. A infância é esse coração. Não fosse o doce escândalo da infância, e a avareza e a manha teriam, num século ou dois, secado a terra. É elucidativo reler certos passos da Jeanne, Relapse et Sainte para entendermos, Princesa, para entendermos este trecho da mesma prosa: A maravilha é que, dessa vez, talvez única no mundo, a infância tenha assim comparecido perante um tribunal regular, mas a maravilha das maravilhas é que esse tribunal tenha sido um tribunal de gente da Igreja. Bernanos tem uma posição firme na discussão sobre se o processo de Joana d´Arc ( que a julgou de acordo com todas as regras do direito canónico e a condenou à fogueira, sentença de que a Santa seria reabilitada postumamente, em 1456, pela mesma Igreja...)  que opunha os de parecer que se tratava de um julgamento religioso, aos que diziam ser ele político. Eu, nestas e noutras questões, sou  --  sabe-lo bem Princesa  --  como Bernanos, um anticlerical. Não por tentação laicista, nacionalista monárquica ou socialista republicana. Sou anticlerical de dentro da Igreja, teológico e cristão tradicional. Mas vamos ao tal trecho de prosa: A nossa Igreja é a Igreja dos santos. Quem dela se aproxima com desconfiança crê que só vê portas fechadas, barreiras e guichês, uma espécie de polícia espiritual. Mas a nossa Igreja é a Igreja dos santos. Para ser santo, que bispo não daria o seu anel, a sua mitra, o seu báculo, que cardeal a sua púrpura, que pontífice o seu hábito branco, os seus camareiros, guardas suíços, tudo o que é o seu mundano? quem não quereria ter a força de correr tão admirável aventura? Porque a santidade é uma aventura, é mesmo a única aventura. Quem, certo dia, o tenha percebido entrou no coração da fé católica, sentiu vibrar na sua carne mortal outro terror que não o da morte, uma esperança sobre-humana. A nossa Igreja é a Igreja dos santos. Mas quem quer saber o que são santos? Queríamos que eles fossem velhos cheios de experiência e de política, e a maioria são crianças. Ora a infância está sozinha contra todos...   ... Todo esse aparelho de sabedoria, de força, de elástica disciplina, de magnificência e de majestade nada é em si mesmo, se não o animar a caridade. Mas a mediocridade aí apenas procura um seguro sólido contra os riscos do divino. Que importa! O mais pequeno rapazinho dos nossos catecismos sabe que a bênção dos nossos homens de Igreja, todos juntos, só trará a paz às almas já prestes a acolhê-la, às almas de boa vontade. Rito algum nos dispensa de amar. A nossa Igreja é a Igreja dos santos. Aliás, nenhures quereríamos imaginar sequer tal aventura, e tão humana, duma pequena heroína que, num só dia, passa da fogueira do inquisidor para o Paraíso, debaixo do nariz de cento e cinquenta teólogos. «Se chegámos a este ponto», escreviam ao papa os juízes de Joana, « de as bruxas falsamente vaticinando em nome de Deus, como certa fêmea apanhada nos limites da diocese de Beauvais, serem melhor acolhidas pela leviandade popular do que os pastores e os doutores, acabou-se tudo, a religião perecerá, desmorona-se a fé, a Igreja é espezinhada, a iniquidade de Satanás dominará o mundo! ... » E eis que, quase quinhentos anos mais tarde, a efígie da bruxa está exposta em São Pedro de Roma  --  é certo que pintada como guerreira, sem tabardo nem túnica fendida!  --  e, a uns cem pés abaixo dela, Joana terá podido ver um minúsculo homem branco, prosternado, que era o próprio papa! Como sagazmente observou Jacques Chabot, nas sua notas acerca dessa obra, «Bernanos compôs essencialmente uma oração em forma de poema, Jeanne, Relapse et Sainte liga a reflexão sobre a política e a história a uma contemplação da tragédia da salvação. À sentença maurrasiana "Primeiro a política, ensina-nos a prática de Joana d´Arc", Bernanos substitui o desafio "Poesia e mística primeiro!" E coloca a sua obra sob a dupla invocação do poeta Péguy (ao princípio) e de "Teresinha" (no fim) ». Esta Teresinha é a de Lisieux, do Menino Jesus, a tal que proferiu uma visão que Bernanos nunca abandonou: Tudo é graça! Vai longa, Princesa de mim, esta carta. Mas prometo que, numa seguinte, te falarei ainda do processo de Joana d´Arc, e de diversa gente, desde Michelet a Claudel, ou de Verdi a Honneger. Por hoje, apenas acrescento que, cansado do cancã do Offenbach, acabei por escutar a Giovanna d´Arco, do Verdi, ópera épica, escrita para o patriotismo fervoroso do Risorgimento,  em que Die Jungfrau von Orleans (título da peça de Schiller, de 1800, que inspirou o libreto de Temistocle Solera) não morre na fogueira, antes no campo de batalha:

     Ecco!...nube dorata m´innalza...

     Oh!...l´usbergo tramutasi in ale!...

     Addio Terra!... Addio, gloria mortale...  

     Alto volo... già brillo nel Sol!

Em nuvem de oiro se eleva Joana, com a couraça a transformar-se em asas... E diz adeus à terra e à glória mortal: alto voando, já brilha no Sol! Como tu, Princesa, no coração da minha amizade! { É bonito, não é? Aplausos. Cai o pano.}

 

    Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira