Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Miscelânea de ilhas e ilhotas à solta e espalhadas pelo oceano, entre o verde campestre e azul marinho, florestas, parques arborizados, florestais, lagos, cais, canais, dezenas de pontes passeando por águas amenas e limpas, numa urbe amiga do ambiente, discreta, colorida e verde, junto à água. Eis a primeira impressão de Estocolmo, principal centro urbano e capital administrativa, política, cultural, comercial e financeira da Suécia. Conhecida por A Bela Sobre a Água ou A Veneza do Norte, integra 14 ilhas interligadas e circundadas de águas límpidas, oferecendo uma imensa variedade de atividades ao ar livre, desde canoagem, regatas de barcos à vela, passeios em caiaques, pequenas baleeiras à vela, gaivotas, barcos a remos, a vapor, a motor, ferries, de cruzeiro, iates. No Verão, apanha-se sol, nada-se e mergulha-se em locais do centro citadino. Há a pesca da perca, da truta do mar e eperlano, entre outros peixes. Quilómetros de espaços verdes, zonas protegidas e passeios pedonais para lazer e desportos. Tradicionais casas de madeira, típicos chalés (um deles, dos Abba), o primeiro museu ao ar livre do mundo (Skansen), pousadas e hotéis em várias ilhas do arquipélago, são um convite a olhar e ver, ao silêncio, sossego e tranquilidade. Este vanguardismo ambiental, ecológico e de culto da biodiversidade, também se observava pela preferência dada à alta tecnologia e energias limpas. E por um sistema de fiscalização do congestionamento, em que todo o centro da cidade estava dentro da zona do imposto de congestionamento de veículos. Daí ser tida como uma das cidades mais limpas, organizadas e de melhor qualidade de vida. Uma das mais habitáveis e qualificadas mundialmente. Em comunhão e conjugação de esforços com a ausência de poluição do meio ambiente, amor pela natureza e pelos animais. Por maioria de razão ao saber, pela guia local, serem os patos, aos milhares, um símbolo de Estocolmo, que os seus habitantes muito prezam. Só que, à época, iam rareando de dia para dia. Queixas, queixumes, denúncias, reclamações, inquéritos, investigações, policiamentos, alertas e quejandos não resultavam. Diminuíam paulatinamente em quantidade, mas não apareciam mortos, nem doentes. Os remanescentes estavam luzidios e saudáveis. Adensado o mistério, intensifica-se a fiscalização e a vigilância, em especial durante a noite, e eis que, entre o incrédulo e a estupefação, se conclui que eram furtados, cozinhados e confecionados como pato à Pequim em restaurantes chineses, fazendo as delícias das papilas gustativas dos comensais seus amantes, mas à revelia de todas as regras. A reação não se fez esperar: sancionamento dos infratores e encerramento de todos os restaurantes chineses, com a subsequente proibição de novas aberturas (desconheço até quando). Uma punição, ao mesmo tempo uma tentativa de expiação e redenção, de uma cidade tida planetariamente como das mais seguras, em contraste flagrante com a insegurança dos seus patos. Naturalmente, qual fénix renascida, os patos regressaram gradualmente e sem constrangimentos ao seu habitat, para equilíbrio e encanto de Estocolmo!
Era sábado, meio solarengo e cinzento, sem chuva, chuviscos ou aguaceiros, mas ameaçando. Num dos primeiros percursos pedonais, paragem na Rorstrandsgatan, uma cosmopolita rua popular, com cafés, restaurantes, pubs e aprazíveis esplanadas, numa atmosfera colorida de fim de tarde, onde imperava a boa cerveja. No decurso de um passeio noturno, desfiles e concertos de música ao ar livre, com músicas e atrações artísticas de várias latitudes, desde a clássica, ao rock, pop, latino-americana, anglo-saxónica, nórdica, incluindo o samba, com representações essencialmente da América Latina, a rainha da festa, dado que, pelo que vi, havia representações do Brasil, México e Cuba. Milhares de pessoas passeando, vendo, ouvindo, cantando e dançando, numa festa popular de adultos e imensa juventude. Muitos jovens adultos e adolescentes liberais no vestir, no penteado, nas cores, tatuagens, numa exposição pública aberta e descontraída de afetos e tendências sexuais. Num curto intervalo de tempo, vários jovens expelem saliva e escarros para o chão. Outros, incluindo adultos, embriagados e desinibidos pelo álcool, não se inibem de urinar, por vezes sem pudor. O estado eufórico e a massificação não justificam tudo. Como não o justifica ver ruas sujas de beatas de cigarros, pastilhas, papéis, latas, garrafas de vidro e plástico, a desmistificarem o mito do “muito ordenado” e “sempre limpo”. Cada caso é um caso, não se podendo generalizar ao todo, por certo, mas há situações, mesmo que pontuais e mais permissivas, que são mais chamativas onde menos se espera, nomeadamente para quem de visita de países pontuados como menos desenvolvidos. Também numa paragem na cidade de Karlstad, em plena rua, observo em flagrante um homem avinhado. Sempre me constou que os suecos têm a noção do ridículo, pelo que, quando bebem em excesso, são discretos e tentam ocultá-lo na sua privacidade, razão pela qual me surpreenderam tais condutas. Apesar de, nalgumas situações, lhes estar associada uma progressiva e progressista evolução e liberalização de costumes, tendencialmente a imitar pelos países menos avançados. Retive, a este propósito, a naturalidade com que jovens e casais homossexuais se relacionavam, eram aceites pelo cidadão comum e estão integrados na sociedade em geral, sem preconceitos e respeito recíproco. Foi-nos muito recomendado um bar-restaurante, essencialmente gay, onde toda a gente ia para beber e saborear o melhor chocolate de Estocolmo. O que fiz, com a família, num ambiente tolerante e bem frequentado, entre turistas e locais, sem constrangimentos ou qualquer tipo de discriminação pela diferenciação.
Cidade discreta, elegante e contida na sua dignidade e simplicidade, não é de deslumbramentos monumentais, arquitetónicos e artísticos, mas suficientemente chamativa, onde prevalecia uma notória preservação patrimonial, a nível histórico e edifícios em geral. Destaque para o Palácio Real e Render da Guarda, a Velha Catedral, o Parlamento, Palácio de Drottningholm, da Bolsa, Igreja de Riddarholms-Kyrkan (das cerimónias fúnebres reais), o Teatro Real, Nationalmuseum, o Nordiska Museet e o Jardim do Rei. O tempo escasseava, havia que estabelecer prioridades, optando-se pela Stadshuser (Câmara Municipal) e pelo Vasamuseet para visitas mais pormenorizadas. Stadshuset, um dos símbolos cimeiros de Estocolmo, mais austera e sóbria exteriormente, é mais majestosa no interior, pelo seu design. Tem como atrações maiores o Salão Dourado, o Salão Azul e o Salão da Assembleia. O primeiro, revestido com mosaicos de parede de influência bizantina e milhões de fragmentos de folha dourada, tem como tema central a Rainha do Lago Malaren. O segundo, revestido com azulejos manuais, é o salão de banquetes, nele se realizando as festividades anuais do Prémio Nobel, instituído pelo químico e inventor sueco Alfred Nobel. Interroguei-me (e interrogo-me) do porquê de apenas dois lusófonos, até agora, terem sido contemplados (o médico Egas Moniz e o escritor José Saramago, ambos portugueses), com especial ausência do Brasil. Falta de estratégia injustificadamente adiada e cada vez menos justificada? Mera injustiça? Que tem feito e poderia fazer, por exemplo, a CPLP? Fica a questão. A Assembleia, por sua vez, é um belíssimo salão onde se reúnem os vereadores camarários. No topo de uma torre com 106 m de altura, com vista plena sobre a urbe, o símbolo heráldico da Suécia, as três coroas, do século XIV. Já o Museu Vasa, o mais popular da cidade, aberto em 1990, tem como tema a recuperação e restauração da embarcação real de guerra Vasa, após ter naufragado na viagem inaugural, em Agosto de 1628. Impressiona pelo porte majestoso, pela majestosa ornamentação de mais de setecentas figuras esculpidas em alegoria e propaganda ao poder, sendo tido para muitos, à data, como o navio mais poderoso do mundo. Na zona mais antiga da cidade, em Gamla Stan, por entre ruas estreitas que lembram uma cidade medieval, há-as movimentadas para todos os gostos, incluindo pechisbeque, artesanato de qualidade e lembranças raras. O modernismo pode ser apreciado no Centro Cultural e obelisco de vidro em Sergels Torg. Inovador foi frequentar um bar todo em gelo (paredes, teto, chão, balcão, bancadas, mesas, prateleiras, acessórios), para encanto da Primogénita e da Benjamim. Além da curiosidade de ver, exteriormente e de passagem, o que era tido como o teatro mais pequeno do mundo, com 21 lugares. Evocação do dramaturgo August Strindberg, junto da sua última morada, atualmente um museu. Sem esquecer Astrid Lindgren, autora de A Pipi das Meias Altas.
Orientados por uma guia local, expressando-se em bom português, apercebi-me que para além dos emigrantes lusos serem tidos como trabalhadores e bem vistos, sol e praias, fado, futebol, o vinho do Porto e os Madre Deus eram a sinalização mais marcante de Portugal na Suécia. Houve queixas em relação à pouca difusão e incentivo do nosso idioma, a começar pela nossa embaixada. Esta omissão e ausência de estratégia (lusófona, e não apenas lusa), a que acresce a pouca divulgação em língua sueca e inglesa da cultura e ciência lusófona, inclusive via traduções, nomeadamente para a língua da globalização, não será também responsável para a pouca representatividade, até hoje, de lusófonos laureados pelo Nobel?
Foi assim que me confrontei com uma cosmopolita e inclusiva Estocolmo, onde o indígena se encontra e mistura com o emigrante, o turista, o estrangeiro, onde o mito das beldades femininas suecas, tão sacralizado, se confirma moderadamente e sem exageros. Questionei-me do porquê do síndrome de Estocolmo, associado ao assalto ao Kreditbanken, em Agosto de 1973, em que as vítimas defendiam os seus raptores após prisioneiras vários dias, com condutas não colaborantes com a justiça nos processos judiciais, quando já em liberdade. Lembrando o livro e o filme A Bela e o Monstro. Talvez Ingmar Bergman, melhor que ninguém, o pudesse analisar, dada a sua filmografia, tão analítica e introspetiva, perguntando e querendo dar respostas, numa sociedade concomitantemente contida e sigilosa, ao não exteriorizar e esconder, com reserva, reservas mentais, por ser ou poder ser publicamente ridículo. Num país também tido como vanguardista em termos humanos, de progresso e avanços civilizacionais, onde o que agora é tido para muitos como anormal e chocante, acaba por ser, no futuro, assimilado e tido como normal pelos críticos de antanho, aceitando, adaptando e imitando o que anos atrás se censurava. Escândalos associados à vida de divas suecas como Greta Garbo e Ingrid Bergman, foram por muitos absorvidos e tolerados.
Foi o que retive de Estocolmo, capital e máxima representante da Suécia, na sua comedida elegância, simplicidade e vanguardismo.
Impressões pessoais de Estocolmo, em Agosto de 2008 Texto revisto em 02 de Novembro de 2015
Dizes-me que esperas pela prometida conversa sobre o processo de Joana d´Arc. Sabes que, numa perspectiva histórica, ele é um episódio da Guerra de Cem Anos (1337-1453), mais precisamente do período que se inicia com a concorrência, em França, de uma monarquia anglo-francesa sob Henrique IV e, à morte deste, em 1413, sob o seu filho, o maior dos Lancaster, Henrique V de Inglaterra, que vence a batalha de Azincourt (25 de Outubro de 1415) e encurrala Carlos VI, o rei francês. Este morre em 1422, tal como Henrique V, cujo filho, o VI do nome, é ainda criança de leite. [O pobre enlouquecerá mais tarde e será derrotado, até em Inglaterra, quando a casa de York leva a melhor sobre os Lancaster, na Guerra das Duas Rosas ]. O novo rei de França, Carlos VII, parecia duvidar das suas capacidades e até dos seus direitos. Valeu-lhe a intervenção de Joana d´Arc, desde a libertação de Orleães (8 de Maio de 1429) à sua sagração como rei, na catedral de Reims (17 de Julho). A importância decisiva dessa intervenção é historicamente realçada pela perseguição que à Donzela moverá o duque de Bedford - tio e regente do infante-rei Henrique VI, este, aliás, também coroado rei de França em Notre Dame de Paris, em 17 de Dezembro de 1431 - até a capturar em Beauvais, e a entregar a um tribunal religioso, que a condenará, por crimes de heresia e bruxaria, à fogueira ( 30 de Maio de 1431).
O movimento que a Donzela de Orleães dinamizara continuou, através de batalhas e tréguas, de negociações e conquistas (como a retomada de Paris aos ingleses, em 1436), até que a loucura de Henrique VI e a Guerra das Rosas esmorecessem a presença e, depois, as pretensões inglesas em França. De uma perspetiva política, a aventura de Joana d´Arc desenha-se numa Europa saída do Grande Cisma do Ocidente, com as nações da cristandade divididas entre a obediência aos papas de Roma (Portugal, Inglaterra, Hungria, Polónia, Escandinávia, Veneza e grande parte do Sacro-Império) e os de Avignon (França, os reinos de Espanha e Nápoles, Escócia, principados do Império mais próximos de França), em que a estrutura feudal vai desaparecendo, concomitantemente ao desenvolvimento do comércio e da banca, das cidades e das universidades, esse prenúncio da cultura europeia da Renascença, cujos apoios socioeconómicos haviam surgido com a revolução urbana do século XIII, uma nova civilização. Vão crescendo - e afirmando-se - estados-nações. O século XIII, como já alguém apontou, é também aquele em que o cristianismo deixa de ser uma religião minoritária na Europa. Na verdade, graças sobretudo à missionação das ordens mendicantes (franciscanos, dominicanos, carmelitas), o povo, todo o povo -- mesmo o que, em regiões remotas, se entregava ainda a cultos antigos -- é chamado à religião de Cristo e à sua Igreja. Democratiza-se a cristandade. E para que, em tal alargamento, não se esqueçam ou distorçam as verdades da fé ensinada, insiste-se na pregação da Palavra, na sua ilustração (até teatral, com os autos representados nas catedrais e igrejas), na popularização de devoções simples (como a recitação do ângelus e do rosário), na obrigação de certos actos religiosos (missa, confissão, comunhão, peregrinações...). É neste clima de nacionalismo nascente e de aprofundamento do sentimento religioso que é nada e criada Joana d´Arc. E será por ela reivindicar as "Vozes" (São Miguel, Santa Catarina, Santa Margarida) pelas quais Deus a manda libertar a França dos ingleses, que sobre ela, camponesa analfabeta, conhecida pela sua piedade e bons costumes, cairá a sentença dos inquisidores, doutores e teólogos. O poder político e militar que a captara poderia tê-la logo morto no campo de batalha. Ao fazê-la prisioneira e trazê-la perante um tribunal eclesiástico, antes pretendeu destruir o mito fundador e animador de uma nova nação francesa e assim isolar, ainda mais e por conivência com heresias e superstições, o próprio Carlos VII, que de tímido rei se tornaria, afinal, no vencedor... Mas conseguiu apenas transformar a pastorinha de ovelhas numa condestável que, depois de morta, se foi tornando no símbolo da independência francesa, ao longo de séculos e para arautos e devotos de variegadas origens sociais, políticas e religiosas. Mas não foi linear tal percurso, nem sequer no seio da Igreja católica e francesa: na corte real, como no topo da hierarquia eclesiástica, ou ainda, mais tarde, para o racionalismo humanista do Renascimento -- sem falar na aversão protestante dos huguenotes -- foi-se preferindo, nos séculos XV e XVI, dizer que a vitória da França fora por vontade de Deus, manifestada e realizada através da monarquia autóctone. Vão surgindo umas excepções literárias, vai-se mantendo uma devoção popular, mas predomina essa atitude racionalista de contestação do milagre, pelos séculos XVII e XVIII, mesmo ridicularizando-o, como Voltaire em La Pucelle ou Beaumarchais nas Lettres sérieuses et badines... A reabilitação literária de Joana d´Arc virá do estrangeiro, Princesa, volto assim a falar-te de Schiller e da sua Jungfrau von Orleans.
O drama de Schiller, escrito em Leipzig, em 1801, enaltece a força anímica e o papel decisivo, para a vitória francesa, da Donzela. Mas foge bastante à história contada pela tradição, bem como ao que dela sabemos a partir de documentos coevos. Nesta peça, Joana também mata inimigos em batalha, apaixona-se por um soldado inglês, que derrubara, quando lhe tira o elmo e descobre o lindo rosto, é afastada e presa pela corte e pelo exército francês, para finalmente se libertar, escapar e acorrer ao campo de uma batalha que as forças de Carlos VII perdiam, inverter a situação e morrer heroica e gloriosamente. Tal versão inspirou libretos de ópera, designadamente uma de Tchaikovsky e outra de Verdi, de que já te falei. Nesta, o número de personagens é reduzido, não há amores ingleses, antes uma proximidade afectiva de Joana e Carlos VII, adivinhada e contrariada pelo ciúme do pai dela que, ao vê-la moribunda, depois de ter sacrificado a sua vida para salvar a do rei, implora perdão: Põe a tua mão sobre o meu cabelo branco e lava-me da culpa... A ópera é de 1845, continuamos em pleno romantismo. Além da celebração do 8 de Maio (aniversário da libertação de Orleães em 1429), instituída por Napoleão I, Joana d´Arc será lembrada e invocada, sucessivamente, pelo novo patriotismo da restauração monárquica e do segundo império. Mas será Michelet, republicano e anticlerical, historiador da França, como da sua Revolução, que fará de Joana uma figura heroica e nacional, tal como, já no campo religioso, Monsenhor Dupanloup, bispo de Orleães, começará, por 1850, a preparar o caminho do culto católico de Santa Joana, que será beatificada em 1909, por Pio X, e canonizada por Bento XV em 1920. O patriotismo místico de Bernanos não é galicista, chauvinista ou xenófobo. Atrevo-me a dizer-te, Princesa, que antes é um profundo sentimento de identidade, não racista mas espiritual, definido pela fidelidade à construção histórica de valores comunitários em torno da própria independência. Escreve, nesse texto profético, imediatamente anterior à humilhação inicial da França na 2ª Grande Guerra, Nous autres Français (1938/39): Libertar Orleães, levar o Delfim até Reims, atirar os bretões ao mar, vaidade das vaidades! -- Fazer frente aos doutores, dar respostas insolentes ao Inquisidor da Fé, "entregar-se a Deus em vez de aos homens da Igreja", manter a palavra dada, instituir-se juiz da legitimidade dos príncipes, quando a própria Santa Sé prefere não tomar partido, que presunção sacrílega! Não foi aos homens da Igreja que se confiou a honra francesa... ... Nem a honra, nem a terra francesa foram cometidas à guarda dos homens da Igreja, a nossa terra e a nossa honra são uma só! Pertence-nos esse ser temporal. De mãos cheias! É certo que são coisas perecíveis, concordamos. Que importa? que nos importa que sejam perecíveis, posto que Deus também nos fez mortais, e que só de nós sempre dependerá morrermos antes delas? Não há honra alguma em ser-se francês, nenhuma gloríola. E deixem-me também dizê-lo, uma vez por todas : tampouco há honra em ser-se cristão. Não fomos nós a escolher. «Sou cristão, reverenciem-me», dizem à saciedade os Príncipes dos Sacerdotes, os Escribas e os Fariseus. Antes deveríamos dizer, humildemente: «Sou cristão, rezai por mim!» É interessante entroncar este texto noutro, de Michelet, na sua Histoire de France (Paris, 1876): A acreditarmos num dos seus assessores, ela teria dito que, sobre certos pontos, não acreditava nem no bispo, nem no papa, nem ninguém; que se atinha ao que de Deus tinha. A questão do processo ficou assim posta na sua simplicidade, na sua grandeza, e assim se abriu o verdadeiro debate: de um lado, a Igreja visível e a autoridade; do outro, a inspiração atestando a Igreja invisível... Invisível aos olhos do vulgo, mas a piedosa menina via-a claramente, contemplava-a incessantemente, escutava-a em si mesma, trazia no coração esses santos e esses anjos... Para ela, a Igreja estava ali, ali onde Deus irradiava; alhures, tudo era tão escuro!... Tal sendo o debate, não havia remédio possível: a acusada devia perder-se. Ela não podia ceder, não podia, sem mentir, negar o que tão distintamente via e ouvia. Por outro lado (podia dizer-se), a autoridade continuaria a ser autoridade se abdicasse da sua jurisdição, se não castigasse? A Igreja militante é uma Igreja armada da espada de dois gumes, contra quem? Aparentemente, contra os indóceis. É esta exceção do ser,este primado da fidelidade a Deus sobre a obediência ao reino dos homens, que destaca a santidade e coloca o povo face à interrogação do sobrenatural como destino. A história de Joana d´Arc é universal, mais do que só francesa, mais do que só católica. O insólito tem força própria, a insolência sacraliza-se quando inspirada pela vontade divina. O curioso, aqui, é que a versão anticlerical do processo condenatório de Joana d´Arc, dada por Michelet, protestante de cepa huguenote, mas republicano francês, afastado da confissão e da prática religiosa cristã, nos fala da Igreja invisível ... invisível aos olhos do vulgo, mas a piedosa menina via-a claramente... ... escutava-a em si mesma, trazia no coração esses santos e esses anjos. Surge assim uma dimensão mística, em que, mais tarde, respirará o monárquico católico que sempre foi Georges Bernanos. A grandeza da figura mártir da Donzela de Orleães é inspirada pela graça divina que a destaca em contraste com o magistério eclesiástico que a julgou por influência política, mas a condenou por razões de ordem religiosa, reconhecendo-a culpada de heresia e bruxaria, pois ela, finalmente, não abjurou das "Vozes" que a comandavam. Essa fidelidade da consciência de Joana d´Arc , que a liberta da servidão ao mundo temporal -- mesmo clerical -- irá impô-la ao respeito de muitos alienígenas, desde Anatole France que, na sua Vie de Jeanne d´Arc (1908), celebra o valor histórico e popular da "camponesa ingénua e pura... ... de uma devoção sinceramente visionária", ao britânico Bernard Shaw que, no seu Saint Joan, faz dela protestante, quiçá uma santa protestante. Facto é que, a versão dita "anticlerical" do processo, essa que aponta à Igreja visível, incluindo a Inquisição, a responsabilidade da condenação por motivos do foro religioso, talvez por isso tenha promovido o interesse de muitos pela história de Joana d´Arc, mas, quase sempre, resultou mais em admiração -- ou mesmo culto -- da "Santa" do que em ataques às instituições eclesiásticas. Do lado católico convencional, foi-se pretendendo, quer que o processo fora essencialmente político, ainda que entregue a um tribunal eclesiástico, de traidores vendidos aos ingleses, quer, mais palidamente, o que escreveu um jesuíta do século XX, em nota de missal precedendo o próprio da missa da festa de Sta. Joana d´Arc: Feita prisioneira, vendida, acusada de bruxaria, julgada por motivos políticos por um tribunal religioso, ela foi finalmente condenada à morte. Todavia, basta ler os autos para nos inteirarmos de que as razões invocadas na sentença à morte de Joana foram de natureza religiosa. Não me ocorre qualquer passo de Zola sobre este caso, nem acerca da sua heroína. Será esquecimento, ou ignorância minha, mas também penso que o drama místico de Joana d´Arc, bem como a áurea que ganhou entre gente de diferentes campos políticos e religiosos, não fosse tentação para um analista de estrutura naturalista. É demasiado sobrenatural. Melhor serviu para o mistério lírico, ou oratório, de Paul Claudel e Arthur Honneger, Jeanne d´Arc au Bûcher (1938), que Roberto Rossellini adaptaria ao cinema, com Ingrid Bergman na protagonista (Giovanna d´Arco al rogo, 1954). A actriz sueca devia ser fã da Santa, pois já em 1948 a interpretara no Joan of Arc do Victor Fleming, de que diria, em 1952: Nunca teria aceite aparecer neste filme se antes não tivesse conhecido o Jeanne d´Arc do Dreyer. O filme do mestre dinamarquês -- que foi considerado um dos dez melhores de sempre -- é um grito de revolta contra a injustiça da justiça, mas é, sobretudo, A Paixão de Joana d´Arc. Dispensando a maquilhagem, para dar maior verdade e densidade humana aos rostos que filma em grande plano, toda a pesada atmosfera de um processo - aí narrado com fidelidade aos seus documentos coevos - se impõe ao espectador. Traduzo-te, Princesa, este testemunho de Valentine Hugo, que assistia às filmagens (em 1927): Foi particularmente impressionante o dia em que, num silêncio de sala de operações, à luz pálida de uma manhã de execução, se cortaram rentes os cabelos da Falconetti. A nossa sensibilidade, ainda que sujeita a preconceitos antigos, estava comovida, como se a marca infamante fosse ali realmente aplicada. Os electricistas, os maquinistas, retinham a respiração, e tinham os olhos cheios de lágrimas. A Falconetti chorou mesmo. Então, o realizador aproximou-se lentamente da heroína, recolheu-lhe lágrimas com os dedos e levou-as aos lábios... Marie Falconetti, cuja interpretação é inesquecível, nunca tinha feito cinema, desempenhava o papel de Miche numa bulevardice do teatro da Madeleine. Mas não era Nana. Desde Georges Méliès (em 1900) a Cecil B. De Mille (logo em 1917) ou Otto Preminger (levando ao cinema a Saint Joan do Bernard Shaw, em 1957, com a Jean Seberg), muitos realizadores trataram o tema. Mas para terminar esta carta, venho lembrar-te Le Procès de Jeanne d´Arc do Robert Bresson, que vimos em 1963, quando já tínhamos começado a nossa vida adulta... Fidelíssimo, como Carl Dreyer, às minutas do processo, Bresson procura restituí-lo na sua integridade intrínseca: Joana falava uma língua admiravelmente perfeita. Todo o seu processo é uma obra prima. Propositadamente, não quis tomar liberdades com a história. Os interrogatórios só servem para provocar, no rosto de Joana, as suas profundas impressões, para gravar, no filme, os movimentos da sua alma. O assunto verdadeiro é Joana votada à fogueira, e a sua longa agonia. É também a sua aventura interior e o enigma, não elucidado, dessa maravilhosa rapariga, do qual nunca encontraremos a chave. E, finalmente, o tema é a injustiça tomando a figura da justiça, a razão seca lutando contra a inspiração, a Iluminação. Dou-te a mão, como, há tantos anos, nos teríamos dado no cinema, e deixo-te a pensarsentirmos tudo isso.