CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA
Minha Princesa de mim:
Vezes demais, quando nos pomos a analisar acontecimentos e a procurar em que circunstância se situam, ou que outros factores, intrínsecos, ou circunstanciais ainda, presentes ou passados, os possam explicar, caímos nas armadilhas do preconceito ou da especulação. Ao iniciar a escrita desta carta, Princesa, tenho consciência e receio disso mesmo. Eis porque recorro a outros relatos, opiniões e juízos -- não tanto por fazê-los meus, mas para balizar o meu discurso. Alertou-me a curiosidade preocupada o facto de toda a gente falar e pronunciar-se sobre os atentados terroristas em Paris, em 13 de Novembro de 2015, azarenta sexta feira, enquanto quase passava despercebido o que, horas antes, na véspera desse mesmo dia, ceifara em Beirute, no Líbano, quarenta e três vidas inocentes... Já antes, em Ancara, outro atentado matara 102 pessoas; e o MetroJet russo, explodido por bomba no céu do Egipto, 224. Os autores de todos esses atentados agiram a mando do Daech. Termos noção de que assim foi ajudar-nos-á a entender melhor as razões destas recentes atrocidades: porque decidiu agora o autoproclamado Estado Islâmico lançar tais ofensivas de terror? Parece-me útil procurarmos razões estratégicas no contexto da guerra presente, perceber também as suas raízes históricas e, finalmente, debruçarmo-nos sobre o fascínio psicológico que acções de terror, tantas vezes suicidas, exerce sobre gente tão jovem.
Os analistas têm concordado nas razões estratégicas de ambos os atentados (Beirute e Paris): nos dois casos (e quem nos diz que não haverá outros mais, dentro em breve?) há um propósito de desforra dos recentes ataques e desaires sofridos pelo Daech no que considera "seu" território, como se dissesse: vocês vêm cá, nós vamos aí! Também se pretende assim criar um clima de ameaça e medo, quase um anúncio apocalíptico. E, finalmente, provocar ressentimentos e divisões: no caso do Líbano, entre muçulmanos chiitas e sunitas; no palco europeu, entre o resto do mundo e o mundo islâmico. Pretendendo-se agir em nome de Alá, o que se procura, afinal, é fomentar a desconfiança e o ódio cultural e religioso. É evidente que os atentados em Paris têm (têm tido, tiveram) um efeito mediático muito maior do que a carnificina dos dois ataques suicidas em Bourj El-Barajneh, no subúrbio sul de Beirute. Mas devemos não esquecer que, não só o objectivo de desestabilização é o mesmo, como, ainda, que no caso do Líbano se visou atingir um tecido social e político muito mais frágil e próximo do epicentro deste sismo terrorista: as coligações políticas libanesas, chita e sunita, ambas têm procurado ultrapassar as suas divergências, a fim de conduzirem a necessária luta contra a "djihad". É tempo, também, de europas e natos olharem menos para o umbigo, e perceberem melhor a importância estratégica dos países circundantes do centro sírio-iraquiano -- aliás mais "invadidos" por refugiados de bombardeamentos e sevícias várias do que a queixosa Europa -- como a Jordânia e o Líbano. Para não falar de um novo cuidado na condução das relações com o Irão e a Turquia, as nações curda e palestina, Egipto, Israel e Arábia Saudita...
Digo tal, por me parecerem um tanto assustadores o esquecimento da história e o alheamento da realidade presente que a sociedade europeia hoje manifesta. Começando pelo último, como é possível não se entender mesmo, e bem, que vivemos num mundo da maioríssima proximidade, ou que os pobres refugiados que todos os dias procuram acolhimento em nossa casa são nossos muito vizinhos? Que a sua desgraça não é um problema só deles, mas nosso, muito nosso? Teremos, penso, certamente, nós e a nossa cultura, mais amigos esperançados nessa gente que foge do horror, do que nos ressabiados que criámos no nosso seio e são hoje os desesperados de nós, os tais que alinham no Daech... Recorro ao artigo de Vasco Pulido Valente -- com quem nem sempre concordo -- no Público de 15 de Novembro: Não esqueçamos que a Síria foi uma colónia francesa entre 1919 e 1941, quando a Inglaterra expulsou as tropas de Pétain, para grande indignação do general De Gaulle e desgosto do Império. Durante todo o século XIX e grande parte do século XX, as potências nunca deixaram de se guerrear pelo domínio do Mediterrâneo oriental e da longa costa da África do Norte: a Inglaterra, a França, a Espanha, a Alemanha e, depois de 1945, a própria América... ... O Ocidente, por razões que variaram com a época e o país, sempre se achou dono da África do Norte e do Médio Oriente. Estes refugiados de hoje, digo eu, são também fruto das divisões e zangas religiosas, políticas, sectárias e nacionais, que as potências europeias, a mando das suas próprias razões de ganância petrolífera e outras preocupações estratégicas, por lá andaram a semear e desenhar. Por outro lado, a partir dos finais do século XVIII -- recorde-se a expedição de Napoleão ao Egipto, por exemplo -- os ideais do Iluminismo, como os da Revolução Francesa, foram chegando ao mundo islâmico, onde, aliás, tal como viria a acontecer no Japão da era Meiji, se despertou uma percepção da superioridade científica, técnica, económica, militar e política do "Ocidente" e, em elites locais, um desejo de emulação. O islão -- como bem o exemplifica a implantação, por Ataturk, da república laica na Turquia, em 1924 -- dividiu-se entre ocidentalizados, ou ocidentalizantes, e defensores da tradição de estados teocráticos e do primado do direito religioso (nós diríamos canónico). Este trauma perdura, o islamismo hodierno não só separa dois mundos -- o islâmico e o não islâmico -- mas ainda, além de chiítas, sunitas, etc., os ocidentalizados e os outros. E estas divisões explicam muito dos ódios em curso...
Encadeio aqui com o psicanalista Fehti Benslama que, em entrevista a Le Monde, no passado 14 de Novembro, chamava a nossa atenção para que os traumatismos históricos têm uma onda de propagação muito comprida, sobretudo quando uma ideologia os conecta às massas. As gerações transmitem-nos de tal modo que os indivíduos os vivem como se fossem herdeiros de infâmias, conhecendo, ou não, os factos. O ano de 1924 marca o fim do último império islâmico [ é quando a República Turca sucede ao Império Otomano], com 624 anos de idade, a abolição do califado, isto é, do princípio da soberania teológico-política no islão, e a fundação do primeiro Estado laico na Turquia. O território islâmico é despedaçado e ocupado pelas potências coloniais, os muçulmanos passam da posição de senhores para a de subalternos em sua casa. É o desabar dum pedestal com 1400 anos, é o fim da ilusão da unidade e do poder. Instala-se então o fantasma melancólico da dissolução do islão num mundo que ele já não governa. O sintoma dessa fractura histórica é o nascimento, em 1928, das Irmandades Muçulmanas, movimento que é a tradução, numa organização, do que poderíamos chamar a teoria do "ideal islâmico ferido, que deve ser vingado. O islamismo promete o restabelecimento do califado, pela derrota dos Estados. Essa reacção é proteiforme: literalista, puritanista, cientista, política ou guerreira. Veicula a recordação do traumatismo e projecta-a sobre a actualidade desastrosa de populações que sofrem expedições militares ocidentais e guerras civis. Antes de voltarmos a Fehti Benslama, que diz que, para os desesperados, o islamismo radical é um produto excitante, olhemos para o que os vários serviços secretos revelam sobre o recrutamento de jovens para a djihad.
Muitos deles são estrangeiros, quiçá metade de origem francesa, nem todos de famílias muçulmanas ou de etnias não europeias, tampouco de bairros pobres ou marginais, mas cada vez mais vindos da classe média, com aumento sensível da percentagem dos de sexo feminino, bem como de titulares de diplomas e habilitações científicas e técnicas de nível superior. Os mais qualificados trabalham na retaguarda, exercendo funções de organização e planeamento, ou de investigação e gestão de produção. Apesar de se registar a conversão ao islão de 30 a 40% desses recrutas, as condições financeiras oferecidas -- bem como outras compensações de ordem material e sexual -- parecem ser mais determinantes do que a religião nos processos de adesão ao Daech. Mas está-se ainda longe de uma tipologia rigorosa dos militantes desse movimento terrorista. Pessoalmente, tenho reflectido mais sobre o porquê do êxodo de jovens criados nas nossas sociedades de afluência, abastadas e consumistas, para um mundo desconhecido e em clima de fanatismo, ódio e guerra. Alertou-me para uma reflexão mais profunda um passo da entrevista do doutor Fehti Benslama, professor de psicopatologia na universidade de Paris-Diderot, e que participa, a convite do governo francês, na criação de um centro de acolhimento de jovens que regressem da Síria. Depois de assinalar que dois terços dos radicalizados recenseados em França têm entre 15 e 25 anos, e um quarto deles são menores, diz o seguinte:
A grande maioria está nessa moratória da idade adulta que confina com a adolescência persistente. Este período da vida é levado por uma avidez de ideais sobre fundo de remodelações dolorosas da identidade. O que hoje chamamos "radicalização" é uma configuração da perturbação dos ideais da nossa época. Eis o ângulo de visão próprio à psicanálise: os ideais através dos quais se ligam o individual e o colectivo na formação do sujeito humano. A oferta djihadista capta jovens que estão em angústia por sentirem falhas identitárias importantes. Propõe-lhes um ideal total que cumula essas falhas, permite uma recriação de si, quiçá a criação de um novo eu ou, por outras palavras, uma prótese de crença que não sofre qualquer dúvida. Esses jovens estavam portanto à espera, sem necessariamente mostrarem perturbações evidentes. Em certos casos vivem tormentos assintomáticos ou dissimulados; são esses os mais imprevisíveis, por vezes os mais perigosos, como traduzem, depois da passagem a actos violentos, testemunhos tais como: "Era um rapaz simpático, sem problemas, amigo de ajudar, etc..." Noutros casos, as perturbações já se tinham manifestado através da delinquência ou da toxicomania.
Esta última referência lembra-me que, entre os perpetradores dos atentados de 13 de Novembro, estavam precisamente indivíduos com passados de crime e de droga, alguns já com cadastro policial e penas mais ou menos cumpridas. A correcção de algum laxismo policial e judicial compete às autoridades competentes. A condução das, infelizmente necessárias, acções militares também. A mim, a todos os cidadãos, cabe acompanhar esses esforços, democraticamente, com a devida atenção à sua justiça. Mas, sobretudo, somos chamados a reagir sem ódio nos nossos corações, e a procurar entender as circunstâncias e causas de tanta desgraça. Porque o que mais nos deve afligir -- para além do mal que vamos vendo e da necessidade de o combater -- é a sociedade e a cultura que temos consentido, e até fomentado, com leviano esquecimento do nosso fundamental dever de procurar sempre o modo humano do tempo, isto é, os valores que nos guiem no respeito fiel da nossa dignidade e grandeza.
Dou-te a mão -- despedindo-me com a emoção sentida por tudo isto -- para que rezes comigo, hoje à minha maneira: não para pedir o que penso, desejo ou quero, mas para simplesmente nos pormos à escuta de Deus
Camilo Maria
Camilo Martins de Oliveira