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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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ATORES, ENCENADORES - LI

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LOPES DE MENDONÇA CRITICA OS ENSAIADORES

 

O conceito de encenação, no sentido abrangente de transformação de um texto num espetáculo teatral - e o texto até pode não ser, na sua criação inicial, um texto dramático - envolve uma pluralidade de conceções e intervenções a nível da cena propriamente dita: desde a definição do âmago psicológico e dramático dos personagens, até à orientação e correção dos atores, ao envolvimento cénico e cenográfico, à marcação de cena, à adequação dos aspetos plásticos – cenários, figurinos – em suma, repita-se, à transformação concreta de um texto num espetáculo.

E tudo isto significa uma visão e interpretação global do próprio texto, e, a partir dessa conceção global, significa a orientação dos atores, cenógrafos e técnicos de cena e sobretudo, a concretização dinâmica do texto perante um público que, em rigor, até poderá ser um único espetador (o que não é desejável mas já se viu…) mas tem de constituir a “transmissão” das conceções e das palavras do dramaturgo para os que assistem, através dos corpos e das vozes dos que representam.

Esta conceção global existe desde que existe teatro: mas o conceito de encenador, como criador de tal multiplicidade de intervenção - esse é relativamente recente e envolveu uma modernização da globalidades estética e dinâmica do espetáculo teatral.

Henrique Lopes de Mendonça (1856-1931), dramaturgo, autor de cerca de 35 textos teatrais, é sobretudo recordado pelo extraordinário poema que Alfredo Keil musicou e que constitui desde 1911 o Hino Nacional - “A Portuguesa”, notável poema heroico que todos conhecem mas de que muitos ignoram a totalidade das suas estrofes…

Pois no princípio do século passado, Lopes de Mendonça proferiu uma conferência editada em 1901, que intitulou “A Crise do Teatro Português” (já na altura…). E lá encontramos uma abordagem global do conceito, função e intervenção do “ensaiador”, assim designando o que hoje consideramos e denominamos encenador - na globalidade da conceção da dinâmica do espetáculo teatral, desde o texto à intervenção dos atores, à construção cénica propriamente dita e sobretudo, globalmente, à transformação do teatro em espetáculo destinado a um público que o entenda e compreenda - e nem que seja, repito, um único espetador…

Ora bem: esta conceção global da encenação está na essência do próprio espetáculo teatral, mas só começou a ser definida e teorizada na transição dos séculos XIX-XX: em rigor, podemos lembrar que até Gil Vicente encenou textos seus. Camões, no “Auto de El Rei Seleuco”, inclui um diálogo entre Estácio de Sá e o Moço, diálogo esse que precede a representação do Auto propriamente dito: e aí, aborda implicitamente a função do que viria a chamar-se encenador, quando ambos os personagens aludem ao espetáculo que será em breve representado em casa de Estácio de Sá:

“Estácio - São já chegadas as figuras?/ Moço - Chegadas são elas quase ao fim de sua vida”/ Estácio - Como assim?/ Moço - Porque foi a gente tanta, que não ficou capa com friza, nem talão de sapato que saísse fora do couce. Pra vieram uns embuçadetes e quiseram entrar por força; ei-lo arrancamento na mão: deram uma pedrada na cabeça do Anjo e rasgaram uma meia calça ao Ermitão”…

Veja-se agora a cena inicial do “Auto da natural Invenção” de António Ribeiro Chiado, também referente a uma cena de teatro:
“Dono – Almeida!/ Almeida – Senhor?/ Dono – Vem cá, vem cá! Sabe se há-de tomar o porto/ hoje este auto, ou se é morto./ Almeida – E o autor onde está?/ Dono – Em casa de teu avô torto/ ou marmelo pela perna!”…

E os exemplos podem multiplicar-se numa visão global da dramaturgia e do espetáculo, até ao apuramento do conceito de ensaiador, visão essa ainda dominante até pelo menos ao início do século XX: mas o conceito de encenação começava a afirmar-se.

Em 1901, Henrique Lopes de Mendonça, numa conferência que intitulou “A Crise do Teatro Português,” queixa-se da “escassez de ensaiadores suficientemente hábeis, com uma cultura desenvolvida e atualizada, um conhecimento mais do que perfunctório da sua arte e do moderno movimento teatral. Com honrosas exceções (…) o que por aí se vê em marcação de peças, em mise-en-scène, em agrupamento de massas, é de uma indigência verdadeiramente lastimosa, de um ronceirismo e de uma monotonia deveras aflitivos, de uma ingenuidade quase primitiva”… nada menos! (cit. em Eugénia Vasques “Para a História da Encenação em Portugal” – 2010 pag.144).

E em 1908, no “Diccionario do Thatro Portuguez”, Sousa Bastos dá já uma curiosa e para a época bem percursora definição do que denomina “Enscenação”, assim mesmo, e que transcrevo na íntegra:

“Enscenação – é a arte de regular a ação scénica, considerada sob todas as faces e todos os aspetos, não só no que diz respeito aos movimentos isolados ou combinados de cada um dos personagens que concorrem para a execução da obra que se representa; não só no que respeita às evoluções das massas: grupos, marchas, cortejos, combates, etc.; mas também a harmonizar esses movimentos, essas evoluções com o conjunto e os detalhes do scenário, vestuário e adereços. Geralmente no teatro quando se referem à montagem, ensemble e apuro de uma peça, não dizem escenação mas aplicam o termo francês mise- en- scene”.

E deixaremos para próximo artigo a evocação de António Pedro, do seu “Pequeno Tratado de Encenação” e do Teatro Experimental do Porto.

 

DUARTE IVO CRUZ