Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

Untitled.jpg

   Minha Princesa de mim:

  
   A tragédia Édipo Rei, de Sófocles, será, com a sua Antígona, a peça mais famosa e representada de todo o teatro grego antigo. Ambas foram retomadas, em francês, por Jean Cocteau, que produziu o livreto da ópera Antígona de Honegger. Aliás, Igor Stravinsky  --  cuja ópera-oratório Oedipus Rex  escutei esta tarde  --  confessa que, quando lhe ocorreu a ideia de pôr em música o seu Édipo, convidei Jean Cocteau a colaborar, pois admirava muito a sua Antígona. Participei-lhe as minhas ideias e avisei-o de que não queria um drama, mas sim uma "natureza morta". Disse-lhe também que queria um livreto convencional com árias e recitativos, mesmo sabendo que o convencional não era o seu forte. Pareceu aprovar vivamente o projecto, mas não o facto do seu texto ter de ser traduzido em latim, mas a primeira versão do seu texto correspondia precisamente ao que eu não queria: um drama em música numa prosa de brilho factício. Cocteau foi mais do que paciente comigo e as minhas críticas. Reescreveu duas vezes o seu texto e teve mesmo de o submeter a um último corte... Neste texto, o que será mesmo de Cocteau? Na verdade, sou incapaz de o dizer; talvez a plástica do verbo, mais do que a sua forma... Mas a música vai para além das palavras e inspira-se directamente da tragédia de Sófocles. Fosse como fosse, o certo é que o poema francês de Cocteau foi vertido para latim pelo padre jesuíta Jean Daniélou, com excepção das vozes do narrador. E este, pela pena de Cocteau, diz, logo a abrir a ópera, em bom francês:

       Espectadores, ides ouvir uma versão latina de Édipo-Rei.

       A fim de vos poupar qualquer esforço de orelhas e de memória, e como a ópera-oratório apenas conserva das cenas um certo aspecto monumental, ir-vos-ei recordando, passo a passo, o drama de Sófocles.

      Sem que o saiba, Édipo trava uma luta com as forças que o vigiam do outro lado da morte. Armam-lhe, desde que nasceu,uma armadilha que vereis fechar-se aqui.

   Para lá da desforrazita irónica do poeta face às exigências do compositor, estas frases de abertura encerram uma intuição da essência desta tragédia, como aliás Raphaël Dreyfus viria a defini-la: O tema de Édipo-Rei não é o cumprimento do destino de Édipo, mas a descoberta, por Édipo, do seu destino cumprido: não é a marcha inexorável da fatalidade, mas a fatalidade da ignorância, a impossibilidade em que estamos de ver claramente o nosso destino antes dele se consumar. E tal fado surge mais claro pela voz do corifeu que termina o drama de Sófocles, do que pelas palavras do coro de Stravinsky que, nesse final, exclama: Ecce! Regem Oedipoda, foedissimum monstrum monstrat, foedissimum beluam... (Eis o Rei Édipo, mostra-se como o mais odioso dos monstros, como a mais imunda das bestas!). Mas o autor grego antigo sabiamente escreve, para a boca do chefe do coro, este final: Gente de Tebas, minha pátria, olhai para este Édipo, que sabia os famosos enigmas. Triunfava. Ninguém podia, sem inveja, ver a sua fortuna. Em que turbilhão de horríveis azares ele afinal caiu! Não podemos julgar feliz qualquer mortal antes de ver o seu último dia, antes dele ter chegado ao fim da vida sem ter sofrido!... É também pela voz do corifeu que termina a Antígona, primeira tragédia do que podemos considerar uma trilogia de Sófocles, com Édipo-Rei no meio e Édipo em Colono a fechar: Como é a sabedoria o princípio da felicidade! Não devemos nunca ser ímpios com os deuses. As grandes máximas dos orgulhosos trazem-lhes muitas contrariedades. Só com a idade aprendem a sageza. As últimas palavras que, em Colono, Édipo dirige às filhas, Antígona e Ismena, que o guiavam desde que ele arrancara os olhos, e a Teseu, rei de Atenas, dizem muito sobre a cegueira da condição humana e a fatalidade da morte: Minhas filhas, segui-me; sou eu quem agora vos guia, a vós que guiáveis vosso pai. Vinde, não me toqueis. Deixai-me encontrar eu mesmo o túmulo sagrado, em que devo ser enterrado neste país. Por aqui, sim, vinde por aqui. Hermes o Escolta guia-me por aqui com a deusa dos infernos. Ó luz tenebrosa, que foste a minha luz, o meu corpo toca-te pela derradeira vez. Vou esconder no Hades o termo da minha vida. E tu, caríssimo anfitrião, e o teu país, e os teus servos, sede felizes. E para o serdes sempre, lembrai-vos de mim quando estiver morto. E porque Édipo assim o instruíra, Teseu negará às filhas do morto o acesso ao túmulo deste. E o corifeu encerrará assim a peça: Reencontrai a paz. Não desperteis jamais o luto. Tudo está cumprido.

   Sabemos que também Ésquilo e Eurípides escreveram tragédias sobre o tema, pois a história de Édipo-Rei é lendária, nenhum dos autores trágicos a inventou. Por isso mesmo penso, Princesa, que esta tragédia, mesmo que evoque circunstâncias históricas, como a epidemia da peste em Atenas ou o governo de Péricles, não é um libelo político. Nem religioso, como pretendem aqueles que sublinham as referências à impiedade, sobretudo à descrença nas previsões dos oráculos. Os deuses dos gregos antigos são antropomórficos, mesmo quando possam personalizar forças da natureza: exageram os caracteres, os sentimentos, as paixões e os comportamentos dos seres humanos cá de baixo. Nem Zeus é concebido como um ser transcendente, no sentido de um deus que é absolutamente outro. No coração da tragédia grega está sempre a interrogação desamparada do ser humano, que ainda não encontrou meio de comunicar com o inexplicável... Subjacente, está o debate sobre a verdade dos deuses e a eficácia das crenças e invocações.

   Bem sei, minha Princesa de mim, que esta é uma opinião pessoal ou, melhor dizendo, uma impressão muito subjectiva das tragédias gregas que li. Mas sou hoje incapaz de as pensarsentir de outro modo senão apenas na verdade universal, intemporal, da condição humana, desamparada e ignara, que sempre pergunta o quê e o porquê do mal. No drama de Édipo, por exemplo, a causa inicial da desgraça não é culpa alguma do próprio, que só na labiríntica mente de Freud terá morto o pai para se casar com a mãe. Na lenda, como nas tragédias nela inspiradas, Édipo não só se pensa filho de outro e ignora quem são os seus pais, como mata alguém que não conhece. O pecado original, a raiz do mal, antes estará no acto de procriação praticado por seu pai, em violação de uma interdição de paternidade. A culpa de Édipo mais não é do que a ignorância, a incapacidade de desvendar todos os enigmas. Ou  --  como, nas voltas da vida, a todos nós pode acontecer  --  esse sentimento espontâneo e autêntico que em nós grita que não entendemos esta existência, não avistamos o sentido de nós próprios nela. E nada podemos fazer, nada está ao alcance da nossa mão. Como quando, com Álvaro de Campos, num choro silencioso e íntimo, chamamos a noite:

          Vem soleníssima,

          soleníssima e cheia

          de uma oculta vontade de soluçar,

          talvez porque a alma é grande e a vida pequena,

          e todos os gestos não saem do nosso corpo

          e só alcançamos onde o nosso braço chega,

          e só vemos até onde chega o nosso olhar.

 

   Agora mesmo interrompo a escrita e ponho-me à escuta da Jeanne d´Arc au Bûcher do Honegger. Não é passar de Stravinsky para este, nem de Sófocles para Claudel. Não é sair da tragédia, mas encontrar nela a voz fora de mim, essa que leva Joana  --  que, à beira da morte, não quer morrer e tem medo  --  a gritar ao povo, a juízes e algozes: Ouço uma voz acima de mim que diz: Joana, não estás sozinha! E o seu grito derradeiro será o da libertação consumada: Há a alegria que é mais forte! Há o amor que é mais forte! Há Deus que é mais forte!

   E ao dar-te agora a mão, comungamos na fortaleza.

       Camilo Maria

 

 

Camilo Martins de Oliveira