Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Chama-se “O Veneno do Teatro ou Conversas com Amélia Rey Colaço” o livro biográfico e critico de Vítor Pavão dos Santos, onde se traça, com base em longas entrevistas com a protagonista, um quadro detalhado da carreira de Amélia mas também da história do teatro-espetáculo em Portugal: desde 1923, estreia agitada de “O Lodo” de Alfredo Cortez - que o autor denomina adequadamente “A Batalha de O Lodo” - até ao último espetáculo de Amélia, curiosamente no Cine-Teatro de Portalegre, com a representação, em 19 e 20 de Outubro de 1985, de “El Rei Sebastião” de José Régio, tinha Amélia 87 anos.
Mas a carreira profissional iniciara-se em 1916, no Teatro Avenida, com um “sainete teatral” dos Irmãos Quinteros, e ganharia balanço definitivo no ano seguinte, agora no Teatro República, com uma peça dos mesmos autores, peça e autores então num primeiro plano de sucesso. De tal forma que no ano seguinte, com o Teatro a chamar-se, como de início e até hoje, Teatro São Luiz, do nome do empresário-proprietário Visconde de São Luiz Braga, temos Amélia Rey Colaço a contracenar com os grandes nomes da época – Ferreira da Silva, Lucinda Simões, Ângela Pinto, António Pinheiro, em peças de D. João da Câmara, Augusto de Castro, Veva de Lima, Afonso Lopes Vieira, para só citar os portugueses.
E daí para cá, o livro regista centenas de peças interpretadas por Amélia, e recolhe em centenas de páginas, um longuíssimo depoimento crítico da atriz, deviamente integrado na perspetiva histórica que Vítor Pavão dos Santos elabora, comenta e enquadra no que acaba por constituir uma história do teatro português, ao longo de 70 anos, em Portugal e também no Brasil.
Porque podemos então lembrar que as tournées de companhias portuguesas de teatro declamado no Brasil foram correntes até meados do século passado - e com sucesso. Mas também evocamos os espetáculos de grandes companhias brasileiras em Portugal, até pelo menos aos anos 70. Recordo especialmente aqui, como espetador e crítico de teatro, as tournées de Maria Della Costa - Sandro Polónio ou de Cacilda Becker em Lisboa, ou os espetáculos de Raul Solnado no Rio de Janeiro e em São Paulo.
Mas, para além da atividade profissional, importa referir o registo cultural subjacente. Em tantas dezenas de anos de atividade, como atriz ou como co-diretora, no quadro da Empresa Rey Colaço – Robles Monteiro, vemos Amélia responsável direta pela companhia oficial de teatro, no D. Maria II desde 1929 até ao incendio de 1964, e depois, mais episodicamente, no Avenida, no Capitólio, no São Luis, no Trindade e também pelo país fora, até 1974: e até no Coliseu dos Recreios, mas aí em espetáculo único de homenagem a Amélia e Companhia, depois do incêndio do D. Maria II, espetáculo a que assisti, como a quase todos os outros aqui citados ou não, desde os anos 50/60.
E o livro de Vítor Pavão dos Santos detalha com muita informação e muita qualidade crítica, esta longa carreira que é também, repita-se, a “carreira” da História do Teatro Português do século XX.
O que passa pela renovação dramatúrgica. Ao longo dos depoimentos de Amélia e dos comentários e enquadramentos histórico-críticos de Pavão dos Santos, encontramos descrições e referências a autores contemporâneos, e na época por vezes verdadeiras revelações. Aqui só vou citar os autores portugueses - e há que situá-los no período de estreias. Mas efetivamente, a Amélia Rey Colaço e à empresa Rey Colaço - Robles Monteiro deve-se muito da renovação do teatro português.
Vejamos os autores citados com destaque:
Almada Negreiros, Alfredo Cortez, Vasco Mendonça Alves, Carlos Selvagem, Ramada Curto, José Régio, Henrique Galvão, Bernardo Santareno, Olga Alves Guerra, Costa Ferreira, Augusto Sobral, Jaime Salazar Sampaio, Virgínia Vitorino, Teresa Rita, Tomaz Ribeiro Colaço, Manuel Frederico Pressler, Isabel da Nóbrega, Joaquim Paço d’Arcos, Nuno Moniz Pereira, e outros!...
E quanto aos atores e encenadores, é impossível referir exaustivamente a verdadeira renovação que Amélia Rey Colaço proporcionou e ajudou, em dezenas de anos de atividade…
O regresso da saga de 007 tem ambiente propício, com a licença para tomar medidas expeditas. Sem Dame Judi Dench, agora substituída por Mr Ralph Fiennes como M, a dupla Sam Mendes e Daniel Craig apresenta um mais introspetivo agente especial On Her Majesty's Secret Service mas ainda com o letal charme de sempre. Spectre é o título da película e provocante acrónimo de Mr Ian Fleming para as tintas masónicas do Special Executive for Counter-intelligence, Terrorism, Revenge and Extortion em dias de rubro debate da power’s surveillance bill.
— Chérie! Qui sème le vent, récolte la tempête. Na Piazza San Pietro (Rome), durante o Angelus, Pope Francesco reprova a divulgação de documentos da Holy See que revelam factos tristes como o desvio de fundos para manter vidas sumptuárias. O que vem a público atesta Francis como um super reformista, "con il sostegno di tutti voi." — Hmm! I smile back. RH David Cameron entrega hoje uma carta em Brussels sobre o political deal vital à permanência do UK na European Union. Paris recebe o ensaio geral das diplomacias para o Climate Change Summit, no final do mês, destinado a atualizar o Kyoto Protocol sob acordo no carbono de Washington e Beijing. China revê a one-child policy. Downton Abbey diz adeus na ITV.
A lovely mild weather em London. Papoilas de papel, atmosfera solar e high spirits marcam a festa do Remembrance Sunday, com HM The Queen e os veteranos a liderar a saudação nacional e da Commonwealth aos caídos durante a WWar I (1914-18). RH Jeremy Corbyn pontua na cerimónia do Cenotaph, entre traditional prayers, hymns and blessings, após os lapsos que quase sublevaram a veia patriótica do Labour Party e a controvérsia em curso em torno da manutenção do programa nuclear dos submarinos Trident. Em momento de escalar o tom na frente continental, com apostilas cada vez mais eurocéticas, Sir David Cameron também lá esteve a par da elite de Westminster e do bravo povo britânico.
O Whitehall District abunda em iniciativas, aliás. Oldham West & Royton (Great Manchester) acolhe em December a primeira by-election para testar as tropas partidárias na Cameron Era, sob o firstfull Tory Govt após Lady Thatcher e um Labour Corbyn Party inclinado à esquerda. Os Blairites dizem já que a conservação da red constituency é um plebiscito à nova liderança. Mas o destaque semanal vai para as manobras cross-benches em torno da Brexit, com missiva do Prime Minister a Mr Donald Tusk, presidente do European Council, advertindo complacente Brussels que o in/out referendum on UK membership before the end of 2017 is deadly serious. Já o Chancellor George Osborne ruma a Berlin para detalhar à Federation of German Industries as reformas ambicionadas por London – e que mexem em vários pilares dos tratados. Interessantes são ainda os bastidores deste major strategic risk para todos os países europeus. Sondagem interna na Conservative Home revela que 71% (yes, seventy one!) dos militantes quer o reino fora da EU. O número surge a par de outras cifras alarmistas, como o de o custo fiscal direto da permanência no clube continental custar aos contribuintes £20 billion each year - £55 million a day. Sem mais Downton Abbey nas pantalhas dominicais, o renegotiation game promete drama nos interstícios dos Tory Leave Eurosceptics e dos Labour Remain Europhiles. Assim, para sumariar, eis o título em exibição by RH Boris Johnson: “David Cameron is right to make it clear: without a deal, Britain will leave the EU.” Coloquemos apenas um sublinhado como efeito especial: They really mean it!
Novo episódio também na série Vatileaks, com a detenção de dois membros do Vatican por alegadamente cederem documentos aos média. Dois livros contam (quase) tudo: Via Crucis/Merchants in the Temple, de Signor Gianluigi Nuzzi, e Avarizia/Greed, de Signor Emiliano Fittipaldi. O primeiro abre até com verbo papal reservado aos vertici del Vaticano: “Se non sappiamo custodire i soldi, che si vedono, come custodiamo le anime dei fedeli, che non si vedono?” A palavra de Pope Francis é aqui especialmente útil para perceber o que vai na cúria da Catholic Church. Na oração Angelus, o pontífice fala sobre o caso. “Cari fratelli e sorelle, so che molti di voi sono stati turbati dalle notizie circolate (...) a proposito di documenti riservati della Santa Sede... Per questo vorrei dirvi anzitutto che rubare quei documenti è un reato. E’ un atto deplorevole che non aiuta. Io stesso avevo chiesto di fare quello studio, e quei documenti io e i miei collaboratori già li conoscevamo bene, e sono state prese delle misure che hanno incominciato a dare dei frutti, anche alcuni visibili. Perciò voglio assicurarvi che questo triste fatto non mi distoglie certamente dal lavoro di riforma che stiamo portando avanti con i miei collaboratori e con il sostegno di tutti voi,” Francesco dixit no púlpito de St Peter. — Well! Alexander wept not on account of Achilles dead and buried, but over himself.
«Os Cavaleiros do Amor – Plano de um Livro a Fazer, Dispersos e Inéditos», de Sampaio Bruno, com prefácio e organização de Joel Serrão (Guimarães Editores, 1960) é uma obra póstuma na qual encontramos pistas importantes sobre a originalidade do seu autor.
O CENTENÁRIO DA MORTE DE BRUNO Sampaio Bruno (1875-1915), cujo centenário da morte assinalamos, é um dos autores portugueses mais complexos do final do século XIX e do início do século XX, com um percurso de independência, que encontra as suas bases na tradição liberal, seguida desde a juventude, e corresponde à abertura de horizontes do republicanismo, para além de uma perspetiva redutora ou sectária. Pode dizer-se que há uma orientação libertária no seu pensamento, que leva à recusa de uma lógica de grupo ou de escola – desde o jacobinismo ao positivismo - motivo para especial atenção, mas também para equívocos e incompreensões. Nesse sentido, a sua influência republicana pôde reforçar-se e consolidar-se ao longo do último século. Independentemente das ideias que defendeu e do modo como o fez, a sua atitude merece especial estudo, uma vez que a tradição republicana portuguesa deixou com ele de poder confundir-se com a mera lógica da primeira experiência de 1910. O republicanismo envolve horizontes múltiplos e compromissórios, entre os quais temos de integrar autores e correntes de diversas épocas até aos dias de hoje, em que temos os primeiros republicanos heterodoxos – desde as influências da «primavera dos povos» (1848), passando pela «Geração de Setenta» (estruturalmente republicana), pela Junta Patriótica do Norte, pelo grupo portuense do 31 de janeiro que se exilou em Madrid, no qual encontramos Sampaio Bruno e Bazílio Teles, mas também pelo diretório do Partido Republicano, pela Renascença Portuguesa, pela Águia, por Leonardo Coimbra, pela «Seara Nova» e por todos quantos foram abrindo caminhos novos na concretização da ideia de uma «Renovação Democrática».
UMA ESTRUTURA HETERODOXA Como afirmou Joel Serrão: «Dada a estrutura heterodoxa da mentalidade de Bruno, nem qualquer monismo tradicional, nem mesmo o dualismo poderiam servir-lhe, a não ser provisoriamente, de meios adequados de pesquisa ou de conclusão. Para ele, a adoção quer de uma atitude e conceção materialistas, quer de uma atitude e conceção espiritualistas, acabaria por traduzir-se numa ortodoxia mal disfarçada» Deste modo, se compreende o caminho seguido que deveria ser o «temeroso e solitário da aventura dialeticamente pluralista, batendo autonomamente a todas as portas, dialogando com o materialismo de Büchner e de Marx, com os espiritualismos de Vacherot e de Hartmann, indo de Spinoza a Leibniz, de Leibniz a Spinoza, sem ceder nunca também, e correlativamente, à facilidade mortal do ecletismo». Quem ler atentamente os textos de Sampaio (Bruno) facilmente descobrirá que havia uma preocupação de seguir uma via que pudesse pôr em confronto as diversas componentes de uma realidade do tempo, complexa e multímoda. Daí a «Aventura tão perigosamente original, que lhe não bastavam os testemunhos dos filósofos e dos místicos, recorrendo também à interpretação de poemas, de prosa dos nossos escritores, até à indagação das causas ocultas ou não explícitas de dados eventos significativos da história pátria. Tudo lhe servia, e de tudo se servia, para abrir caminho, tentando rasgar a névoa, que o envolvia e com que sempre se debateu». Em bom rigor, a originalidade procura recusar as vias exclusivas ou de sentido único. A heterodoxia de Bruno deveu-se, assim, à necessidade de recusar as soluções que tinham desembocado nas respostas fechadas e unilaterais, em que tinham caído muitos dos seus companheiros de outrora da causa republicana. Não por acaso, o seu pseudónimo vai buscar referência a um mártir da liberdade, o dominicano Giordano Bruno (1548-1600), condenado pela intolerância inquisitorial romana por suposta heresia… A biografia de José Pereira de Sampaio (Bruno) revela-nos um percurso de grande capacidade reflexiva. E se muitas vezes se invoca o gosto de trilhar caminhos algo tortuosos, por paixão crítica, a verdade é que se encontram no conjunto dos seus escritos perspetivas de grande interesse até para compreensão da modernidade. Com 17 anos publicou «Análise da Crença Cristã – Estudos Críticos» sobre o cristianismo, dogmas e crenças, influenciado por Pedro Amorim Viana («Defesa do Racionalismo ou Análise da Fé»). Não tendo prosseguido os estudos na Academia Politécnica do Porto, tornou-se autodidata, abraçando o jornalismo político nas hostes republicanas nos anos oitenta do século XIX. É um dos autores dos Estatutos da Liga Patriótica do Norte, onde estão Antero de Quental. Bazílio Teles e Luís de Magalhães, em reação ao Ultimato inglês. É um dos inspiradores da Revolução do Porto, exilando-se em Madrid e Paris – quando é lançado o «Manifesto dos Emigrados da Revolução Republicana Portuguesa de 31 de janeiro de 1891». Regressado à pátria, em 1893, publica «Notas do Exílio» e em 1898 dá à estampa «Brasil Mental», onde critica o positivismo comtiano por ser «uma curva fechada», «um polígono cujas arestas não toleram que as ultrapasse a conjetura…». O exílio e o isolamento levam-no a uma crise mística e à procura da essência das coisas. Três obras irão dar-nos testemunho dessa busca para além dos limites: «O Brasil Mental», «A Ideia de Deus» (1902) e o «Encoberto» (1904). O reconhecimento de seres espirituais superiores que nos podem alertar para os perigos do futuro baseia-se num certo providencialismo, que Bruno transforma em pragmatismo político – muito próximo de Immanuel Kant. Partindo das Luzes, Bruno centra-se no racionalismo deísta, anticlerical e progressista na linha de Voltaire, donde parte para o misticismo hermético, no qual procura a essência da liberdade, igualdade e fraternidade. No dizer de Pedro Calafate: «Foi à luz (…) da ideia de liberdade e desta noção de dinamismo universal fortemente apoiado em critérios morais, que analisou em «O Encoberto» a filosofia da história de Portugal, como também defendeu a sucessão evolutiva entre a monarquia, a república e o socialismo. O critério essencial para apreciação do desenvolvimento dos povos e das nações é o seu estado de desenvolvimento moral, o estado de apuramento da sensibilidade e dos costumes, com expressão também ao nível das formas de dominação política».
LIBERDADE CONQUISTADA Para Sampaio Bruno, «a liberdade nunca é uma dádiva graciosa; é sempre uma penosa conquista: e resulta uma quimera abusiva estar-se à espera de que um povo se prepare para o exercício dos seus direitos a fim de então se lhos conceder». Por outro lado, a «democracia começa no município e na região – pois é aí que se garante o respeito aos direitos do cidadão e a sua participação nos negócios do Estado». Na linha do liberalismo de Alexandre Herculano, a democracia de Bruno existe onde vivem os cidadãos. «As práticas autoritárias são costumes bárbaros, costumes detestáveis de gentes escravizadas por outras gentes más e cruéis». Do mesmo modo, o messianismo político corresponde à preguiça cerebral ou indolência meridional dos portugueses. E perante os messias (desde o Mestre da Avis ao Desejado, prolongando-se com Passos Manuel, Costa Cabral etc.), tudo se sumiu na voragem. «É que a questão não é de homens. A questão é de ideias». Bruno, depois de diversas vicissitudes conseguiu ser provido como conservador da Biblioteca Municipal do Porto (1908) e por fim como diretor (1909), o choque de ideias e personalidades com Afonso Costa levam-no a afastar-se do Partido Democrático, protestando contra a tentativa de o silenciarem, por não seguir a linha oficial. Raul Brandão nas «Memórias» diz: «Bruno, esse nunca fez cálculos sobre a vida, Cheio de simplicidade e de modéstia, viveu e morreu como um pobre homem – a arrastar-se nos últimos anos da padaria da Rua do Bonjardim para a Biblioteca, da Biblioteca para a Rua do Bonjardim»…
Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões - Ensaio Geral, Rádio Renascença
Miscelânea de ilhas e ilhotas à solta e espalhadas pelo oceano, entre o verde campestre e azul marinho, florestas, parques arborizados, florestais, lagos, cais, canais, dezenas de pontes passeando por águas amenas e limpas, numa urbe amiga do ambiente, discreta, colorida e verde, junto à água. Eis a primeira impressão de Estocolmo, principal centro urbano e capital administrativa, política, cultural, comercial e financeira da Suécia. Conhecida por A Bela Sobre a Água ou A Veneza do Norte, integra 14 ilhas interligadas e circundadas de águas límpidas, oferecendo uma imensa variedade de atividades ao ar livre, desde canoagem, regatas de barcos à vela, passeios em caiaques, pequenas baleeiras à vela, gaivotas, barcos a remos, a vapor, a motor, ferries, de cruzeiro, iates. No Verão, apanha-se sol, nada-se e mergulha-se em locais do centro citadino. Há a pesca da perca, da truta do mar e eperlano, entre outros peixes. Quilómetros de espaços verdes, zonas protegidas e passeios pedonais para lazer e desportos. Tradicionais casas de madeira, típicos chalés (um deles, dos Abba), o primeiro museu ao ar livre do mundo (Skansen), pousadas e hotéis em várias ilhas do arquipélago, são um convite a olhar e ver, ao silêncio, sossego e tranquilidade. Este vanguardismo ambiental, ecológico e de culto da biodiversidade, também se observava pela preferência dada à alta tecnologia e energias limpas. E por um sistema de fiscalização do congestionamento, em que todo o centro da cidade estava dentro da zona do imposto de congestionamento de veículos. Daí ser tida como uma das cidades mais limpas, organizadas e de melhor qualidade de vida. Uma das mais habitáveis e qualificadas mundialmente. Em comunhão e conjugação de esforços com a ausência de poluição do meio ambiente, amor pela natureza e pelos animais. Por maioria de razão ao saber, pela guia local, serem os patos, aos milhares, um símbolo de Estocolmo, que os seus habitantes muito prezam. Só que, à época, iam rareando de dia para dia. Queixas, queixumes, denúncias, reclamações, inquéritos, investigações, policiamentos, alertas e quejandos não resultavam. Diminuíam paulatinamente em quantidade, mas não apareciam mortos, nem doentes. Os remanescentes estavam luzidios e saudáveis. Adensado o mistério, intensifica-se a fiscalização e a vigilância, em especial durante a noite, e eis que, entre o incrédulo e a estupefação, se conclui que eram furtados, cozinhados e confecionados como pato à Pequim em restaurantes chineses, fazendo as delícias das papilas gustativas dos comensais seus amantes, mas à revelia de todas as regras. A reação não se fez esperar: sancionamento dos infratores e encerramento de todos os restaurantes chineses, com a subsequente proibição de novas aberturas (desconheço até quando). Uma punição, ao mesmo tempo uma tentativa de expiação e redenção, de uma cidade tida planetariamente como das mais seguras, em contraste flagrante com a insegurança dos seus patos. Naturalmente, qual fénix renascida, os patos regressaram gradualmente e sem constrangimentos ao seu habitat, para equilíbrio e encanto de Estocolmo!
Era sábado, meio solarengo e cinzento, sem chuva, chuviscos ou aguaceiros, mas ameaçando. Num dos primeiros percursos pedonais, paragem na Rorstrandsgatan, uma cosmopolita rua popular, com cafés, restaurantes, pubs e aprazíveis esplanadas, numa atmosfera colorida de fim de tarde, onde imperava a boa cerveja. No decurso de um passeio noturno, desfiles e concertos de música ao ar livre, com músicas e atrações artísticas de várias latitudes, desde a clássica, ao rock, pop, latino-americana, anglo-saxónica, nórdica, incluindo o samba, com representações essencialmente da América Latina, a rainha da festa, dado que, pelo que vi, havia representações do Brasil, México e Cuba. Milhares de pessoas passeando, vendo, ouvindo, cantando e dançando, numa festa popular de adultos e imensa juventude. Muitos jovens adultos e adolescentes liberais no vestir, no penteado, nas cores, tatuagens, numa exposição pública aberta e descontraída de afetos e tendências sexuais. Num curto intervalo de tempo, vários jovens expelem saliva e escarros para o chão. Outros, incluindo adultos, embriagados e desinibidos pelo álcool, não se inibem de urinar, por vezes sem pudor. O estado eufórico e a massificação não justificam tudo. Como não o justifica ver ruas sujas de beatas de cigarros, pastilhas, papéis, latas, garrafas de vidro e plástico, a desmistificarem o mito do “muito ordenado” e “sempre limpo”. Cada caso é um caso, não se podendo generalizar ao todo, por certo, mas há situações, mesmo que pontuais e mais permissivas, que são mais chamativas onde menos se espera, nomeadamente para quem de visita de países pontuados como menos desenvolvidos. Também numa paragem na cidade de Karlstad, em plena rua, observo em flagrante um homem avinhado. Sempre me constou que os suecos têm a noção do ridículo, pelo que, quando bebem em excesso, são discretos e tentam ocultá-lo na sua privacidade, razão pela qual me surpreenderam tais condutas. Apesar de, nalgumas situações, lhes estar associada uma progressiva e progressista evolução e liberalização de costumes, tendencialmente a imitar pelos países menos avançados. Retive, a este propósito, a naturalidade com que jovens e casais homossexuais se relacionavam, eram aceites pelo cidadão comum e estão integrados na sociedade em geral, sem preconceitos e respeito recíproco. Foi-nos muito recomendado um bar-restaurante, essencialmente gay, onde toda a gente ia para beber e saborear o melhor chocolate de Estocolmo. O que fiz, com a família, num ambiente tolerante e bem frequentado, entre turistas e locais, sem constrangimentos ou qualquer tipo de discriminação pela diferenciação.
Cidade discreta, elegante e contida na sua dignidade e simplicidade, não é de deslumbramentos monumentais, arquitetónicos e artísticos, mas suficientemente chamativa, onde prevalecia uma notória preservação patrimonial, a nível histórico e edifícios em geral. Destaque para o Palácio Real e Render da Guarda, a Velha Catedral, o Parlamento, Palácio de Drottningholm, da Bolsa, Igreja de Riddarholms-Kyrkan (das cerimónias fúnebres reais), o Teatro Real, Nationalmuseum, o Nordiska Museet e o Jardim do Rei. O tempo escasseava, havia que estabelecer prioridades, optando-se pela Stadshuser (Câmara Municipal) e pelo Vasamuseet para visitas mais pormenorizadas. Stadshuset, um dos símbolos cimeiros de Estocolmo, mais austera e sóbria exteriormente, é mais majestosa no interior, pelo seu design. Tem como atrações maiores o Salão Dourado, o Salão Azul e o Salão da Assembleia. O primeiro, revestido com mosaicos de parede de influência bizantina e milhões de fragmentos de folha dourada, tem como tema central a Rainha do Lago Malaren. O segundo, revestido com azulejos manuais, é o salão de banquetes, nele se realizando as festividades anuais do Prémio Nobel, instituído pelo químico e inventor sueco Alfred Nobel. Interroguei-me (e interrogo-me) do porquê de apenas dois lusófonos, até agora, terem sido contemplados (o médico Egas Moniz e o escritor José Saramago, ambos portugueses), com especial ausência do Brasil. Falta de estratégia injustificadamente adiada e cada vez menos justificada? Mera injustiça? Que tem feito e poderia fazer, por exemplo, a CPLP? Fica a questão. A Assembleia, por sua vez, é um belíssimo salão onde se reúnem os vereadores camarários. No topo de uma torre com 106 m de altura, com vista plena sobre a urbe, o símbolo heráldico da Suécia, as três coroas, do século XIV. Já o Museu Vasa, o mais popular da cidade, aberto em 1990, tem como tema a recuperação e restauração da embarcação real de guerra Vasa, após ter naufragado na viagem inaugural, em Agosto de 1628. Impressiona pelo porte majestoso, pela majestosa ornamentação de mais de setecentas figuras esculpidas em alegoria e propaganda ao poder, sendo tido para muitos, à data, como o navio mais poderoso do mundo. Na zona mais antiga da cidade, em Gamla Stan, por entre ruas estreitas que lembram uma cidade medieval, há-as movimentadas para todos os gostos, incluindo pechisbeque, artesanato de qualidade e lembranças raras. O modernismo pode ser apreciado no Centro Cultural e obelisco de vidro em Sergels Torg. Inovador foi frequentar um bar todo em gelo (paredes, teto, chão, balcão, bancadas, mesas, prateleiras, acessórios), para encanto da Primogénita e da Benjamim. Além da curiosidade de ver, exteriormente e de passagem, o que era tido como o teatro mais pequeno do mundo, com 21 lugares. Evocação do dramaturgo August Strindberg, junto da sua última morada, atualmente um museu. Sem esquecer Astrid Lindgren, autora de A Pipi das Meias Altas.
Orientados por uma guia local, expressando-se em bom português, apercebi-me que para além dos emigrantes lusos serem tidos como trabalhadores e bem vistos, sol e praias, fado, futebol, o vinho do Porto e os Madre Deus eram a sinalização mais marcante de Portugal na Suécia. Houve queixas em relação à pouca difusão e incentivo do nosso idioma, a começar pela nossa embaixada. Esta omissão e ausência de estratégia (lusófona, e não apenas lusa), a que acresce a pouca divulgação em língua sueca e inglesa da cultura e ciência lusófona, inclusive via traduções, nomeadamente para a língua da globalização, não será também responsável para a pouca representatividade, até hoje, de lusófonos laureados pelo Nobel?
Foi assim que me confrontei com uma cosmopolita e inclusiva Estocolmo, onde o indígena se encontra e mistura com o emigrante, o turista, o estrangeiro, onde o mito das beldades femininas suecas, tão sacralizado, se confirma moderadamente e sem exageros. Questionei-me do porquê do síndrome de Estocolmo, associado ao assalto ao Kreditbanken, em Agosto de 1973, em que as vítimas defendiam os seus raptores após prisioneiras vários dias, com condutas não colaborantes com a justiça nos processos judiciais, quando já em liberdade. Lembrando o livro e o filme A Bela e o Monstro. Talvez Ingmar Bergman, melhor que ninguém, o pudesse analisar, dada a sua filmografia, tão analítica e introspetiva, perguntando e querendo dar respostas, numa sociedade concomitantemente contida e sigilosa, ao não exteriorizar e esconder, com reserva, reservas mentais, por ser ou poder ser publicamente ridículo. Num país também tido como vanguardista em termos humanos, de progresso e avanços civilizacionais, onde o que agora é tido para muitos como anormal e chocante, acaba por ser, no futuro, assimilado e tido como normal pelos críticos de antanho, aceitando, adaptando e imitando o que anos atrás se censurava. Escândalos associados à vida de divas suecas como Greta Garbo e Ingrid Bergman, foram por muitos absorvidos e tolerados.
Foi o que retive de Estocolmo, capital e máxima representante da Suécia, na sua comedida elegância, simplicidade e vanguardismo.
Impressões pessoais de Estocolmo, em Agosto de 2008 Texto revisto em 02 de Novembro de 2015
Dizes-me que esperas pela prometida conversa sobre o processo de Joana d´Arc. Sabes que, numa perspectiva histórica, ele é um episódio da Guerra de Cem Anos (1337-1453), mais precisamente do período que se inicia com a concorrência, em França, de uma monarquia anglo-francesa sob Henrique IV e, à morte deste, em 1413, sob o seu filho, o maior dos Lancaster, Henrique V de Inglaterra, que vence a batalha de Azincourt (25 de Outubro de 1415) e encurrala Carlos VI, o rei francês. Este morre em 1422, tal como Henrique V, cujo filho, o VI do nome, é ainda criança de leite. [O pobre enlouquecerá mais tarde e será derrotado, até em Inglaterra, quando a casa de York leva a melhor sobre os Lancaster, na Guerra das Duas Rosas ]. O novo rei de França, Carlos VII, parecia duvidar das suas capacidades e até dos seus direitos. Valeu-lhe a intervenção de Joana d´Arc, desde a libertação de Orleães (8 de Maio de 1429) à sua sagração como rei, na catedral de Reims (17 de Julho). A importância decisiva dessa intervenção é historicamente realçada pela perseguição que à Donzela moverá o duque de Bedford - tio e regente do infante-rei Henrique VI, este, aliás, também coroado rei de França em Notre Dame de Paris, em 17 de Dezembro de 1431 - até a capturar em Beauvais, e a entregar a um tribunal religioso, que a condenará, por crimes de heresia e bruxaria, à fogueira ( 30 de Maio de 1431).
O movimento que a Donzela de Orleães dinamizara continuou, através de batalhas e tréguas, de negociações e conquistas (como a retomada de Paris aos ingleses, em 1436), até que a loucura de Henrique VI e a Guerra das Rosas esmorecessem a presença e, depois, as pretensões inglesas em França. De uma perspetiva política, a aventura de Joana d´Arc desenha-se numa Europa saída do Grande Cisma do Ocidente, com as nações da cristandade divididas entre a obediência aos papas de Roma (Portugal, Inglaterra, Hungria, Polónia, Escandinávia, Veneza e grande parte do Sacro-Império) e os de Avignon (França, os reinos de Espanha e Nápoles, Escócia, principados do Império mais próximos de França), em que a estrutura feudal vai desaparecendo, concomitantemente ao desenvolvimento do comércio e da banca, das cidades e das universidades, esse prenúncio da cultura europeia da Renascença, cujos apoios socioeconómicos haviam surgido com a revolução urbana do século XIII, uma nova civilização. Vão crescendo - e afirmando-se - estados-nações. O século XIII, como já alguém apontou, é também aquele em que o cristianismo deixa de ser uma religião minoritária na Europa. Na verdade, graças sobretudo à missionação das ordens mendicantes (franciscanos, dominicanos, carmelitas), o povo, todo o povo -- mesmo o que, em regiões remotas, se entregava ainda a cultos antigos -- é chamado à religião de Cristo e à sua Igreja. Democratiza-se a cristandade. E para que, em tal alargamento, não se esqueçam ou distorçam as verdades da fé ensinada, insiste-se na pregação da Palavra, na sua ilustração (até teatral, com os autos representados nas catedrais e igrejas), na popularização de devoções simples (como a recitação do ângelus e do rosário), na obrigação de certos actos religiosos (missa, confissão, comunhão, peregrinações...). É neste clima de nacionalismo nascente e de aprofundamento do sentimento religioso que é nada e criada Joana d´Arc. E será por ela reivindicar as "Vozes" (São Miguel, Santa Catarina, Santa Margarida) pelas quais Deus a manda libertar a França dos ingleses, que sobre ela, camponesa analfabeta, conhecida pela sua piedade e bons costumes, cairá a sentença dos inquisidores, doutores e teólogos. O poder político e militar que a captara poderia tê-la logo morto no campo de batalha. Ao fazê-la prisioneira e trazê-la perante um tribunal eclesiástico, antes pretendeu destruir o mito fundador e animador de uma nova nação francesa e assim isolar, ainda mais e por conivência com heresias e superstições, o próprio Carlos VII, que de tímido rei se tornaria, afinal, no vencedor... Mas conseguiu apenas transformar a pastorinha de ovelhas numa condestável que, depois de morta, se foi tornando no símbolo da independência francesa, ao longo de séculos e para arautos e devotos de variegadas origens sociais, políticas e religiosas. Mas não foi linear tal percurso, nem sequer no seio da Igreja católica e francesa: na corte real, como no topo da hierarquia eclesiástica, ou ainda, mais tarde, para o racionalismo humanista do Renascimento -- sem falar na aversão protestante dos huguenotes -- foi-se preferindo, nos séculos XV e XVI, dizer que a vitória da França fora por vontade de Deus, manifestada e realizada através da monarquia autóctone. Vão surgindo umas excepções literárias, vai-se mantendo uma devoção popular, mas predomina essa atitude racionalista de contestação do milagre, pelos séculos XVII e XVIII, mesmo ridicularizando-o, como Voltaire em La Pucelle ou Beaumarchais nas Lettres sérieuses et badines... A reabilitação literária de Joana d´Arc virá do estrangeiro, Princesa, volto assim a falar-te de Schiller e da sua Jungfrau von Orleans.
O drama de Schiller, escrito em Leipzig, em 1801, enaltece a força anímica e o papel decisivo, para a vitória francesa, da Donzela. Mas foge bastante à história contada pela tradição, bem como ao que dela sabemos a partir de documentos coevos. Nesta peça, Joana também mata inimigos em batalha, apaixona-se por um soldado inglês, que derrubara, quando lhe tira o elmo e descobre o lindo rosto, é afastada e presa pela corte e pelo exército francês, para finalmente se libertar, escapar e acorrer ao campo de uma batalha que as forças de Carlos VII perdiam, inverter a situação e morrer heroica e gloriosamente. Tal versão inspirou libretos de ópera, designadamente uma de Tchaikovsky e outra de Verdi, de que já te falei. Nesta, o número de personagens é reduzido, não há amores ingleses, antes uma proximidade afectiva de Joana e Carlos VII, adivinhada e contrariada pelo ciúme do pai dela que, ao vê-la moribunda, depois de ter sacrificado a sua vida para salvar a do rei, implora perdão: Põe a tua mão sobre o meu cabelo branco e lava-me da culpa... A ópera é de 1845, continuamos em pleno romantismo. Além da celebração do 8 de Maio (aniversário da libertação de Orleães em 1429), instituída por Napoleão I, Joana d´Arc será lembrada e invocada, sucessivamente, pelo novo patriotismo da restauração monárquica e do segundo império. Mas será Michelet, republicano e anticlerical, historiador da França, como da sua Revolução, que fará de Joana uma figura heroica e nacional, tal como, já no campo religioso, Monsenhor Dupanloup, bispo de Orleães, começará, por 1850, a preparar o caminho do culto católico de Santa Joana, que será beatificada em 1909, por Pio X, e canonizada por Bento XV em 1920. O patriotismo místico de Bernanos não é galicista, chauvinista ou xenófobo. Atrevo-me a dizer-te, Princesa, que antes é um profundo sentimento de identidade, não racista mas espiritual, definido pela fidelidade à construção histórica de valores comunitários em torno da própria independência. Escreve, nesse texto profético, imediatamente anterior à humilhação inicial da França na 2ª Grande Guerra, Nous autres Français (1938/39): Libertar Orleães, levar o Delfim até Reims, atirar os bretões ao mar, vaidade das vaidades! -- Fazer frente aos doutores, dar respostas insolentes ao Inquisidor da Fé, "entregar-se a Deus em vez de aos homens da Igreja", manter a palavra dada, instituir-se juiz da legitimidade dos príncipes, quando a própria Santa Sé prefere não tomar partido, que presunção sacrílega! Não foi aos homens da Igreja que se confiou a honra francesa... ... Nem a honra, nem a terra francesa foram cometidas à guarda dos homens da Igreja, a nossa terra e a nossa honra são uma só! Pertence-nos esse ser temporal. De mãos cheias! É certo que são coisas perecíveis, concordamos. Que importa? que nos importa que sejam perecíveis, posto que Deus também nos fez mortais, e que só de nós sempre dependerá morrermos antes delas? Não há honra alguma em ser-se francês, nenhuma gloríola. E deixem-me também dizê-lo, uma vez por todas : tampouco há honra em ser-se cristão. Não fomos nós a escolher. «Sou cristão, reverenciem-me», dizem à saciedade os Príncipes dos Sacerdotes, os Escribas e os Fariseus. Antes deveríamos dizer, humildemente: «Sou cristão, rezai por mim!» É interessante entroncar este texto noutro, de Michelet, na sua Histoire de France (Paris, 1876): A acreditarmos num dos seus assessores, ela teria dito que, sobre certos pontos, não acreditava nem no bispo, nem no papa, nem ninguém; que se atinha ao que de Deus tinha. A questão do processo ficou assim posta na sua simplicidade, na sua grandeza, e assim se abriu o verdadeiro debate: de um lado, a Igreja visível e a autoridade; do outro, a inspiração atestando a Igreja invisível... Invisível aos olhos do vulgo, mas a piedosa menina via-a claramente, contemplava-a incessantemente, escutava-a em si mesma, trazia no coração esses santos e esses anjos... Para ela, a Igreja estava ali, ali onde Deus irradiava; alhures, tudo era tão escuro!... Tal sendo o debate, não havia remédio possível: a acusada devia perder-se. Ela não podia ceder, não podia, sem mentir, negar o que tão distintamente via e ouvia. Por outro lado (podia dizer-se), a autoridade continuaria a ser autoridade se abdicasse da sua jurisdição, se não castigasse? A Igreja militante é uma Igreja armada da espada de dois gumes, contra quem? Aparentemente, contra os indóceis. É esta exceção do ser,este primado da fidelidade a Deus sobre a obediência ao reino dos homens, que destaca a santidade e coloca o povo face à interrogação do sobrenatural como destino. A história de Joana d´Arc é universal, mais do que só francesa, mais do que só católica. O insólito tem força própria, a insolência sacraliza-se quando inspirada pela vontade divina. O curioso, aqui, é que a versão anticlerical do processo condenatório de Joana d´Arc, dada por Michelet, protestante de cepa huguenote, mas republicano francês, afastado da confissão e da prática religiosa cristã, nos fala da Igreja invisível ... invisível aos olhos do vulgo, mas a piedosa menina via-a claramente... ... escutava-a em si mesma, trazia no coração esses santos e esses anjos. Surge assim uma dimensão mística, em que, mais tarde, respirará o monárquico católico que sempre foi Georges Bernanos. A grandeza da figura mártir da Donzela de Orleães é inspirada pela graça divina que a destaca em contraste com o magistério eclesiástico que a julgou por influência política, mas a condenou por razões de ordem religiosa, reconhecendo-a culpada de heresia e bruxaria, pois ela, finalmente, não abjurou das "Vozes" que a comandavam. Essa fidelidade da consciência de Joana d´Arc , que a liberta da servidão ao mundo temporal -- mesmo clerical -- irá impô-la ao respeito de muitos alienígenas, desde Anatole France que, na sua Vie de Jeanne d´Arc (1908), celebra o valor histórico e popular da "camponesa ingénua e pura... ... de uma devoção sinceramente visionária", ao britânico Bernard Shaw que, no seu Saint Joan, faz dela protestante, quiçá uma santa protestante. Facto é que, a versão dita "anticlerical" do processo, essa que aponta à Igreja visível, incluindo a Inquisição, a responsabilidade da condenação por motivos do foro religioso, talvez por isso tenha promovido o interesse de muitos pela história de Joana d´Arc, mas, quase sempre, resultou mais em admiração -- ou mesmo culto -- da "Santa" do que em ataques às instituições eclesiásticas. Do lado católico convencional, foi-se pretendendo, quer que o processo fora essencialmente político, ainda que entregue a um tribunal eclesiástico, de traidores vendidos aos ingleses, quer, mais palidamente, o que escreveu um jesuíta do século XX, em nota de missal precedendo o próprio da missa da festa de Sta. Joana d´Arc: Feita prisioneira, vendida, acusada de bruxaria, julgada por motivos políticos por um tribunal religioso, ela foi finalmente condenada à morte. Todavia, basta ler os autos para nos inteirarmos de que as razões invocadas na sentença à morte de Joana foram de natureza religiosa. Não me ocorre qualquer passo de Zola sobre este caso, nem acerca da sua heroína. Será esquecimento, ou ignorância minha, mas também penso que o drama místico de Joana d´Arc, bem como a áurea que ganhou entre gente de diferentes campos políticos e religiosos, não fosse tentação para um analista de estrutura naturalista. É demasiado sobrenatural. Melhor serviu para o mistério lírico, ou oratório, de Paul Claudel e Arthur Honneger, Jeanne d´Arc au Bûcher (1938), que Roberto Rossellini adaptaria ao cinema, com Ingrid Bergman na protagonista (Giovanna d´Arco al rogo, 1954). A actriz sueca devia ser fã da Santa, pois já em 1948 a interpretara no Joan of Arc do Victor Fleming, de que diria, em 1952: Nunca teria aceite aparecer neste filme se antes não tivesse conhecido o Jeanne d´Arc do Dreyer. O filme do mestre dinamarquês -- que foi considerado um dos dez melhores de sempre -- é um grito de revolta contra a injustiça da justiça, mas é, sobretudo, A Paixão de Joana d´Arc. Dispensando a maquilhagem, para dar maior verdade e densidade humana aos rostos que filma em grande plano, toda a pesada atmosfera de um processo - aí narrado com fidelidade aos seus documentos coevos - se impõe ao espectador. Traduzo-te, Princesa, este testemunho de Valentine Hugo, que assistia às filmagens (em 1927): Foi particularmente impressionante o dia em que, num silêncio de sala de operações, à luz pálida de uma manhã de execução, se cortaram rentes os cabelos da Falconetti. A nossa sensibilidade, ainda que sujeita a preconceitos antigos, estava comovida, como se a marca infamante fosse ali realmente aplicada. Os electricistas, os maquinistas, retinham a respiração, e tinham os olhos cheios de lágrimas. A Falconetti chorou mesmo. Então, o realizador aproximou-se lentamente da heroína, recolheu-lhe lágrimas com os dedos e levou-as aos lábios... Marie Falconetti, cuja interpretação é inesquecível, nunca tinha feito cinema, desempenhava o papel de Miche numa bulevardice do teatro da Madeleine. Mas não era Nana. Desde Georges Méliès (em 1900) a Cecil B. De Mille (logo em 1917) ou Otto Preminger (levando ao cinema a Saint Joan do Bernard Shaw, em 1957, com a Jean Seberg), muitos realizadores trataram o tema. Mas para terminar esta carta, venho lembrar-te Le Procès de Jeanne d´Arc do Robert Bresson, que vimos em 1963, quando já tínhamos começado a nossa vida adulta... Fidelíssimo, como Carl Dreyer, às minutas do processo, Bresson procura restituí-lo na sua integridade intrínseca: Joana falava uma língua admiravelmente perfeita. Todo o seu processo é uma obra prima. Propositadamente, não quis tomar liberdades com a história. Os interrogatórios só servem para provocar, no rosto de Joana, as suas profundas impressões, para gravar, no filme, os movimentos da sua alma. O assunto verdadeiro é Joana votada à fogueira, e a sua longa agonia. É também a sua aventura interior e o enigma, não elucidado, dessa maravilhosa rapariga, do qual nunca encontraremos a chave. E, finalmente, o tema é a injustiça tomando a figura da justiça, a razão seca lutando contra a inspiração, a Iluminação. Dou-te a mão, como, há tantos anos, nos teríamos dado no cinema, e deixo-te a pensarsentirmos tudo isso.
‘I believe that landscape, the outside world of things and events larger than ourselves is the proper place to find our deepest meanings.’, Peter Lanyon
Peter Lanyon (1918-1964) nasceu na Cornualha e sempre a ela se referiu nas suas pinturas. Entre 1946 e 1964, desenvolveu uma obra pictórica ímpar no universo da arte moderna britânica. Fez parte de uma geração de artistas que viveu em Carbis Bay e St. Ives –Christopher Wood, Ben Nicholson, Barbara Hepworth, Naum Gabo e Patrick Heron.
Foi aluno de Ben Nicholson (que lhe transmitiu o interesse pela abstracção), fez uso da composição cubista (que lhe permitiu utilizar uma linguagem de blocos de cor interseccionados e que se refere a uma realidade multidimensional concreta) e apreendeu o construtivismo de Naum Gabo (que lhe facilitou um novo entendimento espacial).
Na pintura de Peter Lanyon não é só o gesto que conta – e a pintura de Lanyon é muito gestual, muito próxima da pintura americana do pós-guerra. Mas, em Lanyon o gesto transporta a marca do lugar. O lugar é uma experiência, em tempo e em movimento, para ser sentido até ao limite – só assim poderá ser transposto conscientemente para as telas e esculturas. As suas referências são sempre externas. Mais do que representar uma paisagem, os trabalhos de Lanyon evocam e modelam uma existência.
‘What I look for in a resolved painting is the certainty of consciousness. I mean that the artist hás taken his work to the point where he is painting with conscious and deliberate emphasis and in doing so understands the meaning of his image.’, Lanyon, 1957
Ao voltar para a Cornualha, após a Segunda Guerra Mundial, em 1946, Lanyon reconheceu a importância do espaço, do lugar e da circunstância para a definição da sua identidade.
Nas pinturas da ‘Generation Series’ (‘The Yellow Runner’, 1946 e ‘Construction in Green’, 1947) paisagens apresentam-se escavadas e uma linguagem de protecção, encerramento e formas uterinas é introduzida – densidade, transparências e véus são usados para definir formas curvas. Em ‘The Resolution of Images: Peter Lanyon in context.’, Chris Stephens escreve que estes trabalhos talvez sejam o produto do desenvolvimento de uma linguagem que deriva dos planos curvos e transparentes de Naum Gabo (1890-1977), mas também das ideias de gestação e renascimento do escritor Adrian Stokes (1902-1972). Stephens afirma que a retórica de Lanyon, sobre a obra de arte como outra presença e como um meio para concretizar um tema especifico, vem de Stokes.
‘Art is the mirror of life, just because the creative process mirrors and concentrates the character commom to all the processes of living, namely, the identification of inner states with specific objects, animate or inanimate, in the outside world.’, Adrian Stokes em ‘Coulour and Form’ (1937).
A sua pintura é espessa, densa, opaca e rica, ocupa toda a tela, apresenta várias camadas e demora por vezes anos a estar completa. E Lanyon produz também esculturas, que são uma extensão tridimensional das telas que pinta: ‘My constructions are not complete things in themselves but are experiments in space to establish the illusion and the content of the space in the painting.’, Lanyon, 1958
Lanyon afirmava que a filosofia construtivista era a base de todo o seu trabalho. No início dos anos 40, executa as primeiras experiências tridimensionais bastante precisas sobre uma base pictórica (Box Construction No.1 e White Track). O construtivismo de Gabo, de facto trouxe a oportunidade de Lanyon explorar o espaço através do sentido de lugar. Mas as assemblagens de Picasso trouxeram-lhe a liberdade de abandonar tudo o que diz respeito ao novo mundo tecnológico, moderno e inovador. No inicio dos anos 50, produz objectos com materiais encontrados e a sua construção precária faz esquecer qualquer tipo de ambição utópica da vanguarda russa.
Entre 1952-55, Lanyon corporaliza o fascínio europeu pela materialidade e autenticidade física da superfície pintada (de Dubuffet, Asger Jorn e Burri). As composições são subdividas, às vezes até ao ponto da desintegração. Os trabalhos utilizam uma abordagem cubista, onde se descrevem paisagens experienciadas pelo movimento. Porém, tal como acontece em ‘St. Just’ (1953), Lanyon deseja revelar a experiência de um lugar filtrado por um olhar histórico, social e mitológico. Mas já a partir de 1956, anseia anunciar somente a experiência fenomenológica de Merleau-Ponty, do corpo num lugar e tempo específico. É durante este período que se concretiza o interesse em referir-se aos lugares onde sólidos e fluidos se encontram. E por isso em1959, aprende a pilotar um planador. E o voo em planador representa para Lanyon o perigo existencialista da integração total do homem na máquina e na natureza (porque o voo é realizado sem motor, conta apenas com as forças meteorológicas e possibilita uma imersão completa na paisagem). A partir de então e até 1964 (Lanyon morreu aos 46 anos, na sequência de um acidente que sofreu de planador), as suas pinturas tornam-se mais leves, com cores mais intensas, com véus de cor que sugerem as deslocações do ar e cada vez mais indistintas dos objectos tridimensionais.
O mundo do teatro, na obra de Zola, em Nana, por exemplo, é representado acanalhado, imoral, quase indecente. Eça de Queiroz não será mais caridoso, mas apenas goza a cena e diverte-se. Zola é mais cáustico do que só irónico, irrita-se, despreza, mas, na realidade, vai andando por lá, informa-se, tira, meticulosamente, apontamentos, e vai também pedindo e colhendo informações para os seus romances. Mais virulento enquanto jornalista, em 1868 e, depois, em Outubro de 69, já em vésperas da queda de Napoleão III, ele publica, no La Tribune, artigos danados com a ópera bufa e o teatro de variedades, aliás parodiado pela peça que, em Nana, tornará esta vistosa cortesã, sem talentos dramáticos nem cénicos, na titular de La Blonde Vénus, que é, no romance, o ídolo e a tentação lúbrica do público parisiense : Os nossos fidalgos, os nossos filhos família vivem num riso idiota. Aplaudem as bobadas dos Srs. Offenbach e Hervé, promovem a rainhas umas miseráveis dançarinas de corda que, quais artistas de feira, dão pulinhos nos tablados dos teatros... O artigo de 3 de Outubro de 1869 é uma crítica acérrima, mordaz e sarcástica, à digressão egípcia de La Grande Duchesse de Gerolstein, de Offenbach que, pobre de mim, sempre preso em casa, ouvirei esta tarde: Ladro, assim que ouço a música desabrida do Sr. Offenbach. Odeio aquelas cascalhices, com todos os meus ódios literários. Nunca a farsa estúpida se exibiu com tanto impudor... ...um público de claques que se pelam por uma obscenidade, bem acentuada por um dar de ancas! ... ...Que miséria! no dia em que uma mulher tiver a ideia sublime de se pôr de gatas no palco e desempenhar ao natural o papel de cadela errante, nesse mesmo dia Paris adoecerá de entusiasmo! O romance Nana começa mesmo com cenas do teatro Variétés, onde se estreia La Blonde Vénus, a Nana de que já tanta gente intriga: "Conheces a Nana? Sabes quem é?" Até que ela surge em palco: Nesse momento, as nuvens, ao fundo, afastaram-se, e apareceu Vénus. Nana, muito alta, muito forte para os seus dezoito anos, na sua túnica branca de deusa, com os cabelos compridos simplesmente soltos sobre os ombros, desceu para a rampa em pose tranquila, rindo para o público. E começou a sua grande ária : "Quando Vénus anda na ronda da noite..." Logo ao segundo verso, cruzavam-se olhares na sala... Seria brincadeira? Nunca se ouvira voz tão pífia, conduzida com tão pouco método. O seu director julgava-a bem, ela cantava como uma seringa. Mas, mais adiante, o público parece esquecer-se daquela voz avinagrada, e Nana... Ela continuava a balancear-se, só isso sabia fazer. E já ninguém achava isso feio, não senhor, muito pelo contrário, os homens apontavam os binóculos. E quando ela terminava a estrofe, a voz acabou-se-lhe de vez, percebeu que não chegaria ao fim. Então, sem se inquietar, deu um golpe de ancas, que desenhou uma redondeza sob a túnica fina, enquanto, de cintura dobrada, garganta para trás, estendia os braços. Rebentaram aplausos. E logo ela se virara, voltando para cima, deixando ver uma nuca em que cabelos ruivos punham como que uma tonsura de animal. E os aplausos tornaram-se tremendos. A mim, Princesa, a música de Offenbach tem o condão de indeferir... A vulgaridade dos recitativos, a pobreza das letras cantadas, os repetentes cancãs, os galopes que se agitam sem entusiasmar, tudo isso me entedia... Com a pretensão de as tornar divertidas -- ou talvez mesmo paródias críticas das gentes que se afirmam na sociedade vigente -- os autores retiram-lhes qualquer densidade humana, fazem das suas personagens marionetes sem alma. Zola, que devia acreditar cientemente nas artes como meios de transformação social, desesperava e produzia bílis em excesso...Afinal, não consegui voltar a ouvir integralmente La Grande Duchesse de Gerolstein, que todavia foi o maior (ou quase) êxito de bilheteira de Offenbach, exibindo-se em cinco teatros parisienses, em 1867. Os Contos de Hofmann já se distinguirão das óperas bufas e operetas desse judeu de Colónia (Offenbach era o nome da terra natal de seu pai), depois convertido ao catolicismo e naturalizado francês -- mas as outras obras, por muito que as anime a intenção da crítica social, militar e política do Segundo Império, são, deste, uma farsa inconsequente. Curiosamente, o êxito público-teatral de Offenbach desvanece-se com a queda de Napoleão III. E, dez anos depois do êxito da Grande Duchesse, o júri do Salon recusará expor um quadro de Edouard Manet : Nana. O romance de Zola, com esse título, só será publicado três anos mais tarde, em 1880, mas sendo, o pintor e o escritor, grandes amigos -- e de muita conversa no ateliê daquele -- é natural que ocorresse o nome de guerra da cortesã Louise Duval ( personagem fictícia de L´Assomoir e, depois, de Nana) para intitular o retrato de que fora modelo a actriz, demi-mondaine e amiga de Manet, Henriette Hauser, aliás ruiva como a protagonista do romance. A mulher de Georges Bernanos chamava-se, em solteira, Jeanne d´Arc. Não só por devoção de quem lhe dera o nome, mas por genealogia: era descendente directa do irmão da Donzela de Orleães. Já te falei no Saint Dominique de Bernanos, e só lhe conheço outro ensaio hagiográfico: Jeanne, Relapse et Sainte. Adiante iremos percebendo que é, também, hagiografia à la Bernanos... Já o título nos dá um cheirinho disso: Joana, Relapsa (isto é: reincidente, teimosa, impenitente) e Santa ! Aliás, o culto de Joana d´Arc não é, em França, exclusivamente católico e religioso, antes já Napoleão I restaurara, em Orleães, em 8 de Maio, a festa de Joana d´Arc, abolida pela Revolução, e essa se celebra agora, todos os anos, desde 1920, como outro dia nacional da França, no segundo domingo de Maio. Tem sido tal culto partilhado pelo sentimento nacional que atravessa a sociedade francesa, desde a direita nacionalista, barresiana e maurrasiana, ou simplesmente monárquica, à esquerda socialista, maioritariamente laica, republicana e agnóstica, com notáveis excepçoes, como a do religioso Charles Péguy, de alma católica e partido republicano e socialista. O tal que, no seu drama Jeanne d´Arc, põe a donzela de Orleães a recitar esta oração, na 4ª feira, dia 30 de Maio de 1431, antes de ser conduzida, da sua cela em Rouen, para a fogueira a que foi condenada:
Ó meu Deus,
já que Rouen deverá ser agora a minha casa, escutai bem a minha oração:
Peço-vos que aceiteis esta oração como sendo verdadeiramente a minha oração de mim,
porque logo não estarei totalmente segura do que farei quando estiver na rua... ,
e na praça pública, nem do que direi.
Perdoai-me, perdoai-nos a todos, todo o mal que fiz, ao servir-vos.
Mas sei bem que fiz bem em servir-vos.
Fizemos bem em servir-vos assim.
As minhas vozes não me tinham enganado.
Portanto, meu Deus, tratai de nos salvar a todos, Deus meu!
Jesus, salvai-nos a todos para a vida eterna.
O Santa Joana de Bernanos começa, precisamente, lembrando Péguy, que morreu no campo de batalha da guerra de 14-18: Desde que o querido Péguy se foi para o seu fim -- um, dois -- com o forte bater dos pesados sapatos na estrada -- um, dois -- e o seu lenço aos quadrados a tapar-lhe a nuca -- um, dois -- na imensa poeira do Verão... queríamos que Joana d´Arc pertencesse apenas às crianças. Quem isto escreveu acredita, profundamente, que, como disse Jesus, das crianças é o reino dos céus, porque a fé não pactua com a mentira. A inocência da infância, para Bernanos, responde à pergunta que repetidamente fazemos: Ainda bate o coração do mundo? Mais le coeur du monde bat toujours. A infância é esse coração. Não fosse o doce escândalo da infância, e a avareza e a manha teriam, num século ou dois, secado a terra. É elucidativo reler certos passos da Jeanne, Relapse et Sainte para entendermos, Princesa, para entendermos este trecho da mesma prosa: A maravilha é que, dessa vez, talvez única no mundo, a infância tenha assim comparecido perante um tribunal regular, mas a maravilha das maravilhas é que esse tribunal tenha sido um tribunal de gente da Igreja. Bernanos tem uma posição firme na discussão sobre se o processo de Joana d´Arc ( que a julgou de acordo com todas as regras do direito canónico e a condenou à fogueira, sentença de que a Santa seria reabilitada postumamente, em 1456, pela mesma Igreja...) que opunha os de parecer que se tratava de um julgamento religioso, aos que diziam ser ele político. Eu, nestas e noutras questões, sou -- sabe-lo bem Princesa -- como Bernanos, um anticlerical. Não por tentação laicista, nacionalista monárquica ou socialista republicana. Sou anticlerical de dentro da Igreja, teológico e cristão tradicional. Mas vamos ao tal trecho de prosa: A nossa Igreja é a Igreja dos santos. Quem dela se aproxima com desconfiança crê que só vê portas fechadas, barreiras e guichês, uma espécie de polícia espiritual. Mas a nossa Igreja é a Igreja dos santos. Para ser santo, que bispo não daria o seu anel, a sua mitra, o seu báculo, que cardeal a sua púrpura, que pontífice o seu hábito branco, os seus camareiros, guardas suíços, tudo o que é o seu mundano? quem não quereria ter a força de correr tão admirável aventura? Porque a santidade é uma aventura, é mesmo a única aventura. Quem, certo dia, o tenha percebido entrou no coração da fé católica, sentiu vibrar na sua carne mortal outro terror que não o da morte, uma esperança sobre-humana. A nossa Igreja é a Igreja dos santos. Mas quem quer saber o que são santos? Queríamos que eles fossem velhos cheios de experiência e de política, e a maioria são crianças. Ora a infância está sozinha contra todos... ... Todo esse aparelho de sabedoria, de força, de elástica disciplina, de magnificência e de majestade nada é em si mesmo, se não o animar a caridade. Mas a mediocridade aí apenas procura um seguro sólido contra os riscos do divino. Que importa! O mais pequeno rapazinho dos nossos catecismos sabe que a bênção dos nossos homens de Igreja, todos juntos, só trará a paz às almas já prestes a acolhê-la, às almas de boa vontade. Rito algum nos dispensa de amar. A nossa Igreja é a Igreja dos santos. Aliás, nenhures quereríamos imaginar sequer tal aventura, e tão humana, duma pequena heroína que, num só dia, passa da fogueira do inquisidor para o Paraíso, debaixo do nariz de cento e cinquenta teólogos. «Se chegámos a este ponto», escreviam ao papa os juízes de Joana, « de as bruxas falsamente vaticinando em nome de Deus, como certa fêmea apanhada nos limites da diocese de Beauvais, serem melhor acolhidas pela leviandade popular do que os pastores e os doutores, acabou-se tudo, a religião perecerá, desmorona-se a fé, a Igreja é espezinhada, a iniquidade de Satanás dominará o mundo! ... » E eis que, quase quinhentos anos mais tarde, a efígie da bruxa está exposta em São Pedro de Roma -- é certo que pintada como guerreira, sem tabardo nem túnica fendida! -- e, a uns cem pés abaixo dela, Joana terá podido ver um minúsculo homem branco, prosternado, que era o próprio papa! Como sagazmente observou Jacques Chabot, nas sua notas acerca dessa obra, «Bernanos compôs essencialmente uma oração em forma de poema, Jeanne, Relapse et Sainte liga a reflexão sobre a política e a história a uma contemplação da tragédia da salvação. À sentença maurrasiana "Primeiro a política, ensina-nos a prática de Joana d´Arc", Bernanos substitui o desafio "Poesia e mística primeiro!" E coloca a sua obra sob a dupla invocação do poeta Péguy (ao princípio) e de "Teresinha" (no fim) ». Esta Teresinha é a de Lisieux, do Menino Jesus, a tal que proferiu uma visão que Bernanos nunca abandonou: Tudo é graça! Vai longa, Princesa de mim, esta carta. Mas prometo que, numa seguinte, te falarei ainda do processo de Joana d´Arc, e de diversa gente, desde Michelet a Claudel, ou de Verdi a Honneger. Por hoje, apenas acrescento que, cansado do cancã do Offenbach, acabei por escutar a Giovanna d´Arco, do Verdi, ópera épica, escrita para o patriotismo fervoroso do Risorgimento, em que Die Jungfrau von Orleans (título da peça de Schiller, de 1800, que inspirou o libreto de Temistocle Solera) não morre na fogueira, antes no campo de batalha:
Ecco!...nube dorata m´innalza...
Oh!...l´usbergo tramutasi in ale!...
Addio Terra!... Addio, gloria mortale...
Alto volo... già brillo nel Sol!
Em nuvem de oiro se eleva Joana, com a couraça a transformar-se em asas... E diz adeus à terra e à glória mortal: alto voando, já brilha no Sol! Como tu, Princesa, no coração da minha amizade! { É bonito, não é? Aplausos. Cai o pano.}
Reli “A POESIA CONTINUA – Velhas e novas circunstanciais” de José Gomes ferreira, livro com a chancela da Moraes editores.
A sua escrita neste livro, e passados tantos anos sobre a sua leitura, fez-me pressentir ângulos de interpretação, uns mais, outros menos, dentro da lembrança que guardava. Refiro-me com curiosidade e, sobretudo, ao modo como a sua poesia aborda o sofrimento
Sonhei-me demais e agora
já não me atrevo a ser eu,
nem a andar nu, cá por fora,
sem mim mesmo como véu.
Fui sentindo o quanto era necessário a José Gomes Ferreira dizer da ruptura com o quotidiano interior, num escancarar de gesto preso à condição que o agarra e oposta ao seu desejo. Conhece José Gomes Ferreira os limites das próprias expectativas de si e dos outros. É um operário de um produto que paga com os dias cada decepção que a vida lhe impõe. Agride-o a sociedade mercantilista, repudia o que chama de democracia burguesa e entristece-o o caminho da revolução de 1974. «Democracia é alternância»/repetiu de novo a embalar o tédio/um senhor de sono espesso./Como se fosse possível – ó glória! Ó ânsia! - /construir um prédio/mudando de vez em quando/os mesmos tijolos do avesso.
Consome-o que a energia não baste para lhe dar força ao seu sonho. E de novo o sofrimento modelador da paisagem dos dias é o excedente de cada noite de vigília. A clara ideia de que o detentor da arma atómica não receia represálias e que essa arma não cabe nos limites da natureza, deveria, forçosamente, levar a uma fase nova de progresso e possibilidade. Mas não. E a raiva dos pássaros perdidos em voo antes de chegarem à paisagem desejada por José Gomes Ferreira, necessariamente deixa-lhe cinzas nas mãos.
Escreve:
Um homem gigantesco com milhares de bocas empunhava um cartaz onde se lia em letras ardentes: AGORA TODOS TEMOS DE SER MÁGICOS
Quanta zanga! Quanta vontade! Quanta solidão daquela que é boa para não se estar sozinho.
Recordei A. Malraux «Sei mal o que é a liberdade, mas a libertação sei o que é.» Entenderia José Gomes Ferreira que afinal depois do depois, tínhamos ficado muitíssimo bem disciplinados, pois culpa nossa, não lutáramos pelo mesmo que ele, e, por essa razão, éramos cegos por igual? Ou, a nossa visão militante do mundo era outra?
É de Agustina Bessa Luís a frase
NINGUÉM É MAU. O QUE SOMOS É AINDA NOVOS DE MAIS NA TERRA
Por mim ainda penso, que a ruptura com atavismos e com o que de castrante tem a família, os primeiros beijos, as conversas do estar no mundo, tudo e o mais em proximidade e distância, não me fez o sofrimento na poesia daquele tempo. A anarquia, essa é inata ao poema, e, desde que lá esteja, ele é claridade e rei.
E num repente tão inato e tão humano de José Gomes Ferreira, este poema:
Digam-me lá:
para que serviria ser poeta
se não chorasse
publicamente
diante do mundo?
E Fernando Pessoa
Somos incapazes de revolta e de agitação (…) não nos resulta uma perturbação das consciências.
Eu, na altura da revolução de 74, estava assim num ponto em que uma pessoa começa a descobrir uma data de coisas de que normalmente nem suspeitava. No primeiro dia de greve, andei a limpar os livros todos, para demonstrar a mim mesma que não ia usar bandeira que minha não fosse. E é isso também, é quando se não volta atrás pois esse não voltar quer dizer evoluir. Quer dizer, quantas vezes, que a ingenuidade pode ser amarga e ainda assim, resisto, insisto e fico onde me leva o palpável sonho que construo.
UMA ATRIZ ESQUECIDA QUE É NOME DE UM BELO E IMPORTANTE TEATRO
Na preparação do programa da visita do CNC a Montemor- o- Velho, inclui-se, com toda a justiça, o velho Teatro Ester de Carvalho. Mas esclareça-se desde já, e sem embargo óbvio do que, na altura e in loco, será referido e confirmado: para além da qualidade do teatro em si, exemplo notável de edifício de espetáculos do início do século passado, concretamente 1901/2, mercê da adaptação de uma antiga Igreja – para além dessa exemplaridade de arquitetura de espetáculo, que no local será visitada e devidamente referida, há que assinalar desde já a sua atividade artística: funciona exemplarmente o CITEMOR, grupo cultural e cénico de verdadeira qualidade. Tudo isso veremos no local e no momento próprio.
Como veremos também a importância cénica e literária daquilo a que, como todo o rigor, podermos chamar de dramaturgia inesina, relativa pois à tragédia de Inês de Castro, que se inicia, em termos de teatro, com a esplendorosa “CASTRO” (c. 1560) de António Ferreira, passa pelas expressões dramáticas dos seculos XVII a XX, dura até hoje em peças contemporâneas, e surge também em textos dramatúrgicos espanhóis e franceses de grande qualidade.
Mas insista-se, tudo isso será visto no momento e no local próprio.
Para já, refira-se que o Teatro Ester de Carvalho, existe apesar de modernizações que o mantêm mais ou menos na traça original, corresponde à adaptação de uma velha Igreja de São Pedro dos Clérigos. Não é caso único: podemos recordar, entre tantos mais, o Tetro Lhetes de Faro. Como também não é inédita a mudança de nome do Teatro Ester de Carvalho, que na origem se chamava Teatro Infante D. Manuel.
Mas quem era então a atriz Ester de Carvalho? A sua biografia, breve e dramática em sentido artístico mas também em sentido literal, deixa a memória (hoje esquecida) de uma atriz de grande qualidade e de total instabilidade pessoal e profissional. Era natural de Montemor-o-Velho, daí a homenagem do nome do Teatro.
Estreou-se muito jovem em 31 de Março de 1880, no Teatro da Trindade, com a opereta “O Cão de Malaquias”. Tomaz Ribas recorda aliás a estreia do Trindade, em 30 de Setembro de 1867, assinalando que “mais do que o espetáculo inaugural - que não agradou nem ao público nem á critica – o edifício e a sala do Trindade foram as grandes vedetas da noite…” (in “O Teatro da Trindade - 125 anos de Vida” ed. Lelo e Irmão -1993 pag. 18). E basta recordar as páginas que Eça dedica, designadamente em “Os Maias”, recentemente adaptadas e encenadas precisamente no Trindade.
Ora se é certo que a estreia de Ester de Carvalho foi promissora, a carreira a muito breve prazo deixa de o ser. E a atriz morreu jovem no Rio de Janeiro. Sousa Bastos, fonte sempre citada e tantas vezes única para os atores e atrizes desta época, não deixa por menos no “Diccionário do Theatro Português”:
“Era inteligentíssima, tinha uma voz deliciosa, grande desembaraço, olhar vivo e penetrante, enfim, todos os dotes requeridos para um grande sucesso no teatro. (…) O pior é que tinha tanto de atraente como de desequilibrada. Era turbulenta a não havia meio de a fazer cumprir com os seus deveres. A empresa fartou-se dela e ela ainda mais da empresa”. Seguiu então para o Rio de Janeiro onde “foi acolhida com o maior entusiasmo e aclamada. Fanatizou o público: mas fazendo ao mesmo tempo loucuras que lhe deram grandes desgostos e a acabaram por a matar! Em poucos meses”…
Merce no entanto a homenagem que o nome do teatro da localidade onde nasceu ainda hoje ostenta. E o Teatro Ester de Carvalho merece amplamente a visita, como exemplo conservado e ativo da geração de salas de espetáculo dos séculos XIX / início do século XX. Em boa hora o CNC promove essa visita, para além do sentido histórico e urbanístico de Montemor-o-Velho, e a memória dramática de Inês de Castro.
Dramática em sentido histórico, em sentido literal e em sentido de expressão teatral: pois a literatura dramática do tema inesino, como vimos acima e melhor veremos, é vasta e perdura dos clássicos aos contemporâneos, tanto em Portugal como na Europa.
Remember, remember, fifth of November, gunpowder, treason, and plot. O refrão das bonfires outoniças ganha luminosidade em época de revolta contra o governo Tory na House of Lords. Guy Fawkes regressa às caves dos pares e já dinamitou o projeto do Chancellor of
the Exchequer de cortar £4,4bn nos tax credits, aqueles que na campanha eleitoral recusara RH David Cameron reduzir. The Peers preparam agora nova tesourada legislativa na Investigatory Powers Bill com que a Home Secretary RH Theresa May legaliza o policiamento das “users’ web browsing histories,” ignorando, aliás, a recomendação de ceder tal licença a juízes e não a políticos. — Chérie! A l'œuvre on connaît l'artisan. RH Jeremy Corbyn enuncia em Perth a sua vision for Scotland and the rest of the UK como “the sunshine of socialism.” — Hmm! A leopard cannot change its spots. O britânico Mr Shaker Aamer sai de Guantamo Bay após 13 anos de cativeiro. A European Union elimina finalmente as taxas fronteiriças nas telecomunicações. A Russia bloqueia o santuário oceânico em Antarctica. O grupo US, Russia, Iran e outros lançam ronda diplomática para a new peace effort for Syria. Escalando o grau de envolvimento do West nas guerras do Middle East, Washington envia botas das forças especiais para combater no terreno o Isis.
Winter schedule em London. Os dias apresentam-se em molde de regresso ao passado em ideological mode, após os honoráveis lordes colocarem HM Treasury on the night of 4–5 November 1605. Vamos por partes. Sir Dave Cameron repetidamente insiste antes das últimas eleições que um novo Tory Govt “would not cut tax credits,” até porque a medida fere os mais pobres. O No. Ten muda de posição durante o 2015 red Summer. No edifício ao lado regressa o Chancellor G Osborne à obra de demolir o Welfare State e reconquista prioridade um ido abate nos créditos fiscais. Ora, o corte na subsidiação estatal é desta feita combatido e delongado até 2018 pelos vitalícios Lords sob duríssimo argumentário sociopolítico e lapidar conclusão de a medida ser "morally indefensible."
A derrota conservadora sucede devido à presença de duas maiorias adversas em Westminster. À superioridade dos Tories na House of Commons opõe-se uma clara hegemonia das oposições na Upper House: mais 12 MPs nos green benches, mas apenas 212 em 819 nos red benches. Está assim criada a receita para uma nova frente na larvar crise constitucional, a somar à devolução de poderes em Scotland e à incerteza da permanência do UK na European Union. Que o choque ganha contornos da conspiração que eterniza Rocket Fawkes na luta pela justiça social fica visto. Derrotado o delfim Osborne à Tory crown, o alvo é agora a pretendente May. Em causa está polémica lei contra o terrorismo e os sensíveis limites da privacidade individual, tema caro cá pelas ilhas e onde todos se responsabilizam pelo keeping watch. Mas aquilo que para uns é uma inadmissível manifestação do Nozy Parker com ou sem uniforme, é para outros “merely a routine upgrade to the engine of domestic security.”
Animado anda também o debate partidário de além oceano. Um novo encontro televisivo dos candidatos republicanos na corrida presidencial obscurece a estrela do front runner Mr Donald Trump em favor dos igualmente inefáveis Senators Marco Rubio e Ted Cruz.
Pior mesmo que as acusações mútuas entre os cândidos demandantes ao Oval Office da superpotência ocidental, só já as notícias de crescentes deserções financeiras no seio da campanha do outrora favorito Jeb; i.é: Mr John Ellis Bush. Diversos e pluralmente orientados media informam que o antigo governador da Florida desenvolve contatos com donors & supporters com singela mensagem política: que este filho e irmão de dois ex US Presidents possui a fibra necessária para se bater pela Republican Party’s nomination.
O imenso quê que distingue os grandes líderes da banalidade esteve em equação no Channel 4 neste Saturday, após emissão do documentário How To Be The Queen: 63 Years And Counting, de Mr Chris Durlacher. Refletindo sobre a bem-aventurada experiência da Queen Elisabeth II, um painel de ilustres examina o como e o porquê de Her Majesty permanecer inquestionada quer no trono do United Kingdom, quer no afeto dos Britons. Palavras e gestos de um subtil comando nacional constituído como poder moderador cingem sucessivos ensaios de definição do antigo khárisma, aquele dom divino ou graça mundana que, pelo exemplo de integridade, eleva os influentes na terrana Civitas e inspira a devoção na civitas Dei. — Well! As Hebrew and Christians say, the paradigmatic image of the charismatic hero is the figure who has received God's favor.