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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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FOMOS EM BUSCA DO JAPÃO

 

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   O título do livro Fomos em Busca do Japão tem um motivo e outras intenções. Quando o CNC me convidou para desenhar e guiar uma viagem ao Japão, o Doutor Guilherme d´Oliveira Martins disse-me claramente que ela se inseria no ciclo de peregrinações abrangido pelo globo de Os Portugueses em Busca da sua História. Desde logo, foi-me proposto um tema, que não só me instruía um propósito, como também me antepunha o esboço de um itinerário: eu teria de conduzir uma visita a uma espécie de Japão luso-nipónico, e não propriamente apenas àquele que eu conhecia e gostaria de apresentar... Na verdade, acabei por tentar conciliar os dois, aliás desculpado pela dificuldade de conseguir um percurso em tempo útil  --  e modo interessante para os participantes  --  que incluísse sítios como Tanegashima (ilha de arribação dos primeiros portugueses, náufragos num junco chinês) e Tokushima ( cidade onde Wenceslau viveu os seus últimos anos e está sepultado), deslocações consumidoras de tempo e conducentes a quase nada para ver. Ainda que com pena de não poder visitar melhor o Japão contemporâneo, optei por seguir passos de um encontro registado  --  quer pela perspectiva da memória das culturas que então se defrontaram, quer pelo que dessa confrontação foi ficando, quer sobretudo pelo gosto de co-descobrir o Japão que os nossos maiores conheceram  --  agora como ponto de partida para a busca de uma miragem da alma japonesa, duma razão e dum modo de ser que se revela e evolui no tempo histórico, e vai pertencendo ao passado, ao presente e ao porvir.

   O livrito que escrevi não é, portanto, nem um compêndio de História, nem um relato de viagem, nem uma lição seja do que for, ainda que necessariamente inclua informação para facultar o enquadramento dos factos e impressões nele relatados. É um caderno de apontamentos e memórias, dessas coisas que guardamos no coração, quando somos amigos e queremos ir em busca do outro, para o entendermos na sua diferença, lembrados de que com olhos nossos o olhamos... É, assim, uma obra inacabada e despretensiosa, apenas procura indicar abertas para uma procura que será sempre a que cada qual quiser por bem empreender. [Desde já peço desculpa do que, nas minhas considerações, possa ser menos claro ou acessível: não procurei distanciar-me, falando de coisas mais estranhas; antes tentei partilhar percepções minhas, o que pode não ser fácil, porque todos nós, humanos, por vezes ansiosos de comunicar, afinal escurecemos...] Para qualquer de nós, ir em busca do Japão não é só desvendar coisas passadas  --  factos, vestígios, representações e ideias  --  é, mais, uma aproximação ao entendimento do outro e com o outro, ele mesmo, o tal que interpelamos e nos interpela.

   Às que vêm no livro, junto aqui outra ilustração, quiçá simplória, do que quero dizer, apesar de me parecer que vários passos daquele são mais elucidativos de experiências de diálogos espirituais que o convívio com a gente nipónica me proporcionou. Sou, por educação e cultura, um cristão católico. Entre os japoneses, os crentes dessa fé são uns 0,5% da população, outros tantos professando outras confissões cristãs. Todavia, em nenhum outro país onde vivi  --  e foram alguns, em todos os continentes  --  senti assim tanto a minha alma ser interpelada pela minha fé, pois jamais sentira, como nessa cultura tão estranha à minha própria, que outros seres humanos, e diferentes, pudessem sentir e praticar valores de vida que a instrução que eu recebera me ensinara a julgar exclusiva ou genuinamente cristãos. Narro, já a seguir, a história de Momofuku Ando, que não vem no livro. [Mas abro, antes dela, este parêntese, só para dizer que me lembrei, agorinha mesmo, de que, por alguma misteriosa simpatia, o nosso São Francisco Xavier achou que no Japão habitava uma promessa do reino de Deus...]

   Quem for ao Japão com algumas liberdades de passeio depressa travará conhecimento com as chicken ramen, uma espécie de esparguetes de tipo chinês, muito finos, em caldo de galinha. É prato popularíssimo, encontra-se por todo o lado. Vende-se hoje muito nas lojas de conveniência (abertas 24 horas por dia), macarrão e caldo liofilizado, conservado em copos herméticos de cartão, nos quais basta verter um pouco de água quente, para ter pronta a refeição. Milhões de japoneses, estudantes noturnos ou trabalhadores fora de horas, vão diária ou, melhor dizendo, noturnamente comprar, a baixo preço, esse conforto quentinho, antes de se deitarem nos seus futon, em exíguo apartamento. Essa receita instantânea foi inventada por Momofuku Ando e comercializada a partir de 1958. Mas só em 1971 ele criou as Cup Noodles, umas tigelas ou copos de massas logo prontas a consumir, depois de se lhes acrescentar a água necessária, e que actualmente são fabricadas (mais de mil milhões por ano!) em todo o mundo. A história de Ando Momofuku (como se diz o nome à japonesa) é paradigmática da alma nipónica. Cedo perdeu os pais, teve de se pôr a cozinhar e vender, para se sustentar a si e à irmã mais nova; chegou a construir uma indústria em Osaka, que bombardeamentos destruíram durante a 2ª Grande Guerra. Finda esta, retoma os negócios, mas arruína-se; Osaka é destruição e cinzas, as pessoas abastecem-se no mercado negro, e aí também se atropelam em filas intermináveis para conseguirem comida. Ando assiste ao triste espectáculo de homens, mulheres e crianças que esperam horas intermináveis pela sua ração de macarrão quente. Daí lhe virá a ideia de procurar uma solução que torne esse alimento mais facilmente acessível, não necessariamente dependente de cozinhas provisórias, com tempos de espera muito longos. Será preciso encontrar uma receita que, cozidas as massas, as mantenha em condições de serem consumidas mais tarde. E é ao ver sua mulher fritar tempura, que ele gritará  --  em japonês, presumo  --  eureka, achei! Na verdade, se fritar o macarrão em óleo, e o secar depois, obterá uns esparguetes que, mais tarde, só pedirão um pouquito de água  quente para saberem bem... Curiosa mesmo, ao falarmos de conservação de alimentos, essa inspiração da tempura, termo que, na culinária japonesa, se aplica a fritos de peixe ou marisco ou, alguns legumes e tubérculos, modo de preparação  --  dizem  --  de origem portuguesa (peixinhos da horta?). Talvez. Não porque tempura queira dizer tempero  --  que não diz nem quer  --  mas quiçá porque Dona Catarina de Bragança  --  que, já no reinado de Filipe I, acolhera quatro jovens nobres de Omura, os enviara a ver o papa em Roma e os remetera para o Japão  --  tenha mandado que, quando eles iniciaram a viagem de regresso, a bordo fosse posto peixe frito, para comerem "magro", pois eram as quatro têmporas (donde tempura) da quaresma. O peixe frito e seco conserva-se mais tempo... Abreviando o conto: em 2005, o astronauta japonês Soichi Noguchi levará para o espaço uns saquinhos de plástico contendo Space Ram, o macarrão concebido para viagens interestelares, pela empresa de Momofuku Ando. 

   O que me seduz neste caminho de descoberta é ele ser motivado por olhar os outros na sua circunstância, e querer acudir-lhes. Depois, a simplicidade e a economia das soluções encontradas, a despretensão, aliás evidente na opção que Ando faz por um invólucro mais pequeno do que o don (malga japonesa) em que as massas eram comercializadas, ao ver, num mercado americano, que os yankees não se sentiam confortáveis com esse formato. Assim nasceu o copo das ditas. Na verdade, o criador de tudo isto foi ver, visitar, as pessoas nos seus locais, perceber as suas necessidades e procurar as soluções mais acessíveis para elas. O atendimento, no sentido genuíno de sentimento do outro, está (é?) omnipresente no Japão. Faz, como nas aldeias antigas de Portugal, parte da cultura tradicional do povo. Pela experiência da carência, sua e de outros, na vida, Momofuku Ando, percebeu que a paz só reinará quando todos os homens tiverem com que comer, ou que nada se deve nem pode tirar às crianças. O sofrimento próximo, próprio ou alheio, por que passou, não fez deste homem um derrotado, amargo, desesperado ou revanchista. Não o levou a detestar a vida nem a odiar seja quem for, mas a oferecer a outra face, sem ofensa, simples sinal de solidariedade e paz. Conta-se que ganhou o hábito de chamar colaboradores e operários e lhes perguntar o que estavam a fazer, não para avaliar desempenhos ou produtividades, mas para saber se se sentiam bem, como poderiam gostar mais do seu trabalho, que ideias e novidades teriam... Todos eram assim chamados a viver em comunidade, a sentirem-se próximos, a contribuir, com esforço de braços ou com ideias criativas, para o bem comum. Claro que encontramos aí os princípios do marketing, mas com outra inspiração: não se trata de gerar e promover novas, ainda que supérfluas, necessidades de consumo, para se ir fazendo render o progresso tecnológico. Antes se procura acudir, com novos meios, a necessidades existentes, de modo a que não fiquem de fora os mais desvalidos. O engenho e o lucro podem  --  e devem  --  ser diferentemente inspirados.

   No Japão, aprendi muito sobre a vizinhança, o reconhecimento do nosso próximo, o cerne do evangelho da misericórdia. E, sobretudo, o amor da paz. Vi o mal, também, tal como ele anda por aí, por todo o lado. Mas senti sempre isso a que, desde menino, chamo o apelo de Deus à compaixão, a vocação dos homens de boa vontade. Todos nós, ou quase todos, de um ou doutro modo, devemos trabalhar, pois temos de ganhar com que viver, e é porque a obrigação de trabalhar e a necessidade de produzir são imperativos universais que a organização da economia não pode esquecer-se da complementaridade nem da solidariedade. Ao verificar que 95% dos japoneses se consideram "classe média", percebi que, na prática quotidiana de uma economia de mercado, e muito inovadora, se pode ir assegurando um lugar ao sol para todos. Escandalize-se por sua conta própria quem não me levar a bem dizer que vejo aí uma boa nova realizada no tempo e no modo.

 

Camilo Martins de Oliveira

A FORÇA DO ATO CRIADOR

 

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Acerca da Pousada de Santa Bárbara de Manuel Tainha.

 

‘Quando olhamos para Gropius ou Le Corbusier o espírito moderno era a negação da história. Para os que vêm a seguir é a negação dessa negação. A história é uma grande lição.
As pessoas são iguais mas também diferentes. É essa geração que tem o grande papel e eu sinto-me protagonista dessa geração e a grande contradição que traz. Aplicá-los, criticá-los e ligá-los à realidade concreta. Os arquitetos nos anos sessenta e setenta aplicam e criticam os princípios modernos na realidade concreta, histórica, cultural, política, física, geográfica.’
Manuel Tainha em entrevista, 11 de Julho de 2008

 

Entre Coimbra e Guarda, Manuel Tainha (1922-2012) projeta a Pousada de Santa Bárbara (1955-58 / 1968-71). É uma das primeiras obras de Manuel Tainha, que embora encomendada em 1955, só ficou concluída em 1971.

As Pousadas Regionais, às quais pertence a Pousada em Oliveira do Hospital, estão integradas no programa preliminar das Comemorações dos Centenários de iniciativa do Secretariado da Propaganda Nacional – primeiramente lançado em 1938, para promover a propaganda turística. Os projetos e a construção eram promovidos e acompanhados pela DGEMN (Direção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais) e deveriam corresponder a um entendimento correto do sítio. A partir de 1954, iniciou-se um novo ciclo no projeto das Pousadas Regionais que criadas no quadro institucional adotam uma expressão cada vez mais contemporânea. A Pousada de Oliveira do Hospital pertence ao conjunto de pousadas regionais encomendadas à segunda geração moderna – tal como a Pousada de Valença de João Andresen e a Pousada de Bragança de José Carlos Loureiro.

O projeto da Pousada de Santa Bárbara incorpora os diversos caminhos da arquitetura portuguesa do final da década de 50. Decorreu a par da elaboração do Inquérito à Arquitetura Popular em Portugal, sendo por este fortemente influenciada.

Manuel Tainha foi pioneiro em anunciar o questionamento dos princípios do Estilo Internacional, adotados dogmaticamente no Congresso de 48. No final da década de 50, era já generalizada uma nova posição atenta à necessidade de uma diferente adequação social e histórica, que correspondeu a um momento de revisão. Em Portugal este momento foi materializado com o Inquérito à Arquitetura Popular. Manuel Tainha participou nesta ação, assim como na posterior publicação do livro Arquitetura Popular em Portugal (1961). A elaboração do Inquérito permitiu assim compreender a reciprocidade existente entre o homem e a paisagem na arquitetura popular. Possibilitou uma inspiração na autêntica cultura portuguesa para humanizar a arquitetura, assinalando a reconciliação com as tradições locais, mostrando a multiplicidade de estilos existentes de acordo com as várias regiões do país.

Tainha revela, também na década de 50, Alvar Aalto através da publicação e tradução das suas reflexões escritas. A leitura de Alvar Aalto transporta os vários caminhos do realismo na constatação da falência das posições mais radicais das vanguardas do Movimento Moderno entre as duas guerras mundiais. O projeto da Pousada evoca o princípio orgânico de Aalto, ao ir à descoberta de um funcionalismo dentro da autêntica cultura popular portuguesa. Ao estabelecer uma relação íntima entre o Homem e a Natureza, ultrapassa o estrito racionalismo contido na era da máquina. A escala é mais humana e intimista. É revelada a importância do lugar. Assiste-se a um processo de humanização – o utente já não é um homem abstrato, ideal, genérico e com necessidades-tipo. Mas um homem concreto e real, individual, com gostos e desejos concretos – definido no pensamento existencialista do pós-guerra, pleno de contradições e imperfeições.

Manuel Tainha sempre cultivou o seu espírito crítico e intervencionista, reclamando a necessidade de uma abordagem da arquitetura moderna aberta e lúcida. Ao organizar a partir de 1958, os dez primeiros números da revista Binário – Arquitetura, Construção, Equipamento, Tainha revela as suas preocupações mais eminentes: a necessária relação recíproca da arquitetura com a comunidade; o reconhecimento da importância da ‘arquitetura sem vanguarda’ e nessa medida a não valorização do trabalho de autor; a defesa das virtudes da arquitetura enquanto ofício artístico baseado num saber de séculos que liga teoria à prática, em detrimento da procura de uma nova linguagem como objetivo final; a necessidade de cruzar os diversos ramos do saber que isolados caem na abstração; a necessidade imediata da cultura portuguesa para elevar a construção a um processo integrado e unitário.

A planta da Pousada de Santa Bárbara é orgânica ao revelar a total incorporação no terreno, ao ‘fazer daquele sítio rude e agreste um lugar habitável em louvor da paisagem’. Tainha encosta a pousada no declive, de frente para a vasta paisagem. E cria um lugar, ao desenvolver o método de trabalhar o corte, que combina um único piso do lado de quem chega com dois pisos do lado da paisagem. Os principais espaços internos determinam-se contemplativos para o exterior. Os volumes são baixos e espraiados em torno de pátio. O pátio funciona como filtro que separa o ponto de chegada e a vista da Serra.

Verificam-se os paradigmas modernos e racionais na clareza funcional de distribuição do programa e na nítida diferenciação volumétrica.

Organiza-se a paisagem que vai sendo revelada através de uma sequência de acontecimentos – esconde-se através da criação do pátio, é observada a partir das salas comuns, é percorrida através da varanda corrida.

Manuel Tainha contrapõe o aberto e o fechado. Entende-se o aberto através das qualidades ambientais de grandeza e austeridade, interiores e distantes, próprias da Serra da Estrela. Entende-se o fechado através das características de interioridade, de acolhimento, de abrigo e de clausura, que a pousada oferece.

Os pilotis cilíndricos em granito fazem a adaptação ao terreno e suportam expressivamente o volume dos quartos. Referenciados à arquitetura popular local declaram o interesse de Tainha em utilizar os materiais tradicionais e revelar os seus valores plásticos.

Em osmose com o sítio a Pousada de Santa Bárbara sugere imagens várias e contrastantes – os pilotis orgânicos e geológicos, o volume monolítico e geométrico dos quartos, as coberturas de telha cerâmica, a utilização da alvenaria de granito à vista, o xisto, o betão à vista, a madeira e o vidro.

 

Ana Ruepp

 

 

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

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    Minha Princesa de mim:

 

   Aí por 1912, salvo erro (que nunca pode ser grande), veio-me à ideia escrever uns poemas de índole pagã. Esbocei umas cousas em verso irregular (não no estilo de Álvaro de Campos, mas num estilo de meia regularidade), e abandonei o caso. Esboçara-se-me, contudo, numa penumbra mal urdida, um vago retrato da pessoa que estava a fazer aquilo. (Tinha nascido, sem que eu soubesse, o Ricardo Reis. Assim conta Fernando Pessoa o surgimento do seu heterónimo médico, o mais velho de todos eles e de que o próprio ortónimo, pois este mesmo lhe marca o nascimento em 1887, um ano antes do próprio Pessoa, dois antes de Alberto Caeiro, três de Álvaro de Campos. Mas, apesar de ser o mais velho, nasce antes de ser poeta, é aliás o último dos quatro a assinar obra sua, em Junho de 1914, depois de Caeiro e Campos, em Março. O primeiro, o Mestre, será Alberto Caeiro: Acerquei-me de uma cómoda alta e, tomando um papel, comecei a escrever, de pé, como escrevo sempre que posso. E escrevi trinta e tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase cuja natureza não conseguirei definir. Foi o dia triunfal da minha vida e nunca poderei ter outro assim. Abri com um título O Guardador de Rebanhos. E o que se seguiu foi o aparecimento de alguém em mim, a quem dei, desde logo, o nome de Alberto Caeiro... [Escrevia de pé, como o nosso Eça tanto gostava...]. Este Caeiro  --  que dizia que as coisas são o único sentido oculto das coisas  --  tem um não sei quê de zen. David Mourão Ferreira escreve, no prefácio da sua antologia cronológica de Fernando Pessoa, intitulada O Rosto e as Máscaras: Através de Alberto Caeiro, tratava-se, essencialmente, de recusar toda a metafísica ("Há metafísica bastante em não pensar em nada") e de cantar a natureza do modo mais objectivo, sem ver nas coisas senão o que as coisas aparentam. E observará ainda que, de qualquer modo, o certo é que Alberto Caeiro, com a sua complexa "simplicidade", virá influenciar, directamente, os dois outros heterónimos que, a seguir se impõem a Fernando Pessoa: Álvaro de Campos e Ricardo Reis. É este último que tenho relido em horas insones das minhas noites. Tranquiliza-me. Quiçá porque, como diz o próprio Pessoa, pus em Ricardo Reis toda a minha disciplina mental, vestida da música que lhe é própria... Ou talvez porque eu me sinta próximo de, ou confortado por, um Ricardo Reis que o David Mourão Ferreira vai cercando assim: sintetiza toda a sabedoria do passado, todo o património moral da tradição humanística: é o Horácio do nosso tempo. E da sua poesia dirá que ela recolhe, não sem desabusada ironia, o legado dos séculos, consistindo, antes de tudo o mais, numa decantada "arte de viver"...   ... Ricardo Reis não mais desejou que viver segundo o ensinamento de todas as culturas, sinteticamente recolhidas numa sabedoria que vem de longe e nem por isso deixa de ser pessoal... Dir-te-ei, Princesa de mim, que, no sentido em que a acarinho, a minha cultura é o ar que respiro, o ambiente que me deixa ser eu, na medida em que me vou identificando através do reconhecimento das paisagens que o meu espírito tem habitado. É lapidar a definição de Ortega y Gasset, que nunca me canso de repetir: eu sou eu e a minha circunstância. Afinal, o mesmo será afirmar "diz-me com quem andas, dir-te-ei quem és" ou que "pela casa se conhece o caracol". Penso ainda que, ao dizer "a minha Pátria é a língua portuguesa", Fernando Pessoa nos dá a morada da sua cultura, a casa onde habita e a que pertence. Tal como os seus heterónimos lhe pertencem, e ele lhes pertence: são imaginários de si em circunstâncias diversas da sua alma. E tudo isto  --  pessoa, casa, cultura, língua   --  se move, evolui como a Terra e expande como o Universo inteiro, "tomando sempre novas qualidades". Mas, todavia, permanece e ganha consistência e é, na sua própria mutação, um caminho de fidelidade. O imutável vai-se revelando pelo provisório, tal como os místicos encontram o absoluto no vazio de tudo...

   Gosto muito, em Ricardo Reis, da disciplina clássica do pensamento, do estilo, da própria sintaxe do verso:

 

          Ponho na altiva mente o fixo esforço

               Da altura, e à sorte deixo,

               E às suas leis, o verso;

          Que, quando é alto e régio o pensamento,

               Súbdita a frase o busca

               E o scravo ritmo o serve.

 

 

   E em horas nocturnas de aflição, saboreio outra lembrança dos dias:

 

          Neste dia em que os campos são de Apolo

          Verde colónia dominada a ouro,

          Seja como uma dança dentro de nós

               O sentirmos a vida.

 

          Não turbulenta, mas com os seus ritmos

          Que a nossa sensação como uma ninfa

          Acompanhe em cadências suas a

               Disciplina da dança...

 

          Ao fim do dia quando os campos forem

          Império conquistado pelas sombras

          Como uma legião que segue marcha

               Abdiquemos do dia,

 

          E na nossa memória coloquemos,

          Como um deus novo de uma nova terra

          Trazido, o que ficou em nós da calma 

               Do dia passageiro. 

 

   E vacino-me de cultura clássica contra as girândolas ruidosas das falsas alegrias:

 

          Não batas palmas diante da beleza.

          Não se sente a beleza demasiado.

               Saibamos como os deuses

               Sentir divinamente.

 

          Ao ver o belo, lembra-te que morre.

          E que a tristeza desse pensamento

               Torne elevada e calma

               A tua admiração.

 

          E se é estátua ou de Píndaro alta estrofe

          Em quem teus olhos são abandonados

               Não te esqueças de que essa

               Beleza não é viva.

 

          Sempre ao belo uma cousa há-de faltar

          Para que seja triste contemplá-lo

               E nunca se poder

               Bater palmas ao vê-lo...

 

          Calma é a beleza. Ama-a calmamente.

          Os dons dos deuses como um deus aceita

               E terás tua parte

               Do néctar dado aos calmos.

 

  

   E aqui estou, Princesa a quem já dise que "amo a transparência do teu olhar magoado", sem nada mais, nesta hora crepuscular, em que recito uma versão da ode IX de Ricardo Reis:

 

          Coroai-me de rosas!

          Coroai-me em verdade

               De rosas!

 

          Quero toda a vida

          Feita desta hora

               Breve.

 

          Coroai-me de rosas

          E de folhas de hera,   

               E basta!

 

   Eu ainda vivo e respiro uma cultura que ferve sempre, porque no âmago do seu fervilhar tudo continua, talvez mesmo o que parece esquecido. A brevidade é um elo.

 

                                                                        Camilo Maria

 

 

Camilo Martins de Oliveira

Eu quero a minha escola

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Eu quero a minha escola

Eu quero que ela me ame

Como eu a amo

Eu não a quero perder

Eu levo-a comigo sempre

Para os meus sonhos

E não quero que isso doa

Ou que a ambas faça frio

Eu quero a minha escola

Só ela me pergunta

O que vai ser da minha vida?

 

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Teresa Bracinha Vieira
Janeiro 2016

SOFIA GANDARIAS (1957-2016)

 

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Sofia era uma amiga antiga de Portugal, do Centro Nacional de Cultura, de Helena e Alberto Vaz da Silva, de Yehudi Menuhin. Há cerca de um ano esteve connosco com seu marido Enrique Barón Crespo cheia de entusiasmo e de projetos, com a ideia de poder trazer-nos a Portugal algumas das suas obras emblemáticas. Em casa de Francisco Balsemão foi uma noite plena de sonhos e de futuro. Em si a literatura e a pintura estavam intimamente ligadas. Trabalhou intensamente até nos deixar e em Sevilha (no Espaço Santa Clara) é possível visitar uma extraordinária exposição de 28 telas que assinala os quatro séculos da morte de Miguel de Cervantes - «Coloquio de Perros». O conto é uma extraordinária metáfora humana. Quis que tudo ficasse pronto e conseguiu, apesar da doença. Sofia era determinada e persistente. A vida era um bem sagrado. Deixa-nos esse extraordinário exemplo. Amiga de José Saramago e de Pilar del Rio, o autor de «Memorial do Convento» definiu as suas telas como «espelhos pintados». É a defesa da dignidade humana que está sempre presente, invocando Kafka, o holocausto, a memória de Velasquez, a lembrança do seu País Basco e de Guernica… O carácter sombrio de muitas das suas telas é um grito de alerta, um apelo humaníssimo, para que não se esqueça a barbárie!
Sofia Gandarias fica na nossa memória como uma mulher de fibra e de sensibilidade, de amizade e afetos! Ao Enrique e ao Alejandro enviamos a expressão mais funda da nossa amizade e solidariedade! Sofia continua connosco.

 

Guilherme d’Oliveira Martins

ATORES, ENCENADORES - LX

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EVOCAÇÃO DE VERGÍLIO FERREIRA, ATOR JUVENIL, ESPORÁDICO DRAMATURGO

 

Na semana passada, Guilherme d'Oliveira Martins referiu, num texto publicado no e-cultura do CNC, “a singularidade e a força criativa” de Vergílio Ferreira, cujo centenário do nascimento se assinala este ano, como aliás se assinalam os 20 anos da morte. A obra e a marca excecional de Vergílio são ali analisadas com profundidade, sobretudo a partir de títulos muito significativos – “Aparição”, “Vagão J”, “Mudança”, “Conta-Corrente”, “Alegria Breve” ou, noutro plano, “Pensar” ou “Para Sempre”. O texto de G. Oliveira Martins contem assim uma visão abrangente do mais significativo da obra romanesca de Vergílio Ferreira, e as citações, designadamente de Eduardo Lourenço, enquadram a análise global do pensamento e da criação literária respetiva.

Farei aqui referência breve às ligações de Vergílio com o teatro: e breve porque breve foi a sua intervenção direta, como ator e como dramaturgo, sem com isso significar a menor valia do texto dramático que nos legou - a peça “Redenção” publicada em 1949 na revista “Vértice” e incluída, em “Consta Corrente - 2” relativa a 21 de Julho de 1977.

E aí escreve com efeito Vergílio Ferreira: “Perguntam-me com frequência porque não escrevo teatro, tenho bossa para os diálogos, era de tentar. O curioso é que, quando rapaz, escrevi coisas de teatro que se perderam. De miúdo, logo aos seis anos funcionei como ator em Coimbra, só não entrei no TEUC por timidez, e as quezílias de saúde e o ar secreto ou esotérico que tinha aquele agrupamento, mais chegado à literatura, o teatro só episodicamente me seduziu. Creio que a razão é eu amar intensamente a palavra e o teatro não me dar grande resposta, é como se eu tivesse apenas de molhar a boca”…

Não cabe aqui uma análise exaustiva da peça “Redenção” como tal: conflito de opções do protagonista, designado como “O Poeta” que vive a angústia da solidão, da miséria e da doença. Dois amigos (designados por “O 1º Amigo e o 2º Amigo) tentam convencê-lo a intervir numa sessão pública que lhe daria alguma projeção. O Poeta começa por recusar mas, perante a insistência, acaba por ceder à pressão dos Amigos: mas morre ao tentar juntar-se a eles…

Ora bem: o que aqui quero salientar é o sentido teatral das situações, expresso e consagrado em notas de cena que, em rigor, reportam para o mesmo sentido “de espetáculo” da obra romanesca de Vergílio e com o mesmo profundo conflito existencial. Mas o mais curioso, é o detalhe das indicações expressas pelo autor no sentido da potencial encenação, cenografia e direção de atores – tudo isto aliás transparece também na obra romanesca, mas só aqui assume uma expressão cénica expressa e direta.

Vejamos então a caracterização das três personagens, tal como o autor as concebeu e expressamente caracterizou:
“O Poeta – 35 anos, magro pálido, começo de calvície, vestido com desleixo; 1º Amigo - 35 anos, alto, compleição normal, vestido com certa elegância não excessiva; 2º Amigo - 25 anos, sóbrio, baixo, vestido corretamente”.

E a cena é minuciosamente descrita:
“A cena representa um quarto numas águas furtadas, teto oblíquo, pequena janela á esquerda e ao fundo, dando para telhados de outras casas. Ao pé da janela uma mesa e uma pequena estante com livros. Para lá da janela vários prédios. Ao lado direito uma cama de ferro e mesinha. Ao lado esquerdo, um velho lavatório de ferro com jarro e bacia de esmalte velhos, também algumas cadeiras, ao mesmo lado esquerdo uma porta que dá para uma escada alta. Quando o pano sobe, o poeta está recostado sobre a cama”.

E segue-se a caracterização das personagens e as didascálias e orientações da ação, da interpretação e da encenação. Por exemplo:
“(O protagonista) fecha a janela a deitar-se. Pouco depois, ouve passos pela escada acima. Soergue-se, escuta. Os passos aproximam-se. Deita-se encostando a cabeça à beira da cama e espera de olhos fechados. Entram dois amigos, calmamente. Param um momento de pé ao fundo da cama. (…) Acende um cigarro (…) voz baixa, inclinando-se (…) recostando-se de novo”… e assim sucessivamente, com sucessivas indicações diretas aos atores.

E ainda, uma caracterização psicológica das personagens: o 1º Amigo “quando estava no liceu só discutia as fórmulas matemáticas (…) servia-se delas, não hesitava.” O 1º e o 2º Amigos são homens de ação” ao contrário do Poeta, que “gosta de hesitar (…) não tem responsabilidades, não quer atuar”…

Remeto para as razões que, em 1987, Vergílio Ferreira elenca para “explicar” a escassez, quase inexistência da sua expressão teatral assumida - e digo assumida porque, nos romances, a espetacularidade é mais do que evidente. Mas diz ele em “Espaço do Invisível – VI”:

“Eu poderia ter escolhido entre o teatro, a poesia e o romance – se escolher não é profundamente ser mas deliberar. (…) mas porque o teatro é antes de mais ação, vim a sentir nele a falta da «palavra»; e porque a poesia é antes de mais emotividade, vim a sentir nela a falta da «ideia». É dito isto assim sumariamente porque nem a palavra tem por força de faltar no teatro, nem a ideia tem de faltar na poesia. Mas sem dúvida o teatro é fundamentalmente uma ação resolvida no palco, como a poesia é sem dúvida uma emoção resolvida num certo número de versos”.

E finalmente: analisei esta peça num estudo encomendado e publicado pela Universidade da Corunha. E aí traço uma convergência entre esta peça única de Vergílio Ferreira e o teatro de Raul Brandão, “na medida em que (e cito) os ambientes têm algo de comum e porque a dramaturgia brandoneana percorre também uma trajetória (…) até à profunda, dolorosa, condoída e solidária meditação existencial”.
E assim é nesta breve passagem de Vergílio Ferreira pelo teatro-texto, ele que episodicamente passou também pelo teatro-espetáculo.

  

DUARTE IVO CRUZ

 

 

LONDON LETTERS

 

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The hypothesis of the US President DJ Trump, 2016

 

PSXP. Ou Political Sports Xtreme Program. O espetáculo é algo bárbaro para o gosto inglês, com os vaqueiros e as vaqueiras contra

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cavalos e touros no tie-down roping, no steer wrestling, no saddle riding ou no barrel racing, mas os rodeos ajudam à explicação do fenómeno que abala a paisagem eleitoral norte-americana. Quanto pior, melhor! Isso aclara o endosso populista de Mrs Sarah Palin (i.é: da direita do Tea Party) ao milionário que há 7 meses lidera as sondagens na campanha presidencial, do New Hampshire e South Carolina à Florida, Georgia ou Iowa. Só no Texas ele perde o favoritismo para nativo Mr Ted Cruz, sem sombra do ido Mr Jeb Bush. — Chérie. La raison du plus fort est peutêtre la meilleure. O magnata é Mr Donald J Trump e relevos há na sua operação de takeover do Grand Old Party. Os comentaristas dizem já Yes, he can, vogando da tese da impossibilidade à de improbabilidade até à atual plausibilidade no sucesso da corrida à White House. Em aleatórias primárias que por lá tudo decidem, sublinhe-se quão contrastante é a moderada e tranquila eleição do chefe de estado na República de Portugal! — That was, politically, a clever game. Também por cá têm os céus suave anil. A Google Ltd acorda pagar escassos e polémicos £130m em impostos no UK enquanto baixa a fatura fiscal em Dublin. O trio Charlotte Rampling (45 Years), Mark Rylance (Bridge of Spies) e Eddie Redmayne (The Danish Girl) figura nas Oscar Nominations 2016.

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Sunny here, rain there and breezy everywhere. Esperando ondas do big frezze d’além Atlântico, é em atmosfera frescota que continuam a sacholar-se as trincheiras prosélitas em Westminster. As divisões internas no Labour Party e a clivagem entre eurocéticos e eurófilos animam as dinâmicas políticas, mediáticas e também a small talk, em dias tristes de grave perda humana. O explorador Mr Henry Worsley morre na tentativa de atravessar Antarctica a solo. Se o antigo oficial das SAS cai no desidério de hastear a Union Jack no continente gelado, já Eglwyswrw arvora sem querer a bandeira no mundo natural. A pequena aldeia de Pembrokeshire (Wales) entra na história da metereologia doméstica, ao registar um dia seco após 85 pluviosos e quase bater o invernoso recorde de 89 dias com chuva caída na ilha de Islay (Scotland) em 1923.

No mais é a ementa em voga. A campanha eleitoral do referendo europeu ganha velocidade. Diariamente se disseminam estudos, números e afins sobre os danos que uma eventual Brexit causará à economia e ao emprego, segundo uns, em contraponto aos benefícios no jogo político e magistratura diplomática global do United Kingdom, segundo outros. Alea jacta est, porém. Os dados estão lançados e os ininterruptos nevoeiros no continente firmam as tendências In/Out na opinião pública mais consoante as carteiras e menos à luz das manchetes ou dos cruzados. As vagas rebentam de tal modo nos desfiladeiros que hoje são as eurosondagens que Downing Street acelera nos preparativos para a realização da consulta até ao final do primeiro semestre. A pressa resulta não tanto dos contornos do prometido New Deal em Brussels, sim porque o Prime Minister RH David Cameron teme a impopular vinda de mais refugiados – aqui colada à controversa emigração e ao terrorismo. Que aqui reside a vulnerabilidade estratégica dos Tories confirma-o Mr Jeremy Corbyn, a clamar no Labour pela livre entrada dos asylum-seekers acampados em Calais.

O líder trabalhista relança a ação oposicionista após recentes e más sondagens, catastróficas até em Scotland e Wales, na sequência da inábil remodelação do Shadow Cabinet e em vésperas de agendado revés no Trident. Contadas as espingardas na Defense Review, apenas 1/3 dos Lab MP’s apoia a sua visão de enviar submarinos nucleares para o oceano sem ogivas. O esforço de aproximação aos opositores no partido é de realçar, ainda assim. Jeb amoderna o pacifismo. Se sempre desgosta das fardas, agora anui a que se equipem com escudos ‒ embora sem balas. E é um imperturbado RH Jeremy B Corbyn que intervém na Fabian New Year Conference 2016 a explicar o posicionamento de Old Bobby. O discurso tem tema forte: “The absence of fairness and the wish for more of it is what drives us into political activity. We want a fair treatment for all, a fairer society and a fairer world.” O MP de Islington North fundamenta a tese: “Fairness is easily to claim but hard to deliver. David Cameron makes the argument that cuts are fair because it is not fair to burden future generations with debt. Superficially, a very compelling argument but how is cutting investment in, and opportunities for, tomorrow’s generation fair? It’s not. It’s deeply unfair. And today’s young people are already paying the price.”

Preço alto, porque tonto, apresenta o debate por vilania histórica em torno de Sir Cecil Rhodes. Uns quantos jovens e alunos bolseiros querem o derrube de estátua na entrada do Oriel College, na University of Oxford, sob o argumento de aquela incensar nas mentes a exploração racista. Já o Chancellor Chris Patten defende o legado do milionário que ali permite a muitos estudar. A controvérsia nutre manifestações e diatribes. Sondagem YouGov/The Independent assiste agora às trincheiras em Oxfordshire: 11% aprovam que deva retirar-se a figura da fachada. Mais concludente é a estatística acerca do império. Face a 19% que o entendem a bad thing, 43% pensam-no como a force for good. — Well, well! As Master Will S writes in The Sonnets, O, call not me to justify the wrong / That thy unkindness lays upon my heart; / Wound me not with thine eye but with thy tongue; / Use power with power and slay me not by art.


St James, 25th January
Very sincerely yours,
V.

A VIDA DOS LIVROS

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 De 25 a 31 de janeiro de 2016

 

A «Utopia» de Thomas Morus, traduzida por Aires do Nascimento e prefaciada por José Pina Martins (Fundação C. Gulbenkian, 2006), constitui uma obra referencial do humanismo europeu, cuja primeira edição foi dada à estampa há quinhentos anos.

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UMA OBRA FUNDAMENTAL
Thomas More ou Tomás Morus, na fórmula latinizante, «Visconde e Cidadão de Londres, nobre cidade de Inglaterra», celebrizou-se pela publicação do discurso de um português ignoto, de nome Rafael Hitlodeu, sobre a melhor Constituição de uma República. Esse texto fundamental tem feito correr rios de tinta, sobretudo a partir do seu misterioso título - «Utopia». A etimologia grega remete-nos para uma designação contraditória que significa o que não existe ou não tem lugar… Esse discurso completa este ano exatamente cinco séculos desde que foi publicado e merece ainda uma especial atenção. Morus procurou apresentar uma sociedade que pudesse satisfazer a felicidade humana, no entanto a história da humanidade está cheia de exemplos de tentativas falhadas de realizar na prática esse generoso objetivo – sendo o século XX um momento especialmente dramático relativamente a tais sonhos que depressa se tornaram pesadelos. Também Platão na «República» procurou apresentar uma sociedade modelar e conhecemos muitos outros discursos com idênticos objetivos. O primado da virtude de um Savonarola e ou de um Saint Just deu lugar à tragédia ou ao terror. E as «distopias» de George Orwell («Mil Novecentos e Oitenta e Quatro») e de Aldous Huxley («O Admirável Mundo Novo»), para não falar de «Fahrenheit 451» de Ray Bradbury, deram, na literatura mais divulgada, a expressão do contraponto relativamente ao texto de Tomás Morus. E há pouco, pondo o dedo na ferida, Gonçalo M. Tavares veio dar conta de que a «Utopia» não é uma receita ou um modelo, a impor ou a seguir, mas um desígnio de perfectibilidade que é pedido a seres humanos imperfeitos que todos somos. «Quando o essencial das utopias humanas passa pela tecnologia talvez algo esteja em queda. É uma utopia desanimada, a que quer mudar a paisagem natural ou técnica, e já desistiu de mudar o humano» (Público, 8.1.16). No entanto, Tomás Morus escreveu a sua «Utopia» não para impor um caminho, mas para dizer que vale a pena prosseguir a luta pacífica pela dignidade humana «O que é mais raro e digno de interesse é uma sociedades sã e sabiamente organizada»...


HUMANISTA INFLUENTE
Tomás Morus (1478-1535) foi um dos humanistas mais destacados do Renascimento. Filho do juiz Sir John More e de Agnes Graunger, casou-se com Jane Colt, falecida prematuramente, de quem teve quatro filhos, e em segundas núpcias com Lady Alice Middleton, tendo sido Chanceler do Reino de Inglaterra de 1529 a 1532, no reinado de Henrique VIII. Pelas suas características pessoais, pela qualidade intelectual e pelo empenhamento cívico, impôs-se como exemplo reconhecido pelos seus contemporâneos. Foi advogado, deputado à Câmara dos Comuns, «speaker» da mesma Câmara, Vice-Tesoureiro e Chanceler do Ducado de Lancaster até chegar à primeira linha da governação. Amigo de Erasmo de Roterdão, que lhe dedicou o «Elogio da Loucura», este disse de Morus: «É um homem que vive com esmero a verdadeira piedade, sem a menor ponta de superstição, tem horas fixas em que dirige a Deus as suas orações, não com frases feitas, mas nascidas do mais fundo do seu coração. Quando conversa com os amigos sobre a vida futura, vê-se que fala com sinceridade e com as melhores esperanças. E assim é Morus também na Corte. Isto, para os que pensam que só há cristãos nos mosteiros». O conflito com Henrique VIII deveu-se à querela sobre a anulação do casamento do rei com Catarina de Aragão. Morus discordou da posição do monarca e demitiu-se de Chanceler – negando-se a dar o seu acordo à posição no sentido da cisão religiosa e da criação da Igreja de Inglaterra, liderada pelo próprio rei. Em consequência recusou-se a prestar juramento de fidelidade a Henrique VIII, segundo o Ato de Supremacia – o que determinou a sua prisão na Torre de Londres, com o cardeal e bispo de Rochester, John Fisher, o seu julgamento e consequente condenação à morte, que ocorreu em 6 de julho de 1534. As suas últimas palavras foram: «morro como bom servidor do rei, mas de Deus primeiro». Na história britânica esta execução é considerada das mais graves e injustas aplicadas pelo Estado, pelo facto de atingir um homem prestigiado e de honra.

 

CRÍTICO DO SEU TEMPO
Tomás Morus usou sobre a sociedade do seu tempo, através da descrição de «Utopia», método semelhante ao de Erasmo em «Elogio da Loucura» (de 1509). Tratou-se de «criticar os costumes dos homens sem atacar qualquer pessoa denominada». Mais do que «morder», tratava-se de «ensinar ou aconselhar». Uma sátira atacaria os vícios de todos. Juvenal também preferiu catalogar as coisas ridículas… Erasmo pôs a loucura a falar, de modo a que se percebesse a imperfeição humana – como Morus foi buscar na sua obra referência aos povos com «instituições tão más como as nossas», mas também «um grande número de leis capazes de esclarecer e regenerar cidades, povos e reinos da velha Europa». Eis, pois, a complementaridade e a coerência de atitudes. Curioso e significativo é que a escolha do cicerone, como nenhum outro «capaz de dar tão completos e interessantes pormenores acerca dos homens e das regiões desconhecidas», tenha recaído sobre um português, Rafael Hitlodeu, conhecedor do latim e sabedor do grego na perfeição. Nascido em Portugal, cedo abandonou a fortuna paterna aos irmãos, levado pela «intensa paixão de conhecer mundo». Foi companheiro de Américo Vespúcio e um dos poucos escolhidos para ficar nos confins da Nova Castela, no litoral da América, em contacto com novos povos – tendo ainda desembarcado por milagre em Ceilão (a misteriosa Taprobana), seguindo depois para Calecute, «onde um navio português o reconduziu ao seu país». Reler esse testemunho hoje é compreender que um tal português simbólico reúne diversas qualidades pertinentes e atuais – o desejo de conhecer novos mundos e novas gentes, aliado a uma especial sabedoria, capaz de entender que «o dever mais sagrado do príncipe é pensar na felicidade do povo antes de pensar na própria» ou que «a dignidade real não consiste em reinar sobre mendigos, mas sobre homens livres e felizes». Eis por que razão a descrição de «Utopia» tem menos a ver com um modelo imposto do que com um caminho livremente aceite e comummente construído. «Na Utopia, as leis são em pequeno número e a administração difunde os seus benefícios por todas as classes de cidadãos». Além de que o mérito é compensado e a riqueza repartida igualmente, de modo a que cada um tenha satisfeitas as suas necessidades, gozando os confortos da vida… Não cabe aqui uma descrição da sociedade encontrada por Hitlodeu na ilha com dois mil passos na sua maior largura… Importa, sim, deixar clara a atualidade das considerações deste discurso. Em lugar de um sistema, já que Morus diz não concordar com tudo, «há nos utopianos um conjunto de instituições» que se deseja ver estabelecidas em nossos países. Daí a importância do sentido crítico e da liberdade… E o autor deseja-o, mais do que o espera…

  

Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões - Ensaio Geral, Rádio Renascença

 

 

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

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    Minha Princesa de mim:

 

   Em carta antiga te falei do Orlando Furioso de Ludovico Ariosto, sem sequer me lembrar de que Giacomo Casanova - que se deliciava com os episódios amorosos e eróticos desse romance de cavalaria em poema  - punha tal livro na biblioteca pessoal de Pauline e dele se serviria para ambientar o período mais quente dos seus amores com a nobre portuguesa. Sobre essa obra do poeta quinhentista, remeto-te para a minha-tua carta de 29 de Junho de 2014, a pretexto de ópera de Vivaldi, e regresso aqui aos passos da Histoire de Ma Vie que contemplam o êxtase e o desenlace do romance que te vinha contando nas minhas duas últimas missivas. Continua em crescendo a narrativa de Casanova, depois do ponto em que a deixámos: Assim vivíamos, Pauline e eu, nunca nos separando, e ficando todos os dias mais enamorados, precisamente porque pretendíamos matar o nosso amor à fome. Mas, afinal, talvez fosse o amor a matar-me, porque eu emagrecia a olhos vistos, já não conseguia dormir, e se me acabava o apetite. Pauline, pelo contrário, engordava e ficava cada vez mais bonita. Dizia-lhe que, se o meu sofrimento servia para lhe aumentar os encantos, ela devia impedir a minha morte, porque um morto deixa de sofrer. Ela convenceu-me de que o meu enfezamento vinha, não do meu amor, mas da vida que passava em casa, sem nunca sair. Sugere-lhe ela então que vá dar um passeio a cavalo, e ele lá se decide. À despedida, conta ele, beijo-lhe a mão, pois ainda não tinha passado disso... Acidentalmente, Casanova cai do cavalo, é transportado para casa, o médico diagnostica-lhe uma entorse. Fica de cama. Entretanto, Pauline regressa de uma diligência que fora fazer, fica em alvoroço com a notícia, corre a vê-lo, empalidece, cai-lhe na cama.  - Minha querida amiga, isto não é nada, é só um entorse...  - Deus seja louvado! Senti o meu coração...  -- Sinto-o! Feliz queda!...   ...Colo os meus lábios aos dela, dá-se o duplo beijo, abençoo o entorse. Pauline ri.  -- De que vos rides?  -- Da manha do amor, que sempre manda em nós...   ...Até à minha partida viveremos juntos, como mulher e marido, e faremos a boda esta noite, ceando aqui, na vossa cama, já que o entorse e eu vos proibimos de sair dela. E jura a donzela que não quero sair dos vossos braços, senão quando chegar a carta fatal que me chamará de volta a Lisboa! Há oito dias que o meu coração não cessa de a temer. Não, já não desejo recebê-la. Pom! pom! pom! pom! Chegámos a esse momento que soa como os primeiros acordes da 5ª sinfonia do Beethoven... É o destino a bater à porta... Casanova é inultrapassável em poder de sedução, pelo menos no que toca a cativar o leitor, e a mantê-lo preso ao encantamento em que o seu relato encerra as suas personagens. Vê tu bem, Princesa, como a nobre donzela portuguesa lhe cai nos braços, ela própria Eva impelida, persuadida e persuasora, pelos versos de Ariosto: Como ela me falava em pé, convidei-a a cair-me nos braços, mas, estando aberta a porta, ela não quis e, para me acalmar, foi buscar o Ariosto e quis ler-me a aventura do Ricciardetto com Fiordispina, princesa de Espanha, que faz toda a beleza do vigésimo quinto canto do poema, que eu sabia de cor. Imaginava ser ela a princesa e ser eu Ricciardetto, e comprazia-se imaginando "che il ciel l´abbia concesso / Bradamante cangiata in miglior sesso"... E quando chegou à estrofe que diz "Le belle bracia al collo indi mi getta / e dolcemente stringe, e bacia in bocca: / tu puoi pensar se allora la saetta / dirizza Amor, se in mezzo´l cor mi tocca", quis uma glosa sobre a frase "baciar in bocca", e sobre o amor que nesse momento tornou rija a flecha de Ricciardetto. Fazendo-lhe então o comentário da acção, ela pareceu zangada por eu, de surpresa, a ter feito tocar na flecha; mas teve de rir-se quando chegou a estes dois versos: "Io il veggo, io il sento, e a pena verbo parmi: / sinto in maschio di femmina mutarmi". E a outros dois, da estância seguinte: "Così le dissi, e feci ch´ella stessa / trovò com man la veritade expressa". Admirava-se por Roma não ter proibido este poema, onde havia tantas "porcarias", mas desdisse-se quando a convenci de que as únicas coisas que merecem ser chamadas "porcarias" são as que nos desgostam. Ela achava Ariosto simpático por ter escolhido uma Espanhola, de preferência a mulher de outra nação, para lhe atribuir o gosto barroco que a levara a enamorar-se de Bradamante. Mas pensei que tinha chegado a minha vez, quando ela leu estes três versos: "Io senza scale in su la rocca salto, / e lo stendardo piantovi di botto, / e la nemica mia mi caccio sotto". Saltarei as ardentes narrativas dos momentos de volúpia erótica que se seguiram, e aproximar-me-ei do fim da história de Pauline. Antes, porém, volto ao Orlando Furioso do Ariosto. O episódio que Casanova refere  --  e que ele mesmo foi buscar, pois não creio que a real ou imaginária fidalga portuguesa o tivesse feito, tal como provavelmente não teria sequer o livro na sua biblioteca ambulante, nem eu vejo, Princesa, qualquer professor, mesmo um setecentista italiano, recomendar Ariosto num convento de freiras  --  surge no canto XXV daquele poema quinhentista, e, em português, reza e explica-se como segue. Ricciardetto, irmão da guerreira Bradamante, conta como só era possível distingui-los pelo sexo (ele homem, ela mulher) ou pelo cabelo (curto o dele, de longa trança o dela). Mas eis que, em batalha contra os mouros, Bradamante é ferida na cabeça, e o servo de Jesus que a trata tem de lhe cortar o cabelo. Assim, de guerreiro vestida, mas sem elmo e com cabelo curto, na floresta a descobre Fiordispina, filha de Marsílio, rei de Espanha, que por ali andava à caça. Sigo aqui a tradução do conto de Ricciardetto a Ruggiero que, do Ariosto, fez Margarida Periquito (Orlando Furioso, editora Cavalo de Ferro, Lisboa, Novembro de 2007): Encontrando minha irmã lá deitada, / coberta de armas, o rosto excepção, / que em vez de uma roca usava espada, / pensou de um cavaleiro ter visão. / Pela face e o ar viril tão encantada, / sente conquistado o seu coração; / convida-a para a caça e, sob fresca fronde, / longe dos outros com ela se esconde. / Tendo-a consigo em solitário choco, / onde não teme que alguém apareça, / com actos e palavras, pouco a pouco, / descobre o amor que o coração lhe empeça. / De olhos ardentes e um suspirar louco, / abre-lhe a alma de desejo possessa. / Ora pálida ora ruborizada, / um beijo por fim lhe rouba apressada. / A minha irmã percebera a verdade: / que ela  com outro a tinha confundido; / não podia contentar-lhe a vontade, / e num sarilho se tinha envolvido. "Mais vale (pensava) dar contrariedade / ao criado engano, tão descabido, / mostrando ser feminina e gentil, /  que deixar-me tomar por homem vil... E assim fará Bradamante que, de consciência tranquila, sossegadamente dorme nessa noite em que, deitada mesmo a seu lado, Fiordispina se debate com o desespero do desejo insatisfeito, e geme acordada ou sonha o impossível, como resumem os dois primeiros versos que Casanova cita: crê que o céu a seu desejo deu nexo, / Bradamante mudando em melhor sexo... O que, para efeitos práticos, acabará por acontecer mais tarde, quando Ricciardetto, agora tão parecido com sua irmã Bradamante, de cabelo curto, ao ponto de se confundirem para quem não lhes tocar o sexo, se faz passar por ela. E os versos, que Casanova a seguir recita, vai busca-los à estrofe 54: Ao meu pescoço os seus braços projecta, / a si me aperta e beija-me na boca. / Imagina como de Amor a seta, / com tal, meu coração em cheio toca. / Toma-me a mão, para o quarto me acarreta; / e ela sozinha (mais ninguém convoca) / do elmo às esporas as armas me tira; / não deixa que mais ninguém interfira... 

   Julga Fiordispina que, para a alcova, consigo arrasta Bradamante, pois não conhece Ricciardetto. E até parece que este, afinal, também entra no sonho, no gosto necessário da metamorfose, pois, como acima já lemos na referência de Casanova, ele(a) diz: Eu vejo, eu sinto e custo a acreditar: /  de mulher, para homem estou a mudar... Segue-se o gesto ousado de levar uma mão a sentir a rigidez do membro seta: Assim lhe disse, e fiz de modo que essa / achasse, com a mão, a verdade expressa... Tudo está preparado e pronto para o assalto final de Ricciardetto-Casanova a Fiordispina-Pauline. Acima já dito em três versos, aqui traduzidos em português: Sem escada sobre a fortaleza salto, / planto o estandarte de uma só estocada, / e deixo a inimiga subjugada! Ocorre-me, com algum riso, aquele exemplo de rimas, que nos ensinavam no liceu dos nossos velhos tempos: "Forte, fiel, façanhudo, / fazendo feitos famosos"... Nas memórias que escreve, Casanova é muito prosaico, conta factos e desenha emoções que teve ou que sentiu, designadamente, nas suas parceiras em amores diversos. No caso de Pauline, o sexo surge ambíguo e metafórico, é fatal, não só no sentido em que Georges Bataille definiu o erotismo (l´affirmation de la vie jusque dans la mort), mas sobretudo como vitória e conquista. Creio, Princesa, que o recurso a Ariosto é, subrepticiamente, a procura de uma expressão que lhe autorize a sua própria história: a posse de Pauline ganha contornos épicos, a convenção moral e religiosa, tal como a superioridade aristocrática, são derrotadas pelo ardor da carne e do desejo plebeu. Mas, depois de deixar bem claro que foi ele quem desflorou a nobre menina, Casanova não se torna gabarola, nem entretém descrições de intimidades pícaras, até parece render-se, transforma o vencedor na coisa vencida: Vendo nos meus braços a primeira beleza de Portugal, o único rebento de uma ilustre família, que a mim se entregara e todavia só por muito pouco tempo me pertenceria, contemplava Pauline, apoiado num cotovelo e submerso nessa triste reflexão.  -- Em que pensas, meu querido amigo?  -- Procuro convencer-me de que a minha felicidade não é um sonho. Se é realidade, quero morrer antes de te perder. Sou o afortunado a quem entregaste um bem inestimável, e de que me julgo indigno, apesar de te amar mais do que a mim mesmo. Bem mais do que amante, Pauline é uma aparição, a revelação de um amor até então insuspeito, outra dimensão da mulher, que o cinismo de Casanova, contudo, devia ter percebido em anteriores libertinagens: A minha querida Pauline era uma pensadora tão agarrada à sua religião, que nesta se ocupava muito mais do que eu. Nunca a teria descoberto assim, se não tivesse conseguido deitar-me com ela. Encontrei muitas mulheres feitas desta maneira: para gozar da sua alma é, primeiro, preciso começar por daná-las, e logo se ganha toda a confiança delas, e elas já não têm segredos para o felizardo que conseguiu conquistá-las. Por essa mesma razão, esse encantador sexo gosta do valente e abomina o cobarde, a menos que seja um favorito que as divirta, mas que, no fundo, desprezam, pois se o valente lhe bater elas riem-se. Após essa noite celestial, decidi não mais sair de casa enquanto Pauline permanecesse em Londres. O meu projecto agradou-lhe, e nunca mais me largou, a não ser para ir à missa nos dias santos. Fechei a porta a toda a gente... Curto será, todavia, o idílio: a carta convocatória chegará de Lisboa, com autorização do casamento de Pauline com o conde de AL..., e dinheiro para as despesas de confortável viagem. Perante a insistência de Casanova, conta o próprio, a portuguesa permite-lhe que a acompanhe a Calais, mas, quando ali pernoitam, ela exige que durmam em quartos separados. Se a história for verdadeira, parece que ela terá cedido, lá em Londres, à tentação de satisfazer desejos fisiológicos e de consolação emocional, mas sem perder de vista a independência necessária ao cumprimento do porvir que o seu estatuto reclamaria. Assim foi. E o veneziano levaria algum tempo a carpir tristezas e saudades. Mas, afinal, entre inúmeras paixões e incontáveis devaneios, dois amores menos levianamente o marcaram: A semelhança entre esta separação em Calais, e a que me trespassou a alma em Genebra, quinze anos antes, quando Henriette se foi embora, é impressionante, impressionante a semelhança dos caracteres dessas duas mulheres incomparáveis, uma se diferenciando da outra apenas pela beleza. Talvez fosse preciso isso para que eu ficasse tão perdidamente apaixonado pela segunda como estivera pela primeira. Ambas sábias, ambas dotadas de um espírito profundo, só por força da sua diferente educação era a primeira mais alegre, tinha mais talentos e menos preconceitos. Pauline tinha o nobre orgulho da sua nação, propensa à seriedade, e tinha a religião mais no coração do que no espírito. Para além disso, ultrapassava Henriette na tendência para o prazer de amar, e nos transportes que se seguem. Fui feliz com ambas, porque me encontraram rico, sem isso não teria conhecido nem uma nem outra. Esqueci-as. Mas quando as recordo, acho que foi mais forte a impressão que Henriette me fez, pela simples razão de que a minha alma era mais susceptível aos vinte e dois anos de idade do que aos trinta e sete. Mas, a julgar por outros passos da sua Histoire de Ma Vie, Casanova ainda planeou, mais de uma vez, ir a Portugal. Não o fez, por falta de notícias de Pauline. A ser verdadeira a história, foi ela que o deixou. E ele não soube explicar porque é que dessa vez, um seu amor não foi, simultânea ou sincopadamente, enorme e insignificante, extasiante e brejeiro... E quando, três décadas depois, terá revisto, velho já e em Dux, na Boémia, os seus apontamentos de memórias londrinas, esqueceu-se de conciliar dois passos do seu relato: aquele em que diz que, na noite primeira, com Pauline nos braços, se confundiram os nossos fogos e os seus gemidos me asseguraram de que os seus desejos eram mais vivos dos que os que eu sentia, e maiores as suas necessidades do que as minhas. O dever indispensável de gerir a sua honra me levou a parar um instante e a recolher num lenço as gloriosas marcas da sua virtude, de que eu acabava de triunfar ; e outro, esse em que, após a celestial noite, após o conflito amoroso, ela me pareceu um anjo incarnado: a sua tez, que a abstinência de um ano tinha empalidecido, tornara-se um vermelho de rosas, e o seu rosto ganhara um ar de satisfação e contentamento que os meus olhos não conseguiam deixar de admirar... E assim chego à suspensão final desta história: o Casanova, afinal, triunfou de uma virgindade quase inviolável, ou de uma abstinência necessitada de pronta satisfação? Que teria levado qualquer Pauline portuguesa e nobre a refugiar-se esporadicamente em Londres? Ao fechar o livro, penso que ele traça um retrato privado do século XVIII europeu, desse tempo de luzes, em que o Antigo Regime se fechou nas classes dominantes (clero, nobreza e burguesia), deixando o povo fora do palco da realidade e da ficção. O usufruto das ideias, dos sentimentos, como o gozo dos prazeres e o protagonismo dos conflitos do mundo, eram declaradamente privilégios da nata social. Nem sequer a Revolução Francesa, a encerrar o século, foi uma revolta popular.

                                                                                Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira

 

A FORÇA DO ATO CRIADOR

 

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Nuno Teotónio Pereira e a Igreja do Sagrado Coração de Jesus

 

‘O que me motiva sempre mais é, de fora para dentro, o enquadramento socio-territorial e, no sentido inverso, a imaginada vivência dos utentes, bem como naturalmente, as soluções construtivas a ter em conta.’
Nuno Teotónio Pereira, 2004

 

‘Building traces back into that domain to which everything that is belongs. To build is in itself already to dwell.’
Martin Heidegger In ‘Building, Dwelling, Thinking’

 

A obra de Nuno Teotónio Pereira (1922-2016) apresenta a extraordinária capacidade de transformar sítios e objetos em espaços habitáveis – e segundo Heidegger habitar implica uma durável relação entre o céu, a terra, o divino e o mortal, em que se mantem sempre intacta a essência destes quatro elementos. Os espaços habitáveis criados por Nuno Teotónio Pereira concretizam constantemente conceitos de pertença, identidade, enraizamento local e comunidade. A sua obra eleva a qualidade de vida do homem e transforma a sociedade, através de valores como a autenticidade, a sinceridade e o rigor. É uma obra aberta, infinitamente interpretável, que dá extrema importância ao espaço interior e ao espaço público participado.

Nuno Teotónio Pereira elegeu a problemática social da habitação como temática mais importante (trabalhou de 1948 a 1972 na Federação de Caixas de Previdência), mas também se dedicou exaustivamente ao estudo da cidade e do território.

A luta por uma arquitetura religiosa contemporânea liberta de um vocabulário historicista, fez parte igualmente do seu percurso. A igreja das Águas que Nuno Teotónio Pereira concebe, em 1949, no concelho de Penamacor, constitui o paradigma da renovação da arquitetura religiosa em Portugal, baseado no espírito do evangelho de ‘Pureza, Verdade, Pobreza e Paz’. Com esta igreja, Nuno Teotónio Pereira, responde a uma situação real com o rigor e a seriedade dos princípios modernos, que são postos em prática, mas adaptados e recriados através de uma aturada reflexão acerca de uma contextualização física e cultural. (Tostões, 2004)

Já com o projeto da igreja das Águas, o Bloco das Águas Livres, as Torres dos Olivais e a Casa de Vila Viçosa, o atelier de Nuno Teotónio Pereira envolvia-se numa procura sobre a habitabilidade não-racionalista – tratava-se sim de pensar exaustivamente o espaço interno, motor do projeto, e de procurar uma integração total em contexto natural ou urbano.

‘Em 1957, a entrada do jovem e fogoso Nuno Portas marcou decisivamente novos rumos ao atelier, na continuação embora dos valores que vinham de trás.’
Nuno Teotónio Pereira, 2004

‘Se o que nos interessava eram os espaços ‘internos’ como expressão dos modos de vida e da poética do habitar, recebíamos com ansiedade o crescente interesse das ciências humanas por essas relações que Heidegger, Bachelard ou Levy-Strauss, depois Chombart de Lauvve, Lefebvre ou Barthes explorariam, mostrando-nos os limites do funcionalismo.’
Nuno Portas, 2004

Ao assumir a rutura, com os equipamentos religiosos projectados tanto ao gosto dos arquitectos do regime (S. João de Deus, S. João de Brito, Santo Condestável), a igreja do Sagrado Coração de Jesus (1961-70) inaugura a década de 60, anunciando novas questões e marcando definitivamente uma nova imagem aberta e participada do equipamento religioso em Portugal.

A igreja surge num pequeno lote da Rua Camilo Castelo Branco e completa o quarteirão a partir do retorno a elementos urbanos tradicionais. Uma praça e uma rua surgem associados ao programa do equipamento em continuidade e ligação com os espaços urbanos existentes.

A partir da década de 60 as obras assumem uma nova reflexão sobre a cidade, um reconciliar com a identidade do lugar e com a comunidade. Associa-se o urbano à arquitetura. E a igreja do Sagrado Coração de Jesus, inserida na malha da cidade, é o elemento de dinamização por excelência.

A equipa formada então por Nuno Teotónio Pereira, Nuno Portas, Vasco Lobo, Vítor Figueiredo e Pedro Vieira de Almeida, foi escolhida por entre os 14 trabalhos concorrentes e associa a um equipamento religioso conceitos de abertura, urbanidade, continuidade e integração. Nuno Portas afirma que era a ocasião para contestar uma certa linha de fazer igrejas, mantendo-as como objetos historicistas, isolados, rodeados de vazios que rompem com a continuidade do espaço urbano. E por isso pretende-se estabelecer um lugar ancorado e ancorante. Determina-se um novo conceito de intervenção urbana – o sentido colectivo do espaço urbano, fazendo-o penetrar na escala da arquitectura. Ao dar sentido ao espaço vazio público propõe-se um conjunto formal de relações capazes de criar uma realidade social. É associado ao vazio urbano um valor positivo e generativo. Assim o vazio urbano construído na envolvente da igreja do Sagrado Coração de Jesus é ambíguo, sendo possível receber diversas interpretações – o vazio como uma experiência sensível e essencial que possibilita a criação, a expressão e o ritual.

O projeto inclui não só os espaços de culto, mas também capelas mortuárias, o centro paroquial, a residência do pároco, auditórios, secretaria, cafetaria e ainda áreas para atividades socioculturais. O centro paroquial e a residência do pároco determinam o limite do lote, conformam a praça e definem uma nova rua que atravessa o quarteirão e transpõe cotas. Todos os edifícios do programa refazem aquele bocado de cidade, esbatendo a fronteira entre o público e o privado. A relação do corpo da igreja com os restantes corpos anexos, que fazem parte do complexo paroquial, é conseguida através de diversos níveis articuladas em socalco e por um espaço aberto central.

Ao dilatar a Rua Camilo Castelo Branco é possível ligá-la à rua de trás, de nível diferente através de um percurso urbano. O espaço público entra pelo lote e valoriza-se o urbano em detrimento do objecto arquitectónico autoral – a autoria colectiva reforça o interesse comunitário (e reforça o trabalho sempre de equipa do atelier de Nuno Teotónio Pereira). A rua que atravessa o conjunto permite desenhar espaços de passagem, de distribuição e de permanência. O percurso vai criando diversas plataformas que fazem a igreja participar do espaço urbano e assim abrir a arquitectura à sociedade.

A igreja desenha-se segundo um esquema basilical. Reúne santuário e baptistério e desenvolve-se em três plataformas – piso principal, cripta, galerias e balcões. O espaço interior é percorrível, total, fluído e unitário, pontuado por espaços de escala mais reduzida e mais intimistas. Diversas direcções apontam para o altar-mor de maneira a enfatizar a assembleia.

Para permitir maior fluidez e continuidade espacial, dentro da igreja, foram executados estudos para o movimento do clero, dos fiéis, da bênção do lume e da água, do cortejo da comunhão, funerais, baptizados e casamentos. Para a equipa de Nuno Teotónio Pereira, quanto maior a especificidade do programa mais particular e singular se poderia tornar o objecto construído, que não deve só obedecer a regras de racionalização e de sistemas de estandardização.

Especial atenção foi também dada ao modo como a luz entra, hierarquizando assim os diversos espaços da igreja. O espaço interno traz à memória Frank Lloyd Wright, pela densidade, pelo controlo da luz e pela pormenorização exaustiva. O tratamento material apresenta inspiração no brutalismo inglês e nas mais recentes propostas italianas – betão aparente, painéis e blocos pré-fabricados.

Com o projeto da igreja do Sagrado Coração de Jesus, o atelier de Nuno Teotónio Pereira, passa de uma escala dominada pela habitação e pela igreja em meio rural para uma proposta mais monumental à escala da cidade – e nesta linha de continuidade surgem os projetos para o Edifício de Comércio e Escritórios ‘Franjinhas’ (1965-69) e mais tarde o Plano de Urbanização do Restelo (1980-85).

Ana Ruepp

 

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