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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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A VIDA DOS LIVROS

 

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De 29 de fevereiro a 6 de março de 2016

 

«Crónicas: Imagens Proféticas e Outras», 4º volume, de João Bénard da Costa (Documenta, 2015) é um conjunto mais uma vez notável de crónicas de um dos grandes escritores portugueses do século XX – sobre o tempo que passa, desde a grande paixão do cinema às artes plásticas, passando pelos lugares e pela vida, pelas pessoas e pela amizade.

 

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UM DELEITE PARA O ESPÍRITO

Ler João Bénard da Costa é sempre um deleite. As memórias pessoais ligam-se à sensibilidade artística do maior requinte. Autores clássicos encontram-se com os pequenos segredos dos grandes pintores ou dos músicos e dos cineastas nas obras-primas que nos legaram, mas é sempre a vida que está em causa e as pessoas únicas que encontramos a cada passo, ora no dia-a-dia, ora na tela dos cinemas. O próprio João viveu uma vida mais do que dupla ou multifacetada. No cinema, encontramos a sua própria sombra, quiçá fantasmática, na figura de Duarte de Almeida. E, como diria Umberto Eco, que há pouco nos deixou, o apurado sentido histórico e a paixão pelas letras e pela literatura, pela arte e pelas imagens, pela música e pela natureza em movimento permitem viver como se se tratasse de 5 mil anos. E o certo é que nestes textos sentimos isso mesmo. Deixamo-nos entusiasmar pela fantástica maneira de nos seduzir pela forma de viver e fazer viver. O prazer habitual torna-se talvez hoje ainda mais intenso e inequívoco, uma vez que já não podemos contar com a presença física, sendo obrigados a usufruir com muito maior intensidade o que o escritor nos deixou. E o certo é que este quarto volume nos reserva momentos únicos, que correspondem ao facto de João ter-nos deixado inesperadamente numa circunstância de grande maturidade na escrita e na reflexão. Ao invocar Anna Magnani em «L’Amore» de Rossellini, o autor recorda a parte do filme em que a aparição de Fellini, numa história por este inventada, houve quem quisesse ver uma blasfémia, por haver a misteriosa aparição de alguém que é identificado com S. José e por haver uma criança que nasce em circunstâncias inusitadas… Houve acusações de invocação abusiva da Anunciação, mas Rossellini recordaria, a propósito, o sermão de S. Bernardino, de autoridade indiscutível, sobre o cão Bonino condenado pela aparência de matar uma criança que realmente salvava: «o que importa é a fé dos homens. Nada mais conta. O resto é a superficialidade dos homens». E essa superficialidade também está patente, quando continua ainda a conhecer-se mal e a esquecer-se o primeiro tradutor português das Sagradas Escrituras, João Ferreira Annes de Almeida, não reconhecendo a importância de um trabalho pioneiro como aquele que então fez e que hoje contribui para aperfeiçoarmos o diálogo no seu do cristianismo no sentido de uma melhor compreensão da importância das Escrituras, como lugar de encontro e de diálogo, nesse «estaleiro de símbolos» e «imenso dicionário», para citar Paul Claudel.

 

A FORÇA DO ESPÍRITO E DA AMIZADE

O conjunto das crónicas apresenta-nos um inesgotável manancial de temas e de reflexões. A lembrança da amizade entre Montaigne de La Boétie é um exemplo de uma sensibilidade culta, para quem a citação de Michel de Montaigne sobre a amizade ultrapassa em muito a invocação das palavras do autor da «Apologia de Raimond Sebond». Estamos no centro da dignidade humana e da força das relações interpessoais: «o que normalmente chamamos amigos e amizades não são mais do que hábitos ou conhecimentos provocados por aquesta ou aquela ocasião ou acaso, desses ou dessas que existem para entretenimento das nossas almas. Mas, na amizade de que eu falo, tudo se confunde e mescla numa mistura tão universal que, por completo, apaga a costura que as uniu e da qual não se observa o mais leve rasto. Quando insistem comigo para saber porque é que eu o amava (Montaigne fala de La Boétie), sinto que não o consigo exprimir senão dizendo: Porque era ele; porque era eu». A fórmula, justamente popularizada, põe a tónica na relação de amizade como um desafio pessoal, de dar e de receber – e de singularidade de proximidade. A amizade obriga a essa reciprocidade, a essa confiança, a essa troca, a essa entrega que conduz à feliz síntese que Montaigne nos apresenta, em coerência com as grandes reflexões da humanidade sobre a amizade. O texto que trata deste tema vem ilustrado com um belíssimo rosto da autoria de Roger van der Weyden – e o certo é que a crónica anda à volta do misterioso desaparecimento em Bruxelas de Beata Dubrowska. «Uma rapariga de vinte e poucos anos, se tanto, talvez a mulher mais bela que estes meus olhos viram. Era louríssima, tinha a pele branquíssima e os olhos daquela azul que só o Maître de Moulins ou Rober Campin conseguiram pintar. Uma virgem flamenga como nem mesmo esses a representaram». A crónica relata um encontro, que nada teve de alucinatório porque partilhado por outras pessoas, e um misterioso e incompreensível desaparecimento - «talvez Beata (polaca de nacionalidade) não tenha descido dos céus à terra, na sua mor beleza». Este fugaz encontro e sequente desencontro tem conhecidas referências antigas – Cícero dizia: «o amor é o desejo de alcançar a amizade de quem nos moveu pela beleza»… O espírito obriga a que as relações humanas se componham dessa gratuidade e desse fascínio… O que nos leva ao Espírito, como na belíssima crónica «Noli Me Tangere». Trata-se de um episódio perturbador, relatado por S. João sobre Maria de Magdala: «Jesus disse-lhe: “Mulher, porque choras? Quem procuras?” Julgando que Ele era o Jardineiro, ela respondeu: “Senhor, se foste tu que O levaste, diz-me onde O puseste e eu irei Busca-Lo”. Jesus disse: “Maria.” Ela reconheceu-O e disse-lhe em hebreu: “Rabuni!”, o que quer dizer Mestre. Jesus disse-lhe: “Noli me tangere (não me toques) porque ainda não subi para junto do Pai. Mas vai ter com os Irmãos e diz-lhes que eu subo para o Meu Pai e Vosso Pai, para o Meu Deus e Vosso Deus”». (Jo. VIII.20: 11-17). João Bénard da Costa, com especial agudeza de análise, lembrando que a vibração familiar do Natal foi sempre mais intensa do que na Páscoa, apesar desta representar o momento fundamental do mistério de Cristo, procura dar a chave desta disparidade, a propósito do quadro de Tiziano que representa este episódio: «Se é lícito especular sobre essa representação, o que Tiziano figurou foi um cadáver que ainda não tinha ressuscitado no esplendor da ressurreição da carne e que, por isso, não quis ser tocado na carne ainda submetida ao aguilhão da morte». Este quarto volume reúne crónicas que, para quem as leu em primeira mão, ficaram desde logo marcadas como arrebatadoras. Lembremo-nos de «Morreu-me Teresa Stich-Randall»; «Introito Ad Altare Dei»; «Setembros de Antigamente»; «Arrábida Novamente», «Um dia Claro» e «Em Esperança Salvos Somos». A cada passo encontramos o testemunho de alguém que amava as pessoas e as coisas que tocavam. Ruy Belo diria: «uma casa é a coisa mais séria da vida». Stich-Randall foi a mulher que João mais amou no mundo - «ouvi-a mil vezes e dos anjos quase sempre só a voz foi ouvida». E quanto à liturgia não terá ela introduzido uma certa banalização do sagrado? A invocação dos tempos de férias, torna, por seu lado, a nostalgia algo de reconstituinte da convivialidade. «Agosto e Setembro, na Arrábida (…) eram o que nesta terra mais se aproxima do céu»… «Quem conhece a Arrábida sabe que mais nenhuma se lhe pode assemelhar. Se nela tantas vezes me perdi, sempre foi nela que me achei. Outrora como antes, ou outrora no depois». Carl Th. Dreyer e «Ordet» («A Palavra») é especialmente lembrado pela força sobrenatural de uma obra-prima da arte europeia - «Graças a todos, vivi um dia claro. Agora, mais do que nunca, sei o que isso quer dizer»… Por fim, nesta enumeração aleatória, vem a referência a Bento XVI e à sua encíclica Spe Salvi, que permitiu uma sessão memorável no CNC - «a Esperança permanece a virtude mais misteriosa, aquela que pasma o próprio Deus, com escreveu Charles Péguy»…

 

Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões - Ensaio Geral, Rádio Renascença

 

 

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

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    Minha Princesa de mim:

 

   Anda por aí muita gente em conversa encalorada sobre o "namoro" de João Paulo II com Anna-Teresa Timienieka. A mim que, como sabes, Princesa, sou católico dito "praticante" e fiel, não me incomoda minimamente. Compreendo a história que a correspondência revelada conta, e até a acho bonita. Na minha liberdade de pensarsentir  --  que tanto prezo, e pela qual tantas graças dou a Deus, que com ela nos criou  --  em silêncio medito na força e na fortaleza de um afecto humano, de todos os afectos humanos, desses que Nosso Senhor nos vai deixando ter para sustento nosso. Acho admirável esse passo de uma carta de Karol Wojtyla a Anna-Teresa: Certa vez  --  lembro-me exactamente de quando e onde  --  eu ouvi essas palavras "pertenço-te", e para mim, antes de mais, o presente de uma pessoa ressoava nelas. Eu temia esse presente, mas, desde logo, soube, e hoje sei, mais e melhor, que tinha de aceitar esse presente como um presente do céu. Entendo, Princesa, esta frase muito no fundo de mim. Comove-me. Comove-me, sobretudo, porque sei que já ligamos a ideia do amor ao anseio da posse exclusiva. Cedemos, quase sempre, a uma tentação totalitária, somos propensos ao domínio. Mas o amor, minha Princesa de mim, é o reino da liberdade: nada nele está, ou pode estar, legislado, pré-determinado. Nem o amor é possessível, a fidelidade é uma pertença da alma, não é o cumprimento de um código. O que aqui te digo nada tem de libertino, antes pelo contrário. Eu mesmo me sinto pertencente a muitas outras pessoas, não há relação humana possível sem qualquer entrega, e a verdade de cada entrega é a sua autenticidade em lugar próprio.

   A relação de Anna-Teresa e Karol pertence-lhes e a sua serena intimidade só a dignifica. Pensossinto que a libertação pública da correspondência entre ambos é um acto humilde de generosidade e demonstração de que não há, mesmo santo, quem, entre nós, não seja humano. Louvado seja Deus! Pela imperfeição, carentes, caminhamos. Dá-nos sempre força um amparo, saibamos aceitá-lo e agradecê-lo, não será essa dádiva que necessariamente nos afastará da nossa vocação. Pessoalmente, como sabes, sempre admirei muito a coragem humana de Karol Wojtyla, muitas vezes discordei de posições "doutrinárias" suas, tal como nunca me agradou essa precipitação clerical em canonizar papas e clérigos. Para mim, sempre fez mais sentido a aclamação popular que se revê nesses que crê santos... Seja como for, apontem-se estes ou outros exemplos, por bem tudo melhor se fará, sob a infinita misericórdia de Deus. Talvez, afinal, fosse melhor legiferar menos e escutar mais o Deus que fala no coração dos homens...

 

                                                                                    Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira

 

A FORÇA DO ATO CRIADOR

 

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 O Teatro Azul

 

O Teatro Municipal de Almada / Teatro Azul (1998-2004) foi desenhado por Manuel Graça Dias (1953) e Egas José Vieira (1962), localiza-se no centro da cidade de Almada e adopta uma singularidade invulgar. Almada cresceu muito a partir da década de sessenta, ficando sobretudo marcada pela inauguração da ponte sobre o rio Tejo e pela expansão dos estaleiros navais da Lisnave. Desde então, Almada assistiu a um grande fluxo migratório e a sua mancha urbana alastrou consideravelmente, produto de uma ocupação urgente e maciça.

O Teatro Municipal de Almada está implantado numa nesga de terreno de declive acentuado, no meio de edifícios muito próximos. Manuel Graça Dias e Egas José Vieira (MGD+EJV) resolveram, por isso assumir um diálogo directo com o tecido urbano que envolve o Teatro. O Teatro afirma-se assim como um organismo vivo, encostando-se mais a um lado do lote (ao lado mais denso), enquadrando perspectivas, recuperando percursos e deixando para a cota mais baixa a grande e alta caixa de palco. O grande volume da entrada principal abre-se para a Rua Prof. Egas Moniz e fecha o topo do lote, seguindo os alinhamentos da rua.

A sua integração na cidade é excepcional pela convergência que propõe e pela uniformidade azul. Ao criar identidade, densidade urbana desenha-se resistente à desordem que o rodeia.                        

A riqueza formal do Teatro caracteriza-se pelas ruas, praças, becos, esquinas, dobras, gavetos e arcadas que são gerados ao poisar no meio de uma circunstância já tão cheia e diversa. MGD+EJV colmatam um buraco da cidade através de uma solução de continuidade, de encontro, de ritmo e de movimento que cose a cidade e que estabelece uma série de relações múltiplas.

Da afirmação como volume de cada espaço do complexo programa resulta a unidade azul que deu nome ao edifício, depressa transformado num objeto de referência. O mosaico cerâmico vitrificado azul reveste todos os volumes separados do conjunto que passam a formar, com a mesma importância um organismo com uma só cor, brilho e textura.

Manuel Graça Dias e Egas José Vieira formam desde 1985 o atelier ‘Contemporânea’. Em cinco palavras-chave descreve-se assim o processo de trabalho da dupla MGD+EJV: leitura, memória, capacidade inventiva, síntese e resposta.

Leitura: Para MGD+EJV as ideias não se formulam num espaço imaterial mas sim a partir de um lugar real (feio ou bonito, denso ou disperso) dentro de um processo que tem passado (memória e história), presente (condicionamentos) e futuro (na determinação de um novo contexto e de uma nova ordem).

Memória: MGD+EJV utilizam a memória como sendo um dispositivo intuitivo e imaginativo do processo de construção da cidade. MGD+EJV abandonam o plano moral e metafísico e a indeterminação e o azar definem o curso dos projectos, originando uma exploração expressiva de elementos formais e construtivos. É dada enorme importância à diferença e ao particular em detrimento das generalizações, porque a acção do tempo presente é já por si de perpétua transformação.

Capacidade inventiva: MGD+EJV manifestam um interesse pela construção espontânea e não erudita mas também pelo vernáculo associado a um interesse pelo modernismo, pela inspiração surrealista e pela metáfora. Olham o existente, a banalidade como um potencial. MGD+EJV consideram a cidade diversa e para eles não existe uma arquitectura igual.

Síntese: MGD+EJV introduzem a arquitectura como uma nova ordem que valoriza o ritmo, a mudança e o artifício. Enfatizam a natureza excepcional do programa, potenciando o seu valor simbólico, estimulando novas relações com o contexto urbano.

Resultado: MGD+EJV apresentam no conjunto da sua obra, que se inicia com o bloco do Edifício ‘Golfinho’ (1987-90) no nordeste transmontano, uma primeira fase até ao Pavilhão de Portugal em Sevilha (1989-92) – que é uma imagem de impacto, forma, força e propaganda (nele se convocavam fragmentos da História de Portugal e da sua herança marítima). A crença de que arquitectura é oportunidade de recuperação e de emenda corresponde a uma segunda fase no trabalho de MGD+EJV. Pretende-se a partir daqui superar os condicionamentos através de opções formais exuberantes e criar assim como que uma vanguarda popular.

Sendo assim o Teatro Azul é um objecto de referência porque para Manuel Graça Dias e Egas José Vieira a arquitectura constrói-se numa cidade concreta e dentro do banal, dando vida ao existente amorfo e monótono. Só então se consegue criar o excepcional e a complexidade na adaptação às necessidades, à memória e à história.

 

Ana Ruepp

 

 

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

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   Minha Princesa de mim:

 

   Escrevo-te de Portugal, no momento em que o papa Francisco visita a Senhora de Guadalupe, no México. Uma década antes de Dom Pedro de Alcântara ter lançado, diz-se, o grito do Ipiranga, esse Liberdade ou Morte! que o tornaria no primeiro soberano do Brasil independente, já em 16 de Setembro de 1810 o padre Miguel Hidalgo, um dos fundadores da independência mexicana, lançara a insurreição gritando Viva la Virgen de Guadalupe!, invocando como Mãe e Protectora de todos os mexicanos a Senhora que, a 9 de Dezembro de 1531, aparecera a um pobre pastor índio, convertido ao cristianismo, e a cujo apelido indígena, que era Cuauhtlatoatzin, se antepusera o nome de Juan Diego, quando fora baptizado. S. Juan Diego foi canonizado por João Paulo II em 2002. A Virgem, Nossa Senhora de Guadalupe, recuperou e integrou as virtudes e o culto de uma divindade azteca antiga, Tonanzin, deusa da fertilidade, já venerada, em tempos pré-colombianos, no mesmo monte Tepeyac em que, por quatro vezes, a Mãe de Jesus viria a manifestar-se a Juan Diego. É curioso observar que Tonanzin quer dizer nossa mãezinha (nuestra madrecita, dizem eles, em castelhano). Hoje ainda podemos ler, à entrada da basílica de Guadalupe, uma inscrição das palavras que a Senhora, cujo manto abriga e reúne todos os mexicanos  --  índios, crioulos e mestiços  --  teria dito ao santo pastor, índio convertido: No estoy yo aqui, que soy tu Madre?.

   Assim, a Virgem de Guadalupe é símbolo da unidade de um povo multirracial, do acolhimento igual de todos pela universalidade da Igreja católica, quase um elogio da mestiçagem, este tanto mais eloquente quanto foi longa e dura a luta, na América espanhola (e não só), dos missionários contra governantes e colonos, pelo respeito da dignidade humana e do valor divino das populações autóctones. Lembra-te, Princesa de mim, do que, no rasto de sermões do padre António Vieira, noutras cartas te contei sobre o assunto. É ainda, mais do que uma devoção ou um recurso, uma força dinamizadora dos movimentos pela justiça. Até o Emiliano Zapata, na sublevação que conduziu, em princípios do século XX, erguia uma bandeira com as cores mexicanas e a efígie da Virgem de Guadalupe. E todos os levantamentos populares, a própria resistência às ditaduras ou às perseguições de cristãos, invocaram a Senhora Mãe e pediram a sua protecção e coragem. Eu diria que a Virgem de Guadalupe a todos lembra a oração do Magnificat : A minha alma glorifica o Senhor e o meu espírito se alegra em Deus meu Salvador. Porque pôs os olhos na sua humilde serva, doravante todas as gerações me chamarão bem-aventurada. O Todo-poderoso fez em mim maravilhas, Santo é o seu nome. A sua misericórdia estende-se de geração em geração sobre aqueles que o temem. Manifestou o poder do seu braço e dispersou os soberbos. Derrubou os poderosos dos seus tronos e exaltou os humildes. Aos famintos encheu de bens e despediu os ricos de mãos vazias... [Lucas, I, 46-53] 

   A história, lendária ou não, de Juan Diego é bonita. Tinha ele por hábito subir e descer pelo cerro onde hoje se ergue a Capilla del Cerrito, a caminho do mercado, quando, nesse tal dia 9 de Dezembro de 1531, lhe apareceu Nossa Senhora, pedindo-lhe, em língua azteca (o nahuatl) que diligenciasse para que ali fosse construído um templo onde os índios pudessem invoca-la, lamentarem as suas desgraças e aliviarem as suas aflições... Logo o pastor se torna mensageiro junto do bispo, o franciscano frei Juan de Zumárraga, que não o leva a sério nem acredita no que diz. Mas a Virgem, no dia seguinte, ouve-o contar-lhe a desfaçatez do prelado e manda-o insistir. Assim será, mas o bispo diz-lhe que peça à Senhora uma prova do que afirma. Dois dias depois, em vez de passar pela colina, Juan Diego contorna-a, para ir chamar um padre que acuda ao seu tio moribundo. Mas a Senhora sua Mãe não o larga: tal como Jesus quando cura a filha do centurião, ela diz-lhe que seu tio está curado, e manda-o, em pleno Inverno, ir colher rosas no alto do cerro. O certo é que as flores estão mesmo lá, cobrindo, radiantes, o cume frio. Colhe-as, envolve-as no seu manto e leva-as ao bispo. Quando, na presença deste, desdobra o manto e o abre, qual Santa Isabel de Portugal, logo surgem, não só as inesperadas rosas, mas ainda a imagem da Virgem, impressa no tecido...

   A autenticidade dos factos, a própria existência histórica de Juan Diego, a autorização do culto popular ou o seu banimento por idolatria  --  tudo isso foi, e tem sido, causa de polémicas. Desde logo, ao cepticismo inicial do bispo franciscano que, mesmo assim, ainda guardou o manto com a santa imagem na sua capela privativa, seguiu-se o entusiasmo devoto do seu sucessor, novo bispo do México, frei Alonso de Montúfar, dominicano. Bem tentaram os guardiões do santuário que depois se edificou, frades franciscanos, ser sobretudo contra; os seus rivais dominicanos foram a favor, até que um bispo dominicano retirou aos frades menores a custódia da relíquia e seu templo, confiando-a ao clero secular da diocese. Também se referiu o facto de que, aquando da conquista do império azteca por Fernando Cortez, os espanhóis terem destruído o altar da deusa Tonanzin, erguido no mesmo cerro de Tepeyac, para ali levantarem uma capela cujo oráculo seria Nossa Senhora de Guadalupe, na Estremadura castelhana, donde era originário o próprio Cortez, apontando-se assim para diferente origem da devoção mexicana. E muito mais se duvidou e disse, e o seu contrário. Parece-me claro, minha Princesa de mim, que só a imagem milagrosa de uma Virgem Maria / Tonanzin, mestiça vestida de cores aztecas, assustaria muita, boa ou má, gente. Mesmo entre os líderes independentistas sul-americanos, no século XIX, o próprio Simão Bolívar, maçon, não apreciou a motivação religiosa de muitos insurrectos, marchando sob o estandarte de Guadalupe. Mas nada conseguiu impedir que a devoção à Virgem assim invocada se estendesse a toda a América dita latina, de quem se tornou Padroeira. Tal como, até  aos dias de hoje, se foi mantendo e alimentando a curiosidade, dúvida e espanto, dos cientistas, que não encontram explicação plausível para a inalterabilidade do tecido em que se imprimiu a imagem de Santa Maria, nem da frescura das suas cores, aliás dadas por desconhecidos pigmentos. Apesar de, nos seus mais de quinhentos anos, a relíquia só recentemente ter sido objecto de protecção especial, além de ter já sofrido atentados. E não esqueças que a túnica ou manto de Juan Diego é feita de uma espécie de sisal, fibra da ageva indígena, planta decorativa que só floresce uma vez, no ano da sua morte, e de cuja seiva se faz essa bebida alcoólica chamada pulque. Tudo indígena, e popular. O santuário e o culto de Nossa Senhora de Guadalupe, hoje o mais concorrido destino de peregrinações católicas, em todo o mundo, com uma média anual de mais de vinte milhões de devotos, é assim um feito raro, caso para cantar: o povo é quem mais ordena...

   O papa que agora o visita é o primeiro bispo de Roma oriundo da América latina, um filho de emigrantes italianos que não hesita em lembrar à Igreja universal, à consciência cristã ou simplesmente humana, a urgência de um exame a um passado de exclusões e explorações de homens pelos homens. Não sentes aí, Princesa, um anúncio profético? Num mundo onde é impossível ignorar injustiças e desigualdades gritantes, intoleráveis padecimentos de povos inteiros, afrontamentos e atentados premonitórios de um obsceno inferno de raivas e ressentimentos, a América latina é um espelho e um aviso: conheceu, ao longo da história, ainda hoje experimenta, toda a espécie de lutas e sevícias, de ditaduras e revoluções, de desrespeito da dignidade humana, pela servidão, pela tortura, pela droga e outras mil maneiras... mas é o continente da miscigenação, da música espontânea, dessa misteriosa forma da esperança que é a resignação que brinca e desafia... Talvez o segredo da paz esteja num olhar da alma que em ninguém vê um estranho, antes um igual cuja diferença me enriquece.

                            Camilo Maria

  

Camilo Martins de Oliveira

 

A LÍNGUA PORTUGUESA NO MUNDO

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III - O DIREITO À PRÓPRIA LÍNGUA, À LÍNGUA APROPRIADA E A UMA LÍNGUA GLOBAL DE COMUNICAÇÃO INTERNACIONAL

 

1. Da inevitabilidade humana e fundamental da língua e do direito à língua, decorre o direito à própria língua, à língua apropriada e a uma língua global de comunicação internacional.

Tradicionalmente, o direito à língua esgotava-se no direito à própria língua, à língua identitária. Sobre a excelência e primazia identitária da língua portuguesa, fez Pessoa uma eloquente proclamação: “A minha Pátria é a língua portuguesa”. Sobre a sua relevância para a preservação da nossa identidade, fez Torga uma significativa declaração: “Lutei, luto e lutarei até ao derradeiro alento pela preservação dessa identidade, última razão de ser de qualquer indivíduo ou coletividade”. Vergílio Ferreira, por sua vez, escreveu: “Uma língua é o lugar donde se vê o mundo, e em que se tratam os limites do nosso pensar e sentir. Da minha língua vê-se o mar”. No dizer de José Mattoso, “(…) não existe nenhuma realidade étnica ou de âmbito da cultura popular com uma expressão propriamente nacional (isto é, que se verifique em todo o território português) senão a identidade da língua. Todos os outros são de âmbito regional”. Atualmente, com a evolução acelerada das modernas tecnologias de comunicação e informação, com a mundialização computorizada dos fluxos feitos de várias línguas, com a aceleração dos movimentos linguísticos e da interação de sistemas linguísticos e não linguísticos, com o intercâmbio de bens, capitais, serviços, ideias, pessoas, viagens, com a criação de espaços supranacionais onde a globalização assenta na cibernética, eletrónica, internet e telemática, o direito à língua, mais do que o direito dos falantes à sua própria língua, é também um direito à língua apropriada. Se inexequível o exercício do idioma próprio do falante, como materno, nacional, regional ou em geral menos usado, tem ele direito a uma língua sucedânea que, pelo menos, deve respeitar a igualdade de tratamento entre as línguas dos interlocutores respeitando, tanto quanto possível, a identidade e a matriz do idioma de cada um.

No caso do português, há um direito à própria língua na titularidade de cada um dos falantes dos países e povos lusófonos, direito extensivo a todos os falantes da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa e núcleo duro do mundo lusófono, como idioma comum e partilhado, sem exclusividades e em igualdade de circunstâncias. Assim como há o direito à apropriação da língua quando lusófonos se expressam noutro idioma que não o próprio se, de todo em todo e consoante o contexto, os interlocutores não falam português, bem como em instituições ou organizações internacionais em que a sua língua não é oficial ou de trabalho.

Todavia, ultrapassada a esfera estadual rumo a uma perspetiva global, além de se constatar a insuficiência da língua identitária da maioria dos falantes, verifica-se, na atualidade, que o inglês é a língua global de comunicação internacional por excelência e, ao mesmo tempo, uma língua apropriada. Tendo o inglês o estatuto atual de língua internacional predominante, isso não significa que seja sempre suficiente, dado que se responde melhor a algumas necessidades presentes, o mesmo não sucede em relação a outras, em particular no que se refere à nossa necessidade identitária.

Para o libanês Amin Maalouf, entre a língua identitária e a global há um espaço imenso que é necessário preencher, dada a sua insuficiência, dado que contentarmo-nos, em matéria de línguas, ao estritamente imprescindível, é contrário ao espírito do nosso tempo. Tendo a identitária como a primeira língua e a global como a terceira (hoje o inglês), opina pela necessidade de promover obrigatoriamente uma segunda língua, uma língua livremente escolhida, amada, adotiva, desposada, do coração.

Haveria “(…), ao lado dos “generalistas”, que conheceriam apenas a sua língua e o inglês, “especialistas” que possuiriam, além desta bagagem mínima, a sua língua privilegiada de comunicação, livremente escolhida de acordo com as suas próprias afinidades, e através da qual realizariam o seu desenvolvimento pessoal e profissional. Será sempre uma desvantagem séria não conhecer o inglês, mas será também, e cada vez mais, uma séria desvantagem conhecer apenas o inglês”. (“As Identidades Assassinas”, Difel, 2.ª edição, p. 156). Preservar a própria língua (identitária), generalizar sem complexos o ensino do inglês e encorajar a diversidade linguística, eis a sua proposta, cujas situações também englobam um direito à língua apropriada, mesmo que livremente escolhida, sem prejuízo do direito (efetivo ou potencial) a uma língua global de comunicação internacional.

 

2. A Declaração Universal da UNESCO Sobre a Diversidade Cultural, de 2001, ao proclamar a diversidade cultural como património comum da humanidade (artigo 1.º) e que os direitos culturais são parte integrante dos humanos, sendo estes universais, indissociáveis e interdependentes (art.º 5.º) pretende, não só, preservar a identidade e os direitos dos países de acolhimento, como a sua harmonização com outras identidades alheias. A Declaração Universal dos Direitos Linguísticos de Barcelona, de 1996, visa sobretudo acautelar os direitos das comunidades e grupos migrantes, tendo não só o direito mas ainda o dever de se integrarem, sendo recomendável que os que chegam sejam assimilados, desde que, mantendo os seus valores, essa assimilação não seja coagida (cf., artigos 3.º e 4.º). Também o art.º 27.º, do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, estabelece que as minorias linguísticas em certo Estado não podem ser privadas do uso da sua própria língua. Na mesma esteira do art.º 14.º, n.º 2, alínea f), segundo o qual todo o acusado tem de ser assistido gratuitamente por um intérprete, se não compreender o idioma usado em tribunal.

O que vem corroborar a necessidade de uma língua identitária, de pertença, de um direito à própria língua, bem como de que podem falar-se, em simultâneo, várias línguas, desde a nativa, de acolhimento, nacional, regional, de um direito à língua apropriada, que pode coincidir, ou não, com o direito ao uso de uma língua global de comunicação internacional com incidência planetária, ultrapassando largamente as fronteiras do idioma e potenciando confluências de interesses, em redor das quais se fixam espaços de interesse geolinguístico, cimentadores de zonas estratégicas de influência geopolítica.

Abrangendo a língua portuguesa oito países em quatro continentes, é não só uma língua de comunicação internacional, mas também, por força da sua distribuição geográfica, uma língua transnacional, transcontinental, transoceânica e transcultural. Uma das línguas da globalização, uma língua global em crescimento demográfico e falada por países de potencial económico reconhecido, ainda que por desenvolver ou em desenvolvimento, cada vez mais com potencialidades de ser uma língua global de comunicação internacional, quando significativa e expressivamente usada por falantes de outros idiomas. O que implica uma política de língua no essencial não confidencial, para não falantes de português como língua nativa, que vá além do seu espaço geolinguístico, preferencialmente aceite pelo bloco lusófono. O que é valorizado pelo art.º 7.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa, ao prescrever que “Portugal mantém laços privilegiados de amizade e cooperação com os países de língua portuguesa”, em conjugação com o art.º 9.º, alínea f), ao consagrar ser tarefa fundamental do Estado “Assegurar o ensino e a valorização permanente, defender o uso e promover a difusão internacional da língua portuguesa”.

Uma língua global de comunicação internacional (e o seu direito), tem de deixar de ter tutelas de pertença exclusivas, sendo esse o preço a pagar pela sua permanência no longo prazo, ainda que com diferentes categorias de uso, como língua materna, identitária, segunda, estrangeira, em comunhão e simultaneidade de esforços com o direito à própria língua e à língua apropriada.

 

23 de Fevereiro de 2016
Joaquim Miguel De Morgado Patrício

 

Mario Benedetti

 

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Mario Orlando Hamlet Hardy Brenno Benedetti, escritor, ensaísta e poeta uruguaio, tem os seus livros traduzidos em mais de 20 línguas e é considerado um autor de primeiro plano da literatura latino-americana contemporânea. Faleceu aos 88 anos, no dia 17 de Maio de 2009 em Montevideu, depois de um intenso sofrimento pela morte de sua mulher por quem tanto se apaixonara, por quem sempre viveu e escreveu, por quem sempre sentiu a exclusividade da vida fazer sentido. Luz López ,sua mulher faleceu em 2006 vítima de Alzheimer e Mario sentiu-se ir morrendo com ela e escreve o que para ele significava a vida inigualável de ambos, já que até para ambos a intimidade era muito e apenas o sonharem e o lutarem juntos, e este apenas, tinha o tudo numa táctica e numa estratégia de alcançarem o entender dos sentires que nutriam um pelo outro.

 

Táctica y Estrategia

Mi táctica es mirarte 
aprender como sos 
quererte como sos 

Mi táctica es hablarte 
y escucharte 
construir con palabras 
un puente indestructible 

Mi táctica es quedarme 
en tu recuerdo 
no sé cómo ni sé 
con qué pretexto 
pero quedarme en vos 

Mi táctica es ser franco 
y saber que sos franca 
y que no nos vendamos 
simulacros 
para que entre los dos 
no haya telón ni abismos 

Mi estrategia es 
en cambio 
más profunda y más 
simple 

Mi estrategia es 
que un día cualquiera 
no sé cómo ni sé 
con qué pretexto 
por fin me necesites.

 

De Mario Benedetti li apenas os contos “ Despistes y franquezas” de 1989 e de 2003 “El porvenir de mi passado”, dos quais muito gostei, bem como os ensaios “La realidad y la Palabra” e um outro ensaio muito particular de análise sofrida e perplexa sobre a realidade, chamado “El ejercicio del critério” (1995).

É de Mario Benedetti a frase “yo no sé si Dios existe, sé que no le va a molestar mi duda”(…) e acrescenta “Eu não sei se sou uma pessoa triste com vocação pra ser alegre, ou vice e versa, ou do avesso. O que sei é que, sim, há sempre alguma tristeza nos meus momentos mais felizes, da mesma forma que há sempre um pouco de alegria nos meus piores dias.”

Muitíssimo galardoado não obstante ter sempre atravessado períodos financeiros muito difíceis, e defendendo sempre que os fracos realmente nunca se rendem, Mario viu na escrita a sua forma de expressar a vida, até nos Haikais a que se dedicou, tal como Borges. Creio que no trabalho dos Haikai, Mario Benedetti inclinou-se a um modelo mais livre embora não largasse a métrica tinham os seus haikais muito de um carácter existencialista inclinado a um modelo mais livre quanto ao tema.


cada crepúsculo
es tan solo um ensayo
del sueño eterno


el caracol
es el especialista
de la paciência


los personajes
se evaden de mis libros
y me interrogan

la más cercana
de todas las fronteras
es con mi prójimo

 

Honoris causa pelas universidades de Alicante e Valladolid; Prêmio Rainha Sofia de Poesia (1999); Prêmio Ibero-Americano José Martí; e o 19º Prêmio Internacional Menéndez Pelayo, enfim, constitui para mim uma honra aqui recordar Mario Benedetti.

 

Teresa Bracinha Vieira
2016

 

ATORES, ENCENADORES - LXIV

 

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EVOCAÇÃO DE FERNANDO AMADO
NOS 70 ANOS DA CASA DA COMÉDIA

No dia em que redijo este texto, e noutra nota para publicação na rubrica “Teatros” do Centro Nacional de Cultura, tive ensejo de evocar a estreia do grupo e do movimento criado em 1946 por Fernando Amado com a designação genérica de Casa da Comédia. Na data, não era um teatro, como posteriormente veio a ocorrer: tratava-se de um movimento, de uma iniciativa cultural, que teve o seu primeiro espetáculo no Teatro do Ginásio, nesse ano de 1946, com a estreia da peça “A Caixa de Pandora”, da autoria do próprio Fernando Amado, e figurinos do pintor António Dacosta.

Não é a primeira peça de Fernando Amado. Em 1916, com 17 anos de idade, terá escrito para a cena um texto que desapareceu, intitulado “O Homem Metal”, de expressa influência futurista, recebida através de Almada Negreiros e, em termos gerais, do Orpheu, de acordo com esclarecimentos posteriores do autor.

Entre 1922 e 1925 escreveu “O Pescador”, espécie de “Fausto” português, que normalmente é referido como a sua primeira peça conhecida e divulgada: “obra ambiciosa, de fáustica inspiração, em que procura sintetizar desencontradas solicitações culturais através de um «leit-motif», o da vocação ecuménica e marítima de Portugal”, escreveu David-Mourão Ferreira. (in “Dicionário do Teatro Português” - Prelo ed. - pág. 44).

Por minha parte, assinalei um certo peso simbolista desta peça, que reflete também as opções ideológicas e de certo modo o pensamento politico que sempre assumiu, num plano de profundo e sentido de amor a Portugal: o que é totalmente coerente com a ação cívica e política do autor.

Em 1923 escreveu “A Primeira Noite”, peça que esteve perdida e foi ignorada durante dezenas de anos. Deixaremos para outro artigo a analise desse texto, que só muito mais recentemente foi descoberto e publicado. .

Mas ao longo de dezenas de anos, seguiram-se largas dezenas de títulos, que cobrem uma expressão dramatúrgica variada, desde peças de nítido modernismo, por exemplo a citada ” Caixa de Pandora” que iremos desenvolver abaixo, até textos para crianças (“Os Segredos de Polichinelo”) ou para a então relevante Campanha Nacional de Educação de Adultos (por exemplo “O Livro” -1953).

E também evocamos o que o próprio autor denominava “debucho teatral” – cenas rápidas e teatralmente sintéticas, mas contendo profunda reflexão da problemática da humanidade. E ainda textos mais ligados a uma certa temática existencial, como “O Meu Amigo Barroso”, comédia de substituição de identidades, ou, “O Iconoclasta”, esta de clara influencia pirandelliana, ou ainda, “D. Quixote e o Outro”, “A Mascara” ou “Caiu um Anjo”…

Ou recuando no tempo, a experiência de “teatro total” que constituiu, em 1940, “Casamento das Musas” escrito para o Teatro Estúdio do Salitre e representado com o “Antes de Começar” de Almada Negreiros.

Fernando Amado foi um homem de teatro na sua globalidade. Professor de Arte de Representar e Encenação e de Estética Teatral no Conservatório, as suas aulas constituíam verdadeiras lições globais de teoria e prática teatral. Nelas, assumia a prática do teatro, interpretando papeis e dirigindo espetáculos. Apresentava-se como ator-encenador, em exercícios públicos na Escola.

Tive o gosto e o proveito de assistir, como aluno-ouvinte como então se dizia, a numerosas aulas de uma e outra cadeira: de manhã estava na Faculdade de Direito, à tarde, no Conservatório. Disso darei conta em artigo posterior.

E tive assim ocasião de muito aprender, inclusive vendo Fernando Amado-ator – pois não hesitava em interpretar ele próprio personagens de peças representadas pelos alunos. E não eram peças simples. Na dramaturgia portuguesa, percorria-se, ao longo dos 3 anos que durava o curso, desde Gil Vicente a Almada. E no teatro de outras literaturas, recordo exercícios a partir de autores como designadamente Thorton Wilder (“A Longa Ceia de Natal”), Lorca (“Amores de Don Perlimpin com Beliza no seu Jardim”), Eugene ONeill (“Longa Viagem para a Noite”) e alguns clássicos.

Outro estilo dramatúrgico cultivado por Fernando Amado como autor era o que o próprio classificava como “debucho teatral”, assim mesmo - cenas breves em um ato, rápidas e brilhantes, mas densa na mensagem transmitida: “Música na Igreja”, “O Ladrão”, “Novo Mundo”, “Vésperas de Combate” ou particularmente “Sua Excelência já não Atende Mais” – e realço particularmente esta peça, porque contem, num ato breve, toda a abordagem ética e social que o politico-doutrinador Fernando Amado conduziu ao longo de uma longa vida publica: cena de dois camponeses que descem às antecâmaras do poder para implorar justiça e são escorraçados porque nesse dia “Sua Excelência já não atende mais”…

Deve também assinalar-se uma influência da lição de Pirandello subjacente ou mais ou menos assumida em peças de maior fôlego. Cito designadamente “O Meu Amigo Barroso”, que vi numa encenação do próprio Fernando Amado – e disso falaremos a seguir – ou “O Iconoclasta ou o Pretendente Imaginário”.

E cito ainda outras linhas de criação, mais simples talvez, como o teatro infantil, documentado por exemplo em “O Segredo de Polichinelo”, ou das peças encomendadas pela então relevante Campanha Nacional de Educação de Adultos, de que recordamos acima “O Livro” mas que podemos acrescentar “O Aldrabão”, esta, exemplar no encadeado dos diálogos. Foi publicada pela CNEA com uma lindíssima ilustração de Almada Negreiros.

Mas voltemos à “Caixa de Pandora”, porque nesta peça, Fernando Amado faz uma síntese do teatro. E faz essa síntese a partir da vasta experiência de encenador, e até de ator das suas próprias peças nos espetáculos que dirigiu e tantas vezes interpretou – no Conservatório, no Teatro Ginásio, na Casa da Comédia, na Faculdade de Letras e no nosso Centro Nacional de Cultura, de que foi um dos granes animadores.

E “A Caixa de Pandora” traduz essa experiencia pessoal de direção e interpretação: Fernando Amado autor foi também Fernando Amado ator e encenador. A peça passa-se, diz a nota de cena, “num pequeno palco armado ao fundo, unicamente para servir a representação” palco esse que apenas “faz pensar no verdadeiro teatro”.

E aí, um grupo de personagens imortais enfrentam-se e enfrentam o espetador: Clitmnestra, Gata Borralheira, Mofina Mendes, Desdémona, Arlequim, Tamerlão, Shelley, enfrentam o publico materializado num personagem tímido e bonacheirão de “meia idade, cara rapada, vestido de cinzento, nem magro nem gordo”. Enfrentam o autor, poeta em crise de consciência. Enfrentam um empresário grosseiro e venal. E enfrentam um crítico caricato, intelectualidade balofa e convencida, ausente da humildade que o critico deve possuir… e que tantas e tantas vezes não possui!

De tudo isto dei conta num estudo intitulado “Fernando Amado Homem de Teatro” (ed. Cadernos Gil Vicente 192). De tudo isto e de muito mais. E ao longo dos anos, foram descobertas e publicadas mais peças de Fernando Amado e a memória critica deste tão importante homem de teatro global – autor, ator, encenador.

Disso daremos novamente conta em artigo posterior.


Duarte Ivo Cruz

 

LONDON LETTERS

 

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Mr Cameron went to Brussels, 2016

 

"Events dear boy, events" to quote RH Harold Macmillan. É oficial e muito, muito, muito sério. HM Government recomenda voto para a conservação do United Kingdom na European Union e o Prime Minister marca o referendo para o dia 23rd June 2016. Uma data

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histórica? A crer na rebelião que soa no reino, talvez a day with a destiny.Chérie. Ce n’est pas à un vieux singe qu’on apprend à faire des grimaces! Dias também da perda de dois grandes da literatura universal. Mrs Harper Lee parte aos 89 anos e Signori Umberto Eco viaja aos 84. Se a discreta autora de To Kill a Mockingbird lega Mr Atticus Finch, herói da general law—which bears the name of Justice, ao efusivo novelista de Il nome della rosa cabe a reinvenção de dedutivo Mr Homes na pele do medievo franciscano Friar William of Baskerville. — Hmm! It takes great skill to hide the fact that you have great skill. Tributos soam ainda na morte do Captain Eric "Winkle" Brown, aos 97 anos, herói da RAF, veterano da II WWar e o mais condecorado piloto na história militar britânica. Na campanha presidencial norteamericana, Mrs Hillary Clinton e Mr Donald J Trump consolidam posições contra ventos e black ads. Já a terceira derrota eleitoral dita o abandono de Jeb B e a queda da House of Bush nos cículos de Washington. Os National Archives revelam os ficheiros secretos do poll tax e das violentas manifestações de 1990, confirmando o desfavor de Lady Thatcher aos avisos que ecoam no Tory Cabinet.

Untitled 3.jpgCold but mainly dry and bright days em London. Ambiente eletrizante na House of Commons. O PM David Cameron apresenta aos MPs “the United Kingdom's special status in a reformed European Union”, após vários pesos pesados do Conservative Party como RHs Boris Johnson, Michael Gove ou Ian Duncan Smith declararem apoio à Brexit e até RH Nicolas Sturgeon agitar a bandeira em eventual nova consulta sobre a independência de Scotland. Eis o resultado de nove meses de negociações em Brussels e 27 chancelarias continentais. Após the diplomatic frenzy do Prime Minister, o caso tem foro legal de treaty change (a depositar na UN), assenta em quatro pilares (governança económica, competitividade, soberania e benefícios sociais) e alicerça-se na tese do best of two worlds: “We will be in the parts of Europe that work for us, influencing the decisions that affect us, in the driving seat of the world’s biggest single market, and with the ability to take action to keep our people safe; but we will be out of the parts of Untitled 4.jpg Europe that do not work for us.” Ora, uma só linha descreve a tempestade perfeita que se avoluma nos céus de Westminster: E tudo Boris agitou.

Vamos por etapas, todavia, sob a perspetiva de Whitelhall. Sir Cameron acorda com os europarceiros a minor deal que muda algo para tudo ficar na mesma. O Labour Leader classifica-o na House como “theatrical sideshow” e o triunfo em Brussels é domesticamente disputado. Primeiro na honourable Press, com manchetes como a do Dail Mail: “Call that a deal, Dave?” Depois no seio do próprio governo e das hostes conservadoras. A insurreição já soma seis senior ministers escoltados de alas crescentes de juniors & staffers, e Downing Street teme a deserção de centena e meia de Conservative’s Members of Parliament. A clivagem rompe também as oposições, mas esta é uma batalha há décadas agendada pela Tory soul… sob liderança do Mayor of London.

Com equal brains nos dois lados desta new war of roses, agora começa parte difícil. Convencer o povo britânico da bondade ou da iniquidade do «estatuto especial» obtido pelo Premier à 25.ª hora sob a usual (and boring) coreografia gastronómica de Brussels. Ora, uma fria análise dá esquálido resumo: trivial changes within minor issues. Donde: The battle in Europe is over. Sorry, PM, the independence war starts. After all, what has the EU ever done for us? A envolvente pesa. Os mercados intervêm com a maior queda da pound vs dolar desde 2009. E as grandes companhias da City mostram hoje the red card em carta aberta nas páginas do Times. Ao fim do dia, contudo, a questão é apenas uma: "Who Governs Britain?" Acresce que as implicações de a eventual UK withdrawal from the European Union são incomensuráveis nas balanças global e regional dos poderes. No mais: Time for birdwatching. Ou: Only 121 days to go…

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Porque sobram elementos shakespearianos no Brexit drama, na EU Non-reform play e na Battle between two Etonians, com many plots & court intrigue à vista, destaque para a Hogarth Shakespeare Series no 400th Anniversary. Nela se reinventam os temas do bardo nos nossos dias. A estante apresenta quatro títulos: Hag-Seed, onde Margaret Atwood reescreve The Tempest; Vinegar Girl, com Anne Tyler recriando The Taming of the Shrew; The Gap of Time, com Jeanette Winterson refazendo The Winter’s Tale; e, agora, Shylock Is My Name, de Howard Jacobson em volta de “The Merchant of Venice.” Para quem desgoste da ousadia há sempre Good Old Master Will.— Well! Think about his words in the dilematic Prince Hamlet: To be, or not to be? That is the question— / Whether ’tis nobler in the mind to suffer / The slings and arrows of outrageous fortune, / Or to take arms against a sea of troubles, / And, by opposing, end them? To die, to sleep— / No more—and by a sleep to say we end / The heartache and the thousand natural shocks / That flesh is heir to—’tis a consummation / Devoutly to be wished! To die, to sleep.

 

St James, 23rd February
Very sincerely yours,
V.

A VIDA DOS LIVROS

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De 22 a 28 de fevereiro de 2016

 

Pierre Emmanuel (1916-1984), cujo centenário do nascimento assinalámos no CNC foi um dos grandes poetas franceses do século XX e um grande amigo de Portugal, tendo o seu apoio à Democracia entre nós sido de extrema relevância.

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UM APOIO MILITANTE
Celebrar a poesia é sempre cuidar de algo muito especial para a vida humana, sobretudo quando se trata de alguém que fez das palavras e da ação um todo coerente em nome da liberdade. Roselyne Chenu, a amabilíssima colaboradora de Pierre Emmanuel, esteve em Portugal, para celebrar o centenário desse poeta maior da língua francesa, hoje injustamente esquecido, sobre quem António Alçada Baptista disse que foi o mais persistente e fiel dos intelectuais estrangeiros apoiantes da democracia portuguesa, quando ela não existia e os apoios escasseavam. No Centro Nacional de Cultura, numa sala cheia de «antigos combatentes», Roselyne lembrou, em duas intervenções, o cidadão, o poeta e o militante sempre disponível para apoiar, em nome do espírito europeu, o lançamento das bases da liberdade em Portugal. «Liberdade da Cultura – Preparar o 25 de Abril» (Gradiva, 2015) serviu de pretexto. Com genuíno entusiasmo, foi como se regressássemos a esse tempo de esperança já distante, de 1965. Sentindo a saudade dos que entretanto nos foram deixando (o último dos quais foi Nuno Teotónio Pereira, aqui lembrado na última crónica), todos pudemos compreender que essa memória tem de estar presente e ser recordada. João Salgueiro falou mesmo da necessidade de um novo virar de página, como então foi feito. E lembrou como a formação matemática do poeta Pierre Emmanuel foi um bom ponto de partida, para aliar o rigor e a vontade, o delineamento do futuro e a audácia do presente.

 

UMA RESISTÊNCIA SERENA E FIRME
Roselyne recordou as vicissitudes policiais desse tempo – de quantos vigiavam os passos daquele grupo que apenas desejava viver em liberdade. Apesar de tudo, não se queixa de ter tido problemas diretos. Sentia-os, rondavam-na por perto, mas julga que a tomaram por inofensiva por ter no seu passaporte a profissão de professora… Porém, foi surpreendente para ela, que vivia num país livre, ouvir António Alçada dizer, em Paris, a Emmanuel, em setembro de 1964, num restaurante em Saint Sulpice, que nunca experimentara a sensação de poder viver a dizer o que bem lhe aprouvesse, numa sociedade pluralista, sem estar constrangido pelo facto de as paredes terem ouvidos. E quantos outros sinais perturbadores puderam ser recordados: a informação policial de um funcionário da Embaixada de Espanha para o Ministro da Informação, Fraga Iribarne, a dizer que o CNC não era de confiança e sofria de esquerdismo, por acolher Dionísio Ridruejo e organizar conferências de José Luís L. Aranguren e de Jesus Aguirre, este então clérigo da paróquia universitária da Universidade Complutense de Madrid («un cura rojo»), o mesmo que viria a casar-se anos mais tarde com a Duquesa de Alba. Também a correspondência tinha vigilância apertada. As cartas vindas de Paris não chegavam aos seus destinatários, razão que levou, quando deram por isso, à utilização de um portador qualificado, Nuno Bragança, então a trabalhar na representação portuguesa na OCDE, para que não houvesse mais dissabores. Em conversa amena na Embaixada de França, graças à hospitalidade e ao apoio do Embaixador Jean-François Blarel, vem à baila o episódio da proibição de Jean-Marie Domenach realizar uma conferência organizada pela Comissão Portuguesa da Associação para a Liberdade da Cultura, em Lisboa. Apesar de haver aparente luz verde de alguém muito bem colocado na máquina do regime, a polícia política revelou-se intransigente e por isso o diretor de «Esprit» ficou detido num hotel, o tempo suficiente, para regressar a França no primeiro voo da manhã seguinte… Razão da intransigência? Os textos de Domenach a favor da autodeterminação em África e talvez ainda a publicação na revista «Esprit» de um texto crítico de José Cardoso Pires…

 

UMA COINCIDÊNCIA FELIZ
Roselyne Chenu continua entusiasta e ostenta com orgulho na lapela a insígnia da Ordem da Liberdade com que foi agraciada por Jorge Sampaio, por sugestão de João Bénard da Costa. E não deixa de exultar pelo facto de beneficiar de uma bela coincidência nesta sua estada lisboeta, de poder ver e ouvir no Teatro de S. Carlos «Dialogues des Carmélites» de Francis Poulenc, com encenação de Luís Miguel Cintra, bolseiro da Comissão Portuguesa do Congresso para a Liberdade da Cultura, em 1968 para ir a Avinhão, a um dos festivais mais célebres do teatro europeu. É uma ligação extraordinária que tem muito a ver com a sensibilidade e a espiritualidade de Pierre Emmanuel. Georges Bernanos escreveu este texto poucos dias antes de morrer – e os temas do medo e da morte estão bem presentes, em especial no drama sentido pela irmã Blanche… O espetáculo levado à cena revela uma grande coragem de interrogar os limites, de articular o que une as protagonistas da obra e de obrigar a refletir a Europa sobre a defesa de valores comuns, ainda que o seu núcleo seja mínimo. Como em Paul Claudel, ou entre nós em Sophia de Mello Breyner, encontramos em Pierre Emmanuel uma poética de diálogo assente na espiritualidade entre as pessoas e o mundo, entre nós e os outros (a outra metade de nós mesmos), entre o tempo e a vida. Sophia traduziu para «O Tempo e o Modo» o Canto LXVI de Pierre Emmanuel: «O silêncio está em flor / como uma macieira branca sob a lua // Oh lua / quando entre as árvores sobes / tão puro se desenha cada ramo / a eternidade é de repente tão aguda / que choramos de abandono gritamos / de alegria / enquanto a alma evaporada morre / no perfume lunar da noite branca» (Sophia). O tema é significativo e tem muito ver com o caráter persistente e generoso do poeta francês de «La Liberté Guide nos Pas»… Graças à amizade com António Alçada Baptista, e à ação de João Bénard da Costa, Pierre Emmanuel pôde dizer algum tempo depois do início das atividades da Comissão Portuguesa para as Relações Culturais Europeias: «Há seis meses que existe em Portugal um comité análogo ao espanhol, mas muito mais entusiasta e sequioso de atividades concretas. Esse comité é constituído por escritores e universitários preocupados com a redescoberta do seu país, ou seja, com a desmitificação das teses oficiais». Que melhor elogio? Sobre Pierre Emmanuel, poderemos, assim, dizer algo muito semelhante ao que disse Albert Béguin (sucessor de Mounier à frente de «Esprit»), um amigo de longa data do poeta agora lembrado, sobre Georges Bernanos, cuja espiritualidade muito se aproxima da do nosso poeta: «o homem que todas as manhãs, ao longo de uma vida dolorosa, se comprometeu com o caminho, com a certeza no fundo do seu coração de chegar no dia certo às portas do Reino de Deus».


Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões - Ensaio Geral, Rádio Renascença

 

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

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        Minha Princesa de mim:

 

   Uma jovem amiga minha, intelectualmente animada, questionava-me há dias sobre as ideias que me vêm ao pensamento, quando escrevo. Deve achar-me saltitante, pensei, um louco saído dum filme do Groucho Marx & Irmãos, ainda que com menos graça e riso... Por outro lado, tinha acabado de publicar o meu Fomos em Busca do Japão  -  que, em boa verdade, não é um livro sistemático, metódico, mas simplesmente uma manta de retalhos, registos de um olhar vagabundo... Não obedece a qualquer esquema, nem orientação com propósito à vista, tem como única disciplina tentar que esse olhar que vagueia não deixe de ser atento, sobretudo ao que não vê logo, imediatamente. E é essa atenção curiosa o fio que cose e reúne numa peça todos os retalhos. Peça que, todavia, pela sua própria natureza, é sempre imperfeita, fica inacabada, mas pode sempre ser acrescentada. Repara bem, Princesa de mim, eu não digo "nunca ou jamais é, ou pode ser, perfeita", antes escrevo que "é sempre imperfeita... e pode sempre ser acrescentada". As nossas obras, como a nossa vida, surgem-me como resposta a contínua vocação, à conversão para melhor. Aos conservadores empedernidos  -  tantas vezes receosos, tanto que se vitimizam, a eles mesmos e ao mundo - costumo dizer que a fidelidade aos princípios que são, basicamente, para os católicos, por exemplo, as virtudes teologais (fé, esperança e caridade) só pode medir-se pelos obstáculos que formos, sempre fiéis à nossa vocação, ultrapassando no tempo e no modo. Já Antoine de Saint-Exupéry disse, lapidarmente, que o homem se reconhece quando se mede com o obstáculo. O problema de todos os fundamentalismos - e não só do islâmico, ainda que, hoje em dia, neste se sinta, dramaticamente, o seu paroxismo - não é o respeito dos princípios ou fundamentos, é o de não perceberem que os alicerces servem para por cima se construírem os edifícios, tanto melhor quanto mais adaptados forem às suas circunstâncias. Este meu gosto pelo sempre inacabado - pela imperfeição como necessidade? - vem da minha adolescência, como reacção à minha ansiedade, então inculcada, de conhecer tudo, e tudo arrumar na cabeça, pretensão de tudo explicar, pois que tudo seria explicável. O padre Domingos, rigoroso e justo, que foi meu professor (excelente) de português e matemática no 1º ciclo do liceu, no Colégio de Clenardo, em Lisboa, ensinava-nos também que "o acaso não existe, tudo se explica pelos desígnios e a providência de Deus". Acreditei que assim fosse. E pensava que para todas as coisas havia uma verdade única, revelada, deduzida, induzida -- que tinha o dever e o poder de encontrar ou descobrir. Hoje, pensossinto que, havendo verdade ontológica, não nos é dado conhecê-la já, mas apenas esperá-la, tudo é movimento e vário, a própria nossa condição humana nos "condena" à indefinida busca... Só o amor é perfeito, por resistir e ser fiel até e depois da morte, como por ser o motor de tudo, desde a criação por Deus até à procura do conhecimento pelos homens. A verdade não se fixa cá em baixo, o conhecimento é, como a ascese mística, uma encosta que se sobe. Sábio é quem ama a imperfeição, porque assim é impelido a conhecê-la, ajudá-la, melhorá-la. Já muitas vezes te repeti que a fé é a substância das coisas que devemos esperar, e o amor a vocação de Deus... A muitos será difícil entender assim a parábola dos talentos, em que Jesus ensina que se dará, em recompensa, o dobro a quem acrescentou, e ao que guardou o que lhe foi dado até esse pouco lhe será tirado.

   Àquela minha amiga, disse: «quiçá melhor respondendo à sua pergunta, as ideias que me vêm ao pensamento não são procuradas, surgem tranquilamente na minha conversa interior. Sem dar nem fazer por isso, vou recordando e associando, vou-me perguntando e debatendo, não me concentro em mim, mas atento na minha circunstância e em mim nela, em movimento perpétuo. Sem pretensiosismo, recordo o Vitorino Nemésio (lembra-se dele?) no "Se bem me lembro...", na RTP. Começava e ia por ali fora, sem censura alguma, nem especial cuidado. Tudo se encadeava, verdadeira e inconscientemente. Talvez só pelo gosto de conversar consigo mesmo e de partilhar com os outros, quer as banalidades, quer as surpresas dessa conversa. V. fez-me uma pergunta, até me pôs a pensar, mas não lhe sei responder, falta-me disciplina discursiva, só sei andar à solta. Quando escrevo, passeio, mais por dentro que por fora. Talvez converse intimamente com quem, já depois, me quiser ler, e que não sei quem é. Como gosto das pessoas, não por esforço próprio, antes porque Deus assim me terá inclinado, talvez o Quem seja toda a gente, como Deus no livro que Ricardo Reis achou no barco (lembra-se de O Ano da Morte de Ricardo Reis, do Saramago?). Seja quem for, não lhe explico nem ensino nada. Respiro, escuto e confesso. E esta conversa ainda vai dar outro texto.»

   Cá está ele, Princesa, ou mais do mesmo. E, para não me repetir, acabo a citar uma frase da minha amiga, que diz bem a natureza do desafio da fidelidade sem pretensão: aprendi que quando se tem o coração aberto só acontecem coisas positivas e alegres. A fé na Boa Nova é a alegria na esperança.

                                                           Camilo Maria  

 

 

Camilo Martins de Oliveira

 

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