ATORES, ENCENADORES - LXI
Correia Garção e o espetáculo teatral no século XVIII
Retomo e desenvolvo aqui um tema de que em parte já me ocupei, mas de cuja importância histórica e a própria cronologia justificam nova análise.
Outra vez então - e não será a última, pois o teatro português não é assim tão rico - evocamos a Arcádia Lusitana ou OIisiponense, fundada há exatos 260 anos (1756) com o apoio decisivo do Marquês de Pombal, que chegou a assistir a duas sessões públicas num programa ambicioso de recuperação e renovação (modernização, na época) do teatro-texto e do teatro-espetáculo. Não foi feliz essa programação, mas há que reconhecer o empenhamento dos seus principais mentores, mais na teoria do que propriamente na criação dramatúrgica em si mesma.
Independentemente da qualidade e do mérito maior ou menor de cada um dos árcades, tenha-se presente a perspetiva teórica e doutrinária da Arcádia Lusitana, mesmo no que respeita ao teatro: “tentativa de reposição dos princípios fundamentais porque se regia a tragédia aristotélica”, como afirma José Oliveira Barata (in “História do Teatro Português” ed. Universidade Aberta – 1991 - pág. 242). Assim é: mas, tal como noutro lado escrevi, “o teatro da Arcádia não resistiu ao tempo. Os Árcades parecem com efeito muito mais empenhados na exemplificação de teorias do que na criação de verdadeiras peças de teatro”… (in “História do Teatro Português" ed. Verbo – 2001 - pág. 105)
Salienta-se a vida trágica e a obra teatral menor mas interessante de Pedro António Correia Garção (1724-1772), fundador da Arcádia com o nome literário de Coryndon Erimantheo, como era norma. Há qualquer coisa de oculto na vida deste árcade: alto funcionário, protegido pelo próprio Marquês, a certa altura cai em desgraça, por razões que se desconhecem, com “filhos rotos”, segundo diz o próprio. E pior: em 9 de Abril de 1771 o Marquês manda-o prender, por razões desconhecidas. Morreu na enfermaria da prisão do Limoeiro em 10 de Novembro de 1772.
Se aqui o evocamos novamente, é porque uma das suas peças, “Teatro Novo” assim chamada, estreada no Teatro do Bairro Alto em 22 de janeiro de 1766, portanto há exatos 250 anos, descreve o meio teatral da época. Deve dizer-se que a receção do público foi tão violenta que o espetáculo não chegou ao fim: e no entanto, lida hoje, a peça apresenta razões de interesse histórico e dramatúrgico. Merece, num e noutro plano, esta evocação.
Trata-se da preparação de um espetáculo de teatro como forma de alcançar o apoio necessário para ultrapassar os problemas financeiros que atingem a família de Aprigio Fafe, o qual procura casar uma das filhas, Aldonsa e Branca, com o amigo Artur Bigodes “mineiro e compadre de Aprígio” , diz o elenco de personagens – e como bem se entende, o“mineiro” enriqueceu em Minas Gerais…Os restantes personagens completam o espetáculo: Jofre Gravino “musico e Mestre de Aldonsa”, o ator Inigo, o licenciado Braz, o arquiteto Monsieur Arnaldo, assim mesmo, e o poeta Gil Leone.
A intensão é pois interesseira: Aprígio, arruinado, quer casar o compadre Artur com uma das filhas e a família, incluindo as próprias, alinha por completo no plano.
“(Aprígio) - Ajustei uma nova companhia/ De cómicos e músicos chapados/ (…)Para a despesa do teatro novo/O dinheiro me empresta meu compadre/ O grande Artur Bigodes que na frota/ Veio há pouco do Rio e vem potente: / Traz infinito dinheiro, papagaios,/ Araras e bugios: traz mil cousas”.
E o certo é que o Compadre Artur aprova.
“(Artur) – Mas deixando preâmbulos, aprovo/ A ideia do teatro: é bom projeto./ O ponto só consiste em desbancarmos/ O da rua dos Condes e Bairro Alto”.
E até considera muito positiva a ideia de gastar dinheiro com o espetáculo:
(Artur) – “Que para vir gasta-lo com serpentes/ Não o ganhei, passando tantos dias/ Por duros morros, por inculcas fragas,/ Talvez comendo carne de macacos.”
E para isso, o Aprígio faz-se rodear de profissionais:
“(Aprígio) – Aqui trago, compadre, estes senhores,/Ambos um non plus ultra do teatro./ São músicos, atores, dançarinos/ Grandes poetas, tudo ao mesmo tempo. (…) O senhor Jofre, quando as áreas canta/ As almas arrepia, cala os ventos./ Pois o mancebo cá, o meu Inigo/ Este vivo bemol, este magano,/ Nos lances amoroso é um pasmo!”.
Teófilo Braga elogia a peça, e valoriza a modernidade epocal de Garção: “ele compreendera lucidamente o problema entre a corrente das comédias castelhanas de Calderon, Mureto, Candamo e Salazar e das óperas do Judeu” (in Escola de Gil Vicente e o Desenvolvimento do Teatro Nacional” - 1898 – págs. 477).
Ora bem: para além da qualidade literária do texto, esta peça documenta, de forma irónica mas cenicamente eficaz, um espetáculo teatral (de amadores) no seculo XVIII. Mas tenha-se presente o número e o prestígio de atores que vinham desta época e marcaram o fulgor que o teatro-espetáculo alcançaria a partir sobretudo da transição do seculo. E aqui, remetemos para a apreciação irónica de William Beckford que, no seu Diário, no final de 1787, arrasa quase por completo os espetáculos a que assistiu nos Teatro do Salitre e da Rua dos Condes, este citado pelo próprio Compadre Artur, como já vimos acima.
Enfim: tenho presente a análise de António José Saraiva sobre o que identifica como “a doutrina árcade do teatro: um teatro pedagógico; um teatro português; um teatro literário, isto é, um teatro que tenha por alma a invenção literária e não a imaginação auditiva ou visual” (in ”Obras Completas de Correia Garção – vol. II – Porosa e Teatro”, ed. Clássicos Sá da Costa – 1958 – pág. LI). Mas talvez por isso, a pateada na estreia do “Teatro Novo”, que, diz Lucciana Stegagno Picchio, “chegava e sobejava para justificar os assobios e os protestos”! (in “História do Teatro Português” Portugália ed. – 1964 – pág.213).
Penso que todas estas são boas razões para retomar o tema. Quanto a atores, cito nomes dominantes: Cecília Rosa de Aguiar, Joana Inácia da Piedade, António José de Penha, Francisca Eugénia, João Inácio Henriques, Vitorino José Leite, Pedro António Pereira…
DUARTE IVO CRUZ