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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

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   Minha Princesa de mim:

 

   Têm-me feito companhia os sermões do padre António Vieira. Consola-me  --  nesta angústia quotidiana com que nos apertam as notícias incessantes de tanta pobreza, de multidões de pessoas humanas que a fome e as guerras arrancam às sua pátrias para as atirarem à embirração de gente "civilizada" que, infelizmente, vezes demais preferiria esquecê-las, enterrá-las ou afogá-las na indiferença, ou, simplesmente, expulsá-las  --  consola-me, sim, a esperança feita da memória de que sempre houve quem olhasse para e pelos desvalidos, por entender que é o próprio Deus quem sofre na miséria dos homens. E que, se a nossa salvação vem por essa incarnação, todos nós somos responsáveis por anunciá-la, efectivamente, através de actos de atendimento e libertação, a boa nova aos pobres. Nem pode ser livre quem esquece, ignora, cala e nada faz para libertar os que a desgraça oprime.

   No Sermão Décimo Quarto da série Maria, Rosa Mística, pregado na Baía, à Irmandade dos Pretos de um Engenho, no ano de 1633, vinte e dois anos antes do Sermão do Bom Ladrão, o missionário jesuíta, a dado passo, afirma que Ao Ladrão deu Cristo menos do que lhe pediu...  ... porque o Ladrão pediu-lhe a memória, e (Cristo) deu-lhe o Reino... Afinal, Vieira pretende mostrar àqueles escravos africanos no Brasil o valor divino das suas pessoas, pese a humilhação da sua condição:

   David (aquele santo rei, que também teve netos na Etiópia, filhos de seu filho Salomão e da rainha Sabá), entre os salmos que compôs, foram três particulares, aos quais deu por título: Pro torcularibus, que em frase do Brasil quer dizer para os engenhos. Este nome torcularia, universalmente tomado, significa todos aqueles lugares e instrumentos em que se espreme e tira o sumo dos frutos, como em Europa o vinho e o azeite, que lá se chamam lagares; e porque estes em que no Brasil se faz o mesmo às canas doces e se espreme, coze e endurece o sumo delas, têm maior e mais engenhosa fábrica, se chamam vulgarmente engenhos. Se perguntarmos pois: -- qual foi o fim e intento de David em compor e intitular aqueles salmos nomeadamente para estas oficinas?  -- respondem os doutores hebreus que o intento que teve o santo rei, e fez se praticasse em todo o povo de Israel, foi que os trabalhadores das mesmas oficinas juntassem o trabalho com a oração, e em lugar de outros cantares com que se costumam aliviar, cantassem hinos e salmos... Se pensarmos, Princesa, no exílio e escravidão do povo judeu em Babilónia, por exemplo, talvez alcancemos o fundamento da esperança na fé, a razão íntima do louvor a Deus, mesmo no desassossego e no desamparo. Quando António Vieira procura convencer escravos negros a rezar, na humilhação da sua labuta forçada, ele não lhes diz, nem quer dizer "aguentem-se, depois da morte há para vós um reino!", antes lhes repete que a fé é a substância das coisas que devem ser esperadas, porque, se a Ressurreição de Cristo venceu a morte, vencidas também são as razões da servidão... O que lhes propõe  --  verás pelos trechos que adiante transcrevo  --  é a consciência da sua identificação com Cristo, e dos trabalhos no engenho com a divina Paixão. Por outro lado, não esqueças que as audiências do pregador não eram compostas apenas pelos escravos africanos  --  a maioria dos quais, aliás, dificilmente entenderia a língua portuguesa, sobretudo uma tão trabalhada como a de Vieira  --  mas integravam os senhores brancos, colonos fazendeiros, militares e oficiais da administração, cuja atenção para a enormidade da exploração de seres humanos identificados com Cristo os sermões reclamavam...

   A dado passo, o pregador afirma que torcular [assim se diz lagar em latim] se chama o vosso engenho ou a vossa cruz, e a de Cristo por boca do mesmo Cristo se chamou também torcular: torcular calcavi solus [pisei sozinho o lagar]Em todas as invenções e instrumentos de trabalho parece que não achou o Senhor outro que mais parecido fosse com o seu, que o vosso. Repara, Princesa, que a citação latina é tirada de Isaías (43 - 3), é um versículo inserto num texto zangado, revolucionário, exaltado. Clama o profeta: No lagar pisei solitário, da gente do meu povo ninguém estava comigo. Então esmaguei-os na minha cólera, pisei-os no meu furor e o sangue deles molhou-me as vestes, e manchei tudo o que vestia. Porque tenho no coração um dia de vingança, eis que é chegado o ano da minha retribuição. Olho: ninguém me ajuda! Manifesto a minha angústia: ninguém me apoia! Então o meu braço veio em meu socorro, a minha fúria sustentou-me. Esmaguei os povos com a minha cólera, quebrei-os com o meu furor, e derramei o seu sangue pelo chão.

   António Vieira exprime assim a intenção do seu discurso: A propriedade e energia desta comparação é porque no instrumento da cruz e na oficina de toda a paixão, assim como nas outras em que se espreme o sumo dos frutos, assim foi espremido todo o sangue da humanidade sagrada...  ...E se então se queixava o Senhor de padecer só... ...e de não haver nenhum dos Gentios que o acompanhasse em suas penas... ...vede vós quanto estimará agora que os que ontem foram gentios, conformando-se com a vontade de Deus na sua sorte, lhe façam por imitação tão boa companhia!

   É conhecida a acção e a oratória do jesuíta na protecção dos indefesos, na defesa dos explorados. Com a mesma convicção e força da alma com que, por exemplo, um punhado de frades dominicanos denunciaram a perversão anticristã com que, na ilha de Hispaniola (actualmente Haiti e República Dominicana) os espanhóis tratavam os ameríndios, tal como nos conta frei Bartolomeu de las Casas, outro paladino da exigência de justiça cristã para com as populações indígenas, na sua Historia de las Indias. Lembro-te um trecho do célebre sermão de frei António de Montesinos, proferido precisamente na cidade de Santo Domingo, a 21 de Dezembro de 1511, frontalmente dirigido aos governantes e colonos espanhóis: Esta voz declara que todos estais em pecado mortal e nele viveis e morrereis, pela crueldade e tirania que usais com estas inocentes gentes. Dizei: com que direito e com que justiça tendes estes índios em tão cruel e horrível servidão? Com que autoridade fizestes tão detestáveis guerras a estas gentes que estavam nas suas terras , mansas e pacíficas, onde consumistes um número infindável delas com mortes e estragos nunca ouvidos? Como é que os tendes tão oprimidos e esgotados, sem lhes dar de comer nem curar as suas doenças, que pelos excessivos trabalhos a que os sujeitais vos morrem, melhor será dizer que os matais, para arrancarem e conseguirem ouro todos os dias. E que cuidado tendes em que sejam doutrinados e conheçam o seu Deus e criador, sejam baptizados, oiçam missa, guardem as festas e domingos? Estes não são homens? Não têm almas racionais? Não sois obrigados a amá-los como a vós mesmos? Não entendeis isto? Não sentis isto? Como estais adormecidos num sono tão profundo e letárgico? Tende como certo que no estado em que vos encontrais não vos podeis salvar mais que os mouros ou os turcos, que não têm e não querem a fé de Jesus Cristo. Vem este sermão narrado na referida Historia de las Indias, onde frei Bartolomeu de las Casas relata este e muitos outros episódios da luta dos missionários pelo respeito da dignidade humana. Aliás, Princesa, conta ainda como, neste caso, os colonos enviaram a El-Rei cartas acusatórias dos frades dominicanos. E conclui: Estas cartas, chegadas à corte, deixaram toda a gente alvoroçada; escreve o rei mandando chamar o provincial de Castela [padre superior dos dominicanos castelhanos], que era o prelado dos que aqui [em Hispaniola] estavam, porque ainda não havia aqui província autónoma, queixando-se dos seus frades que tinha enviado para cá, que o tinham desfavorecido muito, pregando coisas contra o seu estado, com alvoroço e escândalo de toda a grande terra; que remediasse isso rapidamente senão seria ele que o mandaria remediar. Vedes aqui quão fáceis são os reis de enganar e quão infelizes se tornam os reinos por informação dos maus e como se oprime em terras onde não ressoe nem respire a verdade.

   Assim, Princesa de mim, um século e meio antes do Sermão do Bom Ladrão (1655), de que te falava na carta anterior a esta,
o tal em que o padre António Vieira começava por dizer Este sermão, que hoje se prega na Misericórdia de Lisboa, e não se prega na Capela Real, parecia-me a mim que lá se havia de pregar e não aqui, já também um dominicano espanhol fazia observar quão fáceis são os reis de enganar e quão infelizes se tornam os reinos por informação dos maus... Será que, nos nossos dias, também já não falamos nem escutamos, não respiramos a verdade em tempo oportuno e no devido sítio?

                                     Camilo Maria


Camilo Martins de Oliveira