Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

A FORÇA DO ATO CRIADOR

 

casajuventudebeja.jpg

 

A Casa da Cultura da Juventude de Beja
de Raul Hestnes Ferreira

 

Em 1975, Raul Hestnes Ferreira (1931) iniciou o projeto da Casa da Cultura da Juventude em Beja (1975-1985).

Hestnes Ferreira ao desenhar a casa da juventude num importante espaço urbano pretende ligar o centro da cidade, de textura contínua, a um arrabalde de vivendas. Evoca a variedade da cidade e transforma um objecto de programa singular em símbolo – pela situação na cidade, por fazer paisagem, por revelar novas virtualidades com a implantação de massas, direções, ritmos e perenidade. A centralidade e a importância do edifício ao ser visível de todos os lados fez com que fosse concebido como se de um quarteirão único se tratasse – e a simetria ordena o conjunto.

O programa é único e foi elaborado logo após o 25 de Abril de 1974. Hestnes Ferreira pensou a obra de modo a ser capaz de se identificar com uma comunidade e de ser interpretável – já não se afirma uma obra só pela razão, as especificações locais e a história são elementos indispensáveis de projeto. A obra relaciona-se com a noção de monumento, com a tentativa de construir a duração eterna através de uma forma elementar e estável. Para ser reconhecível, à casa da juventude foram associadas, características de grandeza e valor de excecionalidade com dimensão, distinção, proporção, expressão e ordem.

O tratamento do conjunto é feito por volumes organizados – é evidente o diálogo de formas complementares (da curva e da recta) que dinamiza toda a obra. Cada espaço interno é individual. As fenestrações, de caixilharias azuis e amarelas, são todas diferentes evidenciando a singularidade de cada espaço. As fachadas, brancas e lisas, variam pelas suas extensões em forma de pátio, de anfiteatro, de pórtico, de terraço e de praceta. Hestnes restaura o valor hierárquico e funcional de uma parede, de um pilar, de uma cobertura abobadada, de uma janela, estudando a sua relação com o espaço. As formas estão hierarquizadas e evidenciam a diferença entre espaços, materiais, luz e sombra. Agora o espaço já não é fluído como Le Corbusier anunciava, desenham-se antes formas parciais com características próprias (de geometria, de matéria, de cor, de textura, de estrutura). As vinte abóbadas vermelho-barro são os elementos de exceção e esclarecem a existência de um local de reunião por excelência.

O complexo é polivalente contendo um espaço central (quase) cúbico coberto pelas quatro cúpulas maiores, rodeado por espaços fragmentados com funções específicas (ateliers de cerâmica, de fotografia, salas destinadas ao ensino da música e serviços diversos) a que sobrepõem as dezasseis cúpulas menores. O espaço central está desenhado de maneira a permitir o encontro e a reunião – três degraus de bancada servem para as pessoas se sentarem em roda. A sul do espaço central situa-se o palco, ambivalente, aberto por sua vez a duas bancadas ao ar livre construídas em semicírculo, afirmando um prolongamento externo que estabelece relações urbanas.

A arquitetura da casa da juventude não é feita à luz de uma teoria, os problemas são reais – é reflexão sobre a tradição da arquitetura portuguesa, sensível à singularidade popular. É assim de referir a importância da publicação do Inquérito à Arquitetura Popular em Portugal, ainda na década de 60 mas que proporcionou conhecimento acerca da construção – nomeadamente da construção de abóbadas de tijolo no Alentejo com as mãos e sem cofragem. Pretende-se sobretudo revelar na obra o entendimento da cultura local (parâmetros técnicos e plásticos), associadas a possibilidades técnicas contemporâneas. As abóbadas tradicionais são reminiscências de formas construtivas do sul. O interior das abóbadas revela um singular arrumar do tijolo, tendo no cimo um pequeno lanternim em vidro e ferro pintado de azul.

Através dos ensinamentos de Louis I. Kahn (com quem colaborou em Filadélfia de 1963 a 1965), Hestnes busca pela essência, procura pelo que a construção deseja ser. Tal como Kahn, Hestnes revê o moderno – que pretendia ser intelectual, internacional, resistente ao gosto estabelecido e às convenções – para expressar vontades institucionais e comunitárias. Reclama o olhar para o monumento. Kahn trouxe de novo a história como referência, porque as formas do passado têm os valores eternos, universais, padrões enraizados na memória do espírito. A escolha das técnicas artesanais revela igualmente o pensamento de Kahn. Tal como nas obras de Kahn Hestnes manipula conjuntamente a entrada da luz natural e a estrutura e obtém arquitetura – a introdução de pátios reforça a iluminação natural interior. Hestnes Ferreira, evoca Kahn ao projetar a casa da juventude através do desejo de criar uma comunidade, um lugar que possa dar abrigo à reunião, à aprendizagem, à expressão e à reflexão.

O discurso de Hestnes Ferreira na casa da juventude é consistente, estruturado e espiritual – advinha-se o contraste luminoso das superfícies, a fenestração das superfícies faz eco à arquitetura local, adequada ao clima. As variações formais são adaptadas às circunstâncias locais, integradas numa continuidade.

 

Ana Ruepp