CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA
Minha Princesa de mim:
O Japão é assim: tem segredos nas belezas expostas, que nos fascinam por dentro. É o inei raisan, o elogio da sombra. Nada é tão bonito como o que vemos por dentro. Silencia-se o que mais se sente. Assim também um dos nossos monges cartuxos escuta. Certa vez, estava eu por lá, uma amiga japonesa, natural de Matsué, sobre o mar do Japão, que foi terra e castelo (ainda erguido) dos Matsudaira, linhagem dos Tokugawa, e mausoléu de muitos deles, sítio também dum dos mais antigos santuários shinto, perguntou-me de que gostava eu mais: se do sol nascente, se do poente. Nada aí tinha a ver com conversa ou intenção "romântica": estávamos em Tokyo, em vésperas de Ano Novo, onde o sol nasce do mar, nessa costa leste do arquipélago nipónico... Mas, em Matsué, na costa ocidental, é no mar que o sol se põe. O que a minha querida amiga quis saber -- ela que era produtora e realizadora de televisão e fizera um dos mais belos programas sobre Portugal que eu tivesse visto -- era a espontaneidade ou a fidelidade da minha esperança. Da esperança como virtude de qualquer fé. Quem vê, à data do parto de um novo ano, por alturas do solstício de Inverno, o sol que do mar se levanta sobre o Império do Sol Nascente, deve necessariamente comover-se. Sobretudo se tiver cumprido o ritual shintoísta da prece noturna que chama procissões infindáveis de milhões de pessoas aos santuários, a pedirem Ano Bom. Ao despontar do dia novo, alguns estarão até no Fuji, muitos em lugares altos ou sagrados, para a primícia da saudação do soberano astro. Já antes, como nas nossas consoadas de Natal, se tinham reunido as famílias, em ceia litúrgica. O sol, respondi, é como a vida, é sempre uma promessa: surge onde o vemos primeiro, esconde-se quando já não conseguimos agarrá-lo. Vemo-lo partir, e só a noite dará sentido à nossa esperança: sentimo-lo caloroso e amigo, parece, depois, que nos deixou, mas acreditamos que ele há-de voltar. O tempo é circular, como o mundo. E Deus é um enorme abraço. Fiquei a pensar se será sempre preciso ser "escatológico" para se ser "religioso". De que nos serve pensarmos demais em exames e castigos, no terrível e temível dies irae, quando Nosso Senhor, afinal, talvez antes nos esteja chamando a recolher rebanhos pela calada final da tarde, e a mantê-los mansos e seguros até ao erguer do novo sol... E, se em noite sossegada morrermos, sem ódios, nem raivas, nem desprezo, indiferença ou esquecimento voluntário, quiçá despertemos inundados de luz... Rezo por nós, Princesa,
Camilo Maria
Camilo Martins de Oliveira