ATORES, ENCENADORES - LXIII
DUAS IRMÃS CANTORAS E ATRIZES DOS SÉCULOS XVIII-XIX
Fazemos hoje um “retrocesso histórico”, para assinalar duas artistas de cena que marcaram a sua época: as irmãs Cecília Rosa de Aguiar, nascida em 1746, portanto há exatos 270 anos, mas cuja celebridade na época se deveu em grande parte ao facto de ser irmã da grande Luísa Todi, esta nascida em 1753 e falecida em 1833. Ignora-se o ano da morte da Cecília. Mas conhece-se bem a fulgurante carreira da Luísa, não tanto como atriz, que também o foi, mas sobretudo como grande cantora lírica de projeção europeia.
Ambas eram naturais de Setúbal. E pode já acrescentar-se que a cidade não desmereceu a homenagem a Luísa Todi. A toponímia da cidade e o Fórum Municipal com o seu nome significam uma tradição que, repita-se, no caso específico de Luísa, bem se compreende: foi uma das grandes cantoras do seu tempo a nível europeu.
É evidente que a música e o canto são, por definição, artes mais universais, digamos desse modo. É mais fácil uma carreira internacional na música do que no teatro... E não falamos obviamente no cinema!
O certo é que Cecília e Luísa fizeram ambas carreira no teatro declamado. Ambas terão estreado no Teatro do Conde de Soure, por alturas de 1777, possivelmente com o “Tartufo” de Molière. A ser verdade, constitui um dado interessante no que respeita a uma certa internacionalização do espetáculo teatral na época.
No que respeita a Cecília, Sousa Bastos, no seu sempre citável “Diccionario do Theatro Português” (1908), remete para o Teatro do Bairro Alto o período mais destacado da carreira como atriz. Evoca concretamente a participação em peças de Voltaire e de Nicolau Luís da Silva: e pode agora recordar-se que, na época, Nicolau Luís foi um nome de primeiro plano não tanto como dramaturgo, mas como empresário, precisamente do Teatro do Bairro Alto.
Por seu lado, Inocêncio F. da Silva, no ”Dicionário Bibliográfico Português” (Tomo I) cita José Maria Costa e Silva, o qual traça de Nicolau Luís um retrato no mínimo pitoresco: “Morava no fim da rua da Rosa, toucado com uma cabeleira de grande rabicho, que ninguém viu na rua senão embuçado em capote de baetão de toda a roda, notável pelo desalinho e desmazelo do seu vestuário, trazendo consigo um grande cão de água que o acompanhava sempre, e sorvendo repetidas pitadas de simonte com toda a placidez e majestade catedrática”, assim mesmo!...
Ora bem: este Nicolau Luís, empresário do Teatro do Bairro Alto onde Cecília atuou, produziu centenas de títulos, entre traduções e adaptações, para alimentar o Teatro: mas original, só terá escrito a peça “Os Maridos Peraltas e as Mulheres Sagazes”, editada no chamado Teatro de Cordel – edições avulsas que, segundo recordou Nicolau Tolentino, “no Arsenal, ao vago caminhante/ Se vendem a cavalo num barbante”…
Note-se que Cecília Rosa surge também como intérprete de ópera: Mário Moreau, no volume I do estudo sobre “Cantores de Ópera Portugueses” (1981), refere que Cecília alternava atuações de canto e de declamação” e descrimina verbas pagas à cantora-atriz, assinalando que, a partir de 1769, -1770, “as condições modificaram-se para pior, o que se deve certamente à necessidade de comprimir despesas, dados os habituais défices do teatro” (pág.30).
Do mesmo não se deveria queixar a irmã Luísa: a sua carreira como cantora de ópera, iniciada em Lisboa em 1771, prolonga-se até 1799, com atuações e longas permanências em França, Alemanha, Itália, Espanha, Rússia, tendo cantado na corte de São Petersburgo a convite de Catarina II e também a convite do Imperador na corte de Frederico II da Prússia. Faleceu, cega, em 1833.
Cito, para terminar, o livro sobre “O Teatro Nacional de São Carlos” (Lello e Irmão, ed. 1992 – pág.7), da autoria de Manuel Ivo Cruz (meu irmão):
“Entre outros, os teatros do Bairro Alto (depositário da tradição popular das óperas em vernáculo de António José da Silva – António Teixeira), da Rua dos Condes (reconstruído em 1769) e do Salitre (inaugurado em 1782) mantiveram uma intensa atividade, não obstante a precaridade das instalações, más para os artistas e para o público. No entanto, até a própria família real os frequentava com assiduidade, e artistas como Luisa Todi, sua irmã Cecília de Aguiar, Maria Joaquina, Ana Zamperini, Marcos Portugal e tantos outros, lá trabalharam e projetaram-se definitivamente na história da nossa cultura”.
Duarte Ivo Cruz