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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

Bayreuth, Markgr Opernh 1995

 

   Minha Princesa de mim:

 

   Voltando ao nascer e pôr do sol  --  que é sempre (pensaste nisso, Princesa?) simultaneamente o mesmo e o seu reverso, pois é o mesmo sol noutro lado ou de outro modo, e como o vemos e chamamos (nascente, poente) depende só do tempo e do lugar em que nos encontramos...  Voltando, quero dizer, àquela lembrança do abraço de Deus, como um manto sob o qual nos recolhemos, e que nos aconchega, carinho imaterial onde vamos esquecer frustrações, desilusões e dores, e repetir o sonho da esperança... E volto quase sem querer, quiçá só por um mais forte sentimento do tempo como circular circunstância nossa, ou roda da vida, algo que, em mim, a evocação do Japão sempre me traz. E   trouxe-me, hoje mesmo, outras memórias...

   Como a de um fado de Coimbra que cantava:

 

             Ave Marias são beijos,

             Padre Nossos são abraços,

             rosários os meus desejos,

             a cruz é abrir os braços...

 

             De rezar beijos e abraços,

             e desejos, estou cansado...

             Abre depressa os teus braços:

             quero ser crucificado! 

 

   A minha longa estadia no Japão  --  apesar de dever viajar, com muita frequência, da Coreia à Nova Zelândia, não só passando, mas parando, sentindo um pouco de tudo  --  foi sendo um tempo diferente, e único, de meditação, silêncio interior. Não quero ser ousado, muito menos  temerário no juízo, mas aquilo, o tal Oriente, que nos diziam ser misterioso, mítico, assombrador, revelou-se-me, singelamente, como um modo (vários modos) outramente tranquilo dos homens na sua circunstância... Aquele ser diferente não me assustou, menos ainda me afugentou. Tampouco me levou a qualquer voluntariosa consciência da superioridade da minha cultura, das crenças em que fui criado, das circunstâncias político-sociais em que cresci. Despertou-me a curiosidade, que é o primeiro passo do amor. Porque ser curioso, no nosso antigo sentido latino, antes de significar indiscrição ou indagação, é sinal de cuidado extremo, de aproximação ao outro e à sua verdade. Aliás, na nossa tradição evangélica, quem foi curioso, e quis saber do outro, foi o bom samaritano, o tal que foi ver e cuidou.

   Ora, a verdade de qualquer de nós, para quem nos quiser mesmo ver, se não for a do amor, só pode ser a  do desejo de destruir. Esta, e só esta, nas relações humanas, é a norma ética fundamental. Não tenhas medo das palavras, Princesa: só o amor é, pode ser, fundador de relações humanas. Afirmá-lo assim é definir um critério de convivência. E de moralidade. A letra de fado que acima citei  --  de cor e memória antiga  --  não é necessariamente blasfema, nem poderá sê-lo à luz do amor cristão. Poderá, é claro, ser só uma metáfora erótica, mas também pode ser tomada como convite místico à entrega pelo amor, a um ofertório de si. Qualquer relação humana é, inevitavelmente, um entendimento mútuo, no sentido de uma troca de olhares que podem estar carregados de amor, ou ódio, ou indiferença. O outro, como eu o entendo, surge ao toque do meu olhar. Escrevo esta frase e reparo que estive agora mesmo a escutar a ópera Siegfried, do Wagner, dirigida pelo Daniel Barenboim, no Festival de Bayreuth, em 1992. Trago ainda nos ouvidos  --  enchem-me o coração e a cabeça  --  a música e as palavras da cena final, que começa com Siegfried cantando Selige Öde / auf wonniger Höh´!, ó divina solidão em iluminado cume... Aí, um raio de luz o fará descobrir Brünhilde deitada, adormecida, vestida de armadura, como valquíria. Quando, para a aliviar, ele retira o colete de aço que cobre o peito dela, lança aquele grito de poderoso espanto: Das ist kein Mann! E não é um homem, não, é uma bela mulher que ele ousará despertar com um beijo nos lábios. Brünhilde abre os olhos e canta: Heil dir, Sonne! / Heil dir, Licht! / Heil dir, leuchtender Tag! Ave sol ! Ave luz ! Ave radioso dia ! E será novamente uma iluminação que ambos saudarão no fim, quando ela já decidiu renunciar à eternidade do Walhalla e tornar-se num ser humano e mortal, podendo assim entregar-se ao desejo de Siegfried que, aliás, ao descobri-la, encontrara a Mulher, e sentira medo! Vencido este pelo inconsciente poder de atracção de Brunhilde, também esta será vencida pela força do amor de Siegfried. Ambos poderão então finalmente cantar : leuchtende  Liebe! / lachender Tod!, esplendoroso amor, morte radiante!

   Esta carta, Princesa de mim, nada afirma ou nega, nem explica ou pretende explicar. E o que conta, mais não é do que um passeio, uma deambulação de mim, como quando me deixo perder num mar de corais...

 

                     Camilo Maria


Camilo Martins de Oliveira