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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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ATORES, ENCENADORES - LXIV

 

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EVOCAÇÃO DE FERNANDO AMADO
NOS 70 ANOS DA CASA DA COMÉDIA

No dia em que redijo este texto, e noutra nota para publicação na rubrica “Teatros” do Centro Nacional de Cultura, tive ensejo de evocar a estreia do grupo e do movimento criado em 1946 por Fernando Amado com a designação genérica de Casa da Comédia. Na data, não era um teatro, como posteriormente veio a ocorrer: tratava-se de um movimento, de uma iniciativa cultural, que teve o seu primeiro espetáculo no Teatro do Ginásio, nesse ano de 1946, com a estreia da peça “A Caixa de Pandora”, da autoria do próprio Fernando Amado, e figurinos do pintor António Dacosta.

Não é a primeira peça de Fernando Amado. Em 1916, com 17 anos de idade, terá escrito para a cena um texto que desapareceu, intitulado “O Homem Metal”, de expressa influência futurista, recebida através de Almada Negreiros e, em termos gerais, do Orpheu, de acordo com esclarecimentos posteriores do autor.

Entre 1922 e 1925 escreveu “O Pescador”, espécie de “Fausto” português, que normalmente é referido como a sua primeira peça conhecida e divulgada: “obra ambiciosa, de fáustica inspiração, em que procura sintetizar desencontradas solicitações culturais através de um «leit-motif», o da vocação ecuménica e marítima de Portugal”, escreveu David-Mourão Ferreira. (in “Dicionário do Teatro Português” - Prelo ed. - pág. 44).

Por minha parte, assinalei um certo peso simbolista desta peça, que reflete também as opções ideológicas e de certo modo o pensamento politico que sempre assumiu, num plano de profundo e sentido de amor a Portugal: o que é totalmente coerente com a ação cívica e política do autor.

Em 1923 escreveu “A Primeira Noite”, peça que esteve perdida e foi ignorada durante dezenas de anos. Deixaremos para outro artigo a analise desse texto, que só muito mais recentemente foi descoberto e publicado. .

Mas ao longo de dezenas de anos, seguiram-se largas dezenas de títulos, que cobrem uma expressão dramatúrgica variada, desde peças de nítido modernismo, por exemplo a citada ” Caixa de Pandora” que iremos desenvolver abaixo, até textos para crianças (“Os Segredos de Polichinelo”) ou para a então relevante Campanha Nacional de Educação de Adultos (por exemplo “O Livro” -1953).

E também evocamos o que o próprio autor denominava “debucho teatral” – cenas rápidas e teatralmente sintéticas, mas contendo profunda reflexão da problemática da humanidade. E ainda textos mais ligados a uma certa temática existencial, como “O Meu Amigo Barroso”, comédia de substituição de identidades, ou, “O Iconoclasta”, esta de clara influencia pirandelliana, ou ainda, “D. Quixote e o Outro”, “A Mascara” ou “Caiu um Anjo”…

Ou recuando no tempo, a experiência de “teatro total” que constituiu, em 1940, “Casamento das Musas” escrito para o Teatro Estúdio do Salitre e representado com o “Antes de Começar” de Almada Negreiros.

Fernando Amado foi um homem de teatro na sua globalidade. Professor de Arte de Representar e Encenação e de Estética Teatral no Conservatório, as suas aulas constituíam verdadeiras lições globais de teoria e prática teatral. Nelas, assumia a prática do teatro, interpretando papeis e dirigindo espetáculos. Apresentava-se como ator-encenador, em exercícios públicos na Escola.

Tive o gosto e o proveito de assistir, como aluno-ouvinte como então se dizia, a numerosas aulas de uma e outra cadeira: de manhã estava na Faculdade de Direito, à tarde, no Conservatório. Disso darei conta em artigo posterior.

E tive assim ocasião de muito aprender, inclusive vendo Fernando Amado-ator – pois não hesitava em interpretar ele próprio personagens de peças representadas pelos alunos. E não eram peças simples. Na dramaturgia portuguesa, percorria-se, ao longo dos 3 anos que durava o curso, desde Gil Vicente a Almada. E no teatro de outras literaturas, recordo exercícios a partir de autores como designadamente Thorton Wilder (“A Longa Ceia de Natal”), Lorca (“Amores de Don Perlimpin com Beliza no seu Jardim”), Eugene ONeill (“Longa Viagem para a Noite”) e alguns clássicos.

Outro estilo dramatúrgico cultivado por Fernando Amado como autor era o que o próprio classificava como “debucho teatral”, assim mesmo - cenas breves em um ato, rápidas e brilhantes, mas densa na mensagem transmitida: “Música na Igreja”, “O Ladrão”, “Novo Mundo”, “Vésperas de Combate” ou particularmente “Sua Excelência já não Atende Mais” – e realço particularmente esta peça, porque contem, num ato breve, toda a abordagem ética e social que o politico-doutrinador Fernando Amado conduziu ao longo de uma longa vida publica: cena de dois camponeses que descem às antecâmaras do poder para implorar justiça e são escorraçados porque nesse dia “Sua Excelência já não atende mais”…

Deve também assinalar-se uma influência da lição de Pirandello subjacente ou mais ou menos assumida em peças de maior fôlego. Cito designadamente “O Meu Amigo Barroso”, que vi numa encenação do próprio Fernando Amado – e disso falaremos a seguir – ou “O Iconoclasta ou o Pretendente Imaginário”.

E cito ainda outras linhas de criação, mais simples talvez, como o teatro infantil, documentado por exemplo em “O Segredo de Polichinelo”, ou das peças encomendadas pela então relevante Campanha Nacional de Educação de Adultos, de que recordamos acima “O Livro” mas que podemos acrescentar “O Aldrabão”, esta, exemplar no encadeado dos diálogos. Foi publicada pela CNEA com uma lindíssima ilustração de Almada Negreiros.

Mas voltemos à “Caixa de Pandora”, porque nesta peça, Fernando Amado faz uma síntese do teatro. E faz essa síntese a partir da vasta experiência de encenador, e até de ator das suas próprias peças nos espetáculos que dirigiu e tantas vezes interpretou – no Conservatório, no Teatro Ginásio, na Casa da Comédia, na Faculdade de Letras e no nosso Centro Nacional de Cultura, de que foi um dos granes animadores.

E “A Caixa de Pandora” traduz essa experiencia pessoal de direção e interpretação: Fernando Amado autor foi também Fernando Amado ator e encenador. A peça passa-se, diz a nota de cena, “num pequeno palco armado ao fundo, unicamente para servir a representação” palco esse que apenas “faz pensar no verdadeiro teatro”.

E aí, um grupo de personagens imortais enfrentam-se e enfrentam o espetador: Clitmnestra, Gata Borralheira, Mofina Mendes, Desdémona, Arlequim, Tamerlão, Shelley, enfrentam o publico materializado num personagem tímido e bonacheirão de “meia idade, cara rapada, vestido de cinzento, nem magro nem gordo”. Enfrentam o autor, poeta em crise de consciência. Enfrentam um empresário grosseiro e venal. E enfrentam um crítico caricato, intelectualidade balofa e convencida, ausente da humildade que o critico deve possuir… e que tantas e tantas vezes não possui!

De tudo isto dei conta num estudo intitulado “Fernando Amado Homem de Teatro” (ed. Cadernos Gil Vicente 192). De tudo isto e de muito mais. E ao longo dos anos, foram descobertas e publicadas mais peças de Fernando Amado e a memória critica deste tão importante homem de teatro global – autor, ator, encenador.

Disso daremos novamente conta em artigo posterior.


Duarte Ivo Cruz