A LÍNGUA PORTUGUESA NO MUNDO
III - O DIREITO À PRÓPRIA LÍNGUA, À LÍNGUA APROPRIADA E A UMA LÍNGUA GLOBAL DE COMUNICAÇÃO INTERNACIONAL
1. Da inevitabilidade humana e fundamental da língua e do direito à língua, decorre o direito à própria língua, à língua apropriada e a uma língua global de comunicação internacional.
Tradicionalmente, o direito à língua esgotava-se no direito à própria língua, à língua identitária. Sobre a excelência e primazia identitária da língua portuguesa, fez Pessoa uma eloquente proclamação: “A minha Pátria é a língua portuguesa”. Sobre a sua relevância para a preservação da nossa identidade, fez Torga uma significativa declaração: “Lutei, luto e lutarei até ao derradeiro alento pela preservação dessa identidade, última razão de ser de qualquer indivíduo ou coletividade”. Vergílio Ferreira, por sua vez, escreveu: “Uma língua é o lugar donde se vê o mundo, e em que se tratam os limites do nosso pensar e sentir. Da minha língua vê-se o mar”. No dizer de José Mattoso, “(…) não existe nenhuma realidade étnica ou de âmbito da cultura popular com uma expressão propriamente nacional (isto é, que se verifique em todo o território português) senão a identidade da língua. Todos os outros são de âmbito regional”. Atualmente, com a evolução acelerada das modernas tecnologias de comunicação e informação, com a mundialização computorizada dos fluxos feitos de várias línguas, com a aceleração dos movimentos linguísticos e da interação de sistemas linguísticos e não linguísticos, com o intercâmbio de bens, capitais, serviços, ideias, pessoas, viagens, com a criação de espaços supranacionais onde a globalização assenta na cibernética, eletrónica, internet e telemática, o direito à língua, mais do que o direito dos falantes à sua própria língua, é também um direito à língua apropriada. Se inexequível o exercício do idioma próprio do falante, como materno, nacional, regional ou em geral menos usado, tem ele direito a uma língua sucedânea que, pelo menos, deve respeitar a igualdade de tratamento entre as línguas dos interlocutores respeitando, tanto quanto possível, a identidade e a matriz do idioma de cada um.
No caso do português, há um direito à própria língua na titularidade de cada um dos falantes dos países e povos lusófonos, direito extensivo a todos os falantes da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa e núcleo duro do mundo lusófono, como idioma comum e partilhado, sem exclusividades e em igualdade de circunstâncias. Assim como há o direito à apropriação da língua quando lusófonos se expressam noutro idioma que não o próprio se, de todo em todo e consoante o contexto, os interlocutores não falam português, bem como em instituições ou organizações internacionais em que a sua língua não é oficial ou de trabalho.
Todavia, ultrapassada a esfera estadual rumo a uma perspetiva global, além de se constatar a insuficiência da língua identitária da maioria dos falantes, verifica-se, na atualidade, que o inglês é a língua global de comunicação internacional por excelência e, ao mesmo tempo, uma língua apropriada. Tendo o inglês o estatuto atual de língua internacional predominante, isso não significa que seja sempre suficiente, dado que se responde melhor a algumas necessidades presentes, o mesmo não sucede em relação a outras, em particular no que se refere à nossa necessidade identitária.
Para o libanês Amin Maalouf, entre a língua identitária e a global há um espaço imenso que é necessário preencher, dada a sua insuficiência, dado que contentarmo-nos, em matéria de línguas, ao estritamente imprescindível, é contrário ao espírito do nosso tempo. Tendo a identitária como a primeira língua e a global como a terceira (hoje o inglês), opina pela necessidade de promover obrigatoriamente uma segunda língua, uma língua livremente escolhida, amada, adotiva, desposada, do coração.
Haveria “(…), ao lado dos “generalistas”, que conheceriam apenas a sua língua e o inglês, “especialistas” que possuiriam, além desta bagagem mínima, a sua língua privilegiada de comunicação, livremente escolhida de acordo com as suas próprias afinidades, e através da qual realizariam o seu desenvolvimento pessoal e profissional. Será sempre uma desvantagem séria não conhecer o inglês, mas será também, e cada vez mais, uma séria desvantagem conhecer apenas o inglês”. (“As Identidades Assassinas”, Difel, 2.ª edição, p. 156). Preservar a própria língua (identitária), generalizar sem complexos o ensino do inglês e encorajar a diversidade linguística, eis a sua proposta, cujas situações também englobam um direito à língua apropriada, mesmo que livremente escolhida, sem prejuízo do direito (efetivo ou potencial) a uma língua global de comunicação internacional.
2. A Declaração Universal da UNESCO Sobre a Diversidade Cultural, de 2001, ao proclamar a diversidade cultural como património comum da humanidade (artigo 1.º) e que os direitos culturais são parte integrante dos humanos, sendo estes universais, indissociáveis e interdependentes (art.º 5.º) pretende, não só, preservar a identidade e os direitos dos países de acolhimento, como a sua harmonização com outras identidades alheias. A Declaração Universal dos Direitos Linguísticos de Barcelona, de 1996, visa sobretudo acautelar os direitos das comunidades e grupos migrantes, tendo não só o direito mas ainda o dever de se integrarem, sendo recomendável que os que chegam sejam assimilados, desde que, mantendo os seus valores, essa assimilação não seja coagida (cf., artigos 3.º e 4.º). Também o art.º 27.º, do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, estabelece que as minorias linguísticas em certo Estado não podem ser privadas do uso da sua própria língua. Na mesma esteira do art.º 14.º, n.º 2, alínea f), segundo o qual todo o acusado tem de ser assistido gratuitamente por um intérprete, se não compreender o idioma usado em tribunal.
O que vem corroborar a necessidade de uma língua identitária, de pertença, de um direito à própria língua, bem como de que podem falar-se, em simultâneo, várias línguas, desde a nativa, de acolhimento, nacional, regional, de um direito à língua apropriada, que pode coincidir, ou não, com o direito ao uso de uma língua global de comunicação internacional com incidência planetária, ultrapassando largamente as fronteiras do idioma e potenciando confluências de interesses, em redor das quais se fixam espaços de interesse geolinguístico, cimentadores de zonas estratégicas de influência geopolítica.
Abrangendo a língua portuguesa oito países em quatro continentes, é não só uma língua de comunicação internacional, mas também, por força da sua distribuição geográfica, uma língua transnacional, transcontinental, transoceânica e transcultural. Uma das línguas da globalização, uma língua global em crescimento demográfico e falada por países de potencial económico reconhecido, ainda que por desenvolver ou em desenvolvimento, cada vez mais com potencialidades de ser uma língua global de comunicação internacional, quando significativa e expressivamente usada por falantes de outros idiomas. O que implica uma política de língua no essencial não confidencial, para não falantes de português como língua nativa, que vá além do seu espaço geolinguístico, preferencialmente aceite pelo bloco lusófono. O que é valorizado pelo art.º 7.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa, ao prescrever que “Portugal mantém laços privilegiados de amizade e cooperação com os países de língua portuguesa”, em conjugação com o art.º 9.º, alínea f), ao consagrar ser tarefa fundamental do Estado “Assegurar o ensino e a valorização permanente, defender o uso e promover a difusão internacional da língua portuguesa”.
Uma língua global de comunicação internacional (e o seu direito), tem de deixar de ter tutelas de pertença exclusivas, sendo esse o preço a pagar pela sua permanência no longo prazo, ainda que com diferentes categorias de uso, como língua materna, identitária, segunda, estrangeira, em comunhão e simultaneidade de esforços com o direito à própria língua e à língua apropriada.
23 de Fevereiro de 2016
Joaquim Miguel De Morgado Patrício