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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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UMBERTO ECO - HUMANISTA TOTAL

 

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Conheci pessoalmente Umberto Eco e recordo esse momento que partilhei com Antonio Tabucchi, saudoso amigo e grande nome da cultura europeia.
Eco era uma personalidade fascinante. Sendo medievalista e semiólogo foi o que alguns classificaram apropriadamente como o «humanista total».
Quando lemos toda a sua obra, apercebemo-nos disso mesmo.
«O Nome da Rosa» é um dos grandes romances europeus de sempre - e constitui uma verdadeira parábola sobre a modernidade em diálogo com um tempo ainda muito desconhecido - que é a Idade Média. Eco era fascinado pela Idade Média, como um tempo de grande curiosidade e de diálogo entre culturas.
Um jornal italiano diz que ele era o homem que tudo sabia. Assim era no sentido de quem nunca deixou de perguntar. Até ao fim da vida foi alguém com uma curiosidade insaciável.
“O Pêndulo de Foucault”, “Apocalípticos e Integrados”, “Obra Aberta” são referências indispensáveis.

A grande lição de Umberto Eco é a da necessidade de um novo humanismo, capaz de ligar letras e ciências, educação e artes - em suma, a ambição de um saber complexo e integrado. Umberto Eco é um símbolo bom do nosso tempo!

 

                                                            Guilherme d’Oliveira Martins

 

Morreu a escritora Harper Lee

 

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Subiu ao descanso a dormir

Do sul vinha ainda aquele vento

Que lhe acudiu à chamada terna

Ninguém a encontrara

Parou sim, na mesma hora em que partira

Um barco pintado de mar

 

Teresa Bracinha Vieira

2016

 

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Morreu Harper Lee, a autora de Mataram a Cotovia

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Harper Lee vivia uma velhice discreta num lar de Monroeville, a sua terra natal, mas voltara à ribalta em 2015 com a descoberta e a publicação de Vai e Põe Uma Sentinela.

A romancista Harper Lee, autora de um livro que se tornaria quase instantaneamente um clássico da literatura americana, To Kill a Mockingbird (Mataram a Cotovia na mais recente edição da Relógio D’Água), publicado em 1960, morreu esta sexta-feira na sua terra natal, Monroeville, no Alabama, onde vivia num lar desde que sofrera, em 2007, um acidente vascular cerebral.

Extremamente reservada - as suas aparições públicas eram raras e não dava entrevistas desde os anos 60 -, Harper Lee voltara às páginas dos jornais em 2015 com a notícia de que fora descoberto o manuscrito de uma alegada sequela de Mataram a Cotovia, que viria a ser publicada nesse mesmo ano com o título Go Set a Watchman (Vai e Põe Uma Sentinela, na edição da Presença). Apresentado como uma continuação do romance de 1960, mas escrito antes, o livro retoma boa parte das personagens de Mataram a Cotovia, mas o enredo passa-se 20 anos depois.

Nem o acordo da autora quanto à publicação de Vai e Põe Uma Sentinela, nem o exato estatuto desse livro estão ainda cabalmente esclarecidos, mas parece provável que o manuscrito fosse apenas uma versão inicial de Mataram a Cotovia, e não um verdadeiro (e deveras tardio) segundo livro, que excluiria Harper Lee desse escasso número de escritores célebres que escreveram um único livro, entre os quais se contam a Emily Brontë de O Monte dos Vendavais ou a Margaret Mitchell de E Tudo o Vento Levou.

Nelle Harper Lee nasceu no dia 28 de Abril de 1926 em Monroeville, uma pequena cidade de 6.500 habitantes, onde se tornaria, na infância, a melhor amiga de um rapaz que para ali fora morar aos quatro anos, após o divórcio dos pais, e que o mundo viria a conhecer como Truman Capote. É Lee quem servirá de inspiração a Capote para a Idabel do seu romance de estreia, Outras Vozes, Outros Lugares. E Capote, por seu turno, transformar-se-á no pequeno Dill, o vizinho e amigo da protagonista de Mataram a Cotovia.

Nelle, nome que lhe foi dado pelo insólito motivo de ser o nome de uma avó, Ellen, escrito ao contrário, era a mais nova de quatro irmãs, filhas de um advogado, Amasa Coleman Lee, que no  início da sua carreira defendera dois negros acusados de terem morto um comerciante branco (acabariam ambos enforcados).

É tido como certo que Harper Lee se inspirou pelo menos parcialmente no seu pai para compor o Atticus Finch de Mataram a Cotovia, o advogado, viúvo, que mora numa pequena terra do Sul dos Estados Unidos, nos anos 30, e que ensina os seus dois filhos - a narradora do livro, Jean Louise, vulgo “Scout”, e o seu irmão Jem – a não se deixarem influenciar pelo preconceito, e que não hesitará em afrontar ele próprio o racismo dos amigos e vizinhos ao aceitar defender um jovem negro acusado de violar uma rapariga branca.

Um presente de Natal

Mataram a Cotovia, que ganhou o prémio Pulitzer em 1961, vendeu até hoje mais de 30 milhões de exemplares, está traduzido em mais de 40 línguas, e foi adaptado ao cinema logo em 1962, num excelente filme de Robert Mulligan, com Gregory Peck no papel do advogado, interpretação que lhe valeu um Óscar. A própria Lee dirá que achou o filme “uma das melhores adaptações de um livro alguma vez feitas”.

Harper Lee começara a interessar-se por literatura ainda no liceu de Monroe. Terminados os estudos liceais, frequentou durante vários anos a Universidade de Alabama, estudando Direito, mas, quando estava prestes a concluir a licenciatura, decidiu partir para Nova Iorque e tentar uma carreira literária. Arranjou emprego como escriturária, tratando de reservas em companhias de aviação, e ia escrevendo nos tempos livres.

Em 1959, a escritora acompanhou o seu amigo Truman Capote ao Kansas, como sua assistente na investigação que viria a dar origem a In Cold Blood (A Sangue Frio), o livro em que Capote relata o brutal homicídio de uma família, e que só viria a ser publicado em 1966, quando Harper Lee era já uma estrela literária, depois do sucesso instantâneo do seu romance de estreia. Esta fase do relacionamento entre ambos é descrita no filme Capote, de Bennett Miller, com Philip Seymour Hoffman no papel do romancista e Catherine Keener no de Harper Lee.

É ao seu amigo de infância que Lee deve o conhecimento do músico, escritor e produtor teatral Michael Brown e da mulher deste, Joy, que no final de 1956 lhe deram um extraordinário presente de Natal: o dinheiro correspondente a um ano de salários, com um bilhete que dizia: “Tens um ano livre para escreveres o que te apetecer. Feliz Natal”. Lee conta a história em 1961, mas o nome dos seus beneméritos só viria a ser revelado décadas mais tarde. Não há dúvida de que a autora usou bem o tempo que lhe foi concedido, escrevendo Mataram a Cotovia, ou talvez Vai e Põe Uma Sentinela, aceitando que se trata da primeira versão do romance.  

Brilho em cada linha

Em 1957, Lee entregou o manuscrito a várias editoras, incluindo a então J. B. Lippincott Company, que comprou os direitos. A editora da Lippincott que tratou do livro, Therese Hohoff, contará mais tarde que “a centelha do verdadeiro escritor brilhava em cada linha”, mas que o manuscrito era mais “um conjunto de episódios” do que “um romance plenamente estruturado”. Durante três anos, a autora escreverá versões sucessivas, até chegar ao livro que milhões de pessoas irão ler nas décadas seguintes.

Lee escrevia desde muito nova e já tinha publicado várias histórias em revistas quando saiu Mataram a Cotovia, mas a notoriedade que lhe trouxe o seu livro de estreia parece tê-la bloqueado. Em 1964, quando ainda dava entrevistas, garante que não esperou ter “qualquer tipo de sucesso” com Mataram a Cotovia e confessa que está a ter dificuldades em avançar com um segundo romance. Ainda escreveu alguns ensaios nos anos 60, mas o segundo livro, se como tal pode ser considerado, só surgiria 55 anos mais tarde, em 2015.

Terá havido, de facto, uma tentativa de segundo romance que ficou pelo caminho, e Lee trabalharia ainda num projeto ao estilo de A Sangue Frio, sobre um assassino em série do Alabama, que também acabou por pôr de lado.

Retirando-se da vida pública, acabará por regressar a Monroeville para tratar da sua irmã mais velha, Alice, que adoecera e que viria a morrer em 2014. Ela própria sofreria um acidente vascular cerebral em 2007, do qual terá conseguido recuperar razoavelmente, e vivia desde então num lar de idosos.

Em Novembro de 2007, o presidente George W. Bush atribuiu-lhe a Medalha da Liberdade, a mais alta distinção civil nos Estados Unidos, e em 2010 o seu sucessor, Barack Obama, deu-lhe a Medalha Nacional das Artes, destinada a assinalar “contribuições extraordinárias” no domínio das artes.

A controvérsia em torno da publicação de Vai e Põe Uma Sentinela trouxe para as páginas dos jornais muitas notícias contraditórias sobre o seu estado de saúde, com testemunhos de que estaria bem e lúcida a contrastarem com relatos de que estaria quase cega e surda e sofreria de demência. 

"Um farol de integridade"

As reações à morte de Harper Lee não se fizeram esperar. “O mundo perdeu uma mente brilhante e uma grande escritora”, disse, citada pela BBC, Spencer Madrie, proprietária da Ol' Curiosities and Book Shoppe, uma pequena livraria independente de Monroeville, destacando “as verdades que Harper Lee deu ao mundo, provavelmente antes de o mundo estar preparado para elas”. “Estamos agradecidos por termos tido uma ligação a uma autora que ofereceu tanto. Faltará sempre alguma coisa em Monroeville e no mundo em geral na ausência de Harper Lee.”

Em comunicado, o agente da autora, Andrew Nurnberg, escreveu que o mundo perdeu “um farol de integridade”. “Ter conhecido a Nelle nestes últimos anos não foi só um prazer absoluto, mas também um privilégio extraordinário”, acrescentou ainda, contando ter estado com Lee há seis semanas. “Estava cheia de vida”, recordou, destacando a mente e a inteligência afiada da escritora, que citou então Thomas Moore.

No Twitter, multiplicam-se as homenagens à escritora. “Descanse em paz, Harper Lee. A única coisa que não se submete à regra da maioria é a consciência de uma pessoa”, escreveu no Twitter o CEO da Apple, Tim Cook, citando uma conhecida frase da obra de Lee.

 

por Luís Miguel Queirós com Cláudia Carvalho, in Público | 19 de fevereiro de 2016
Notícia no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura | Jornal Público

 

A FORÇA DO ATO CRIADOR

 

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A Casa de Chá de João Mendes Ribeiro.

 

Dentro da muralha do castelo de Montemor-o-Velho, no Paço das Infantas, João Mendes Ribeiro (1960) desenhou uma casa de chá transparente. A casa pretende-se leve e solta em relação às suas preexistências.

As paredes do castelo são expressivas em matéria e a criação do espaço abstrato da casa de chá, definido por dois planos horizontais unidos por uma caixa de madeira e uma superfície de vidro transparente, reforça essa expressão. É evidente a ambiguidade entre o interior e o exterior – as muralhas, que delimitam o Paço, criam já um espaço contido, íntimo e encerrado (embora exterior). Um equilíbrio estável estabelece-se entre a casa de chá e a muralha. As ruínas tornam-se de novo paredes que protegem a caixa de vidro que só tem teto e chão. São as ruínas que dão a terceira dimensão à casa de chá.

As muralhas do castelo atuam assim, como cenografia. Existe um profundo respeito pelo passado que permanece intocável e quase artificial. E essa ideia de artificialidade intangível é reforçada ainda pela introdução de uma escada metálica na muralha, de declive muito acentuado, para chegar a uma janela. A escada introduz a ideia da existência de um piso superior, possibilita a visualização superior da relação da casa de chá com a envolvente e sobretudo transforma o projeto num cenário que pode ser transformado a qualquer momento.

No interior, a caixa de madeira está simetricamente colocada junto à fachada tardoz, é encerrada e concentra as zonas de serviço: a cozinha e as instalações sanitárias. O volume do passa-pratos é saliente e permite a única abertura na caixa. Descentrada a caixa disponibiliza um espaço totalmente aberto para a zona de refeições que se prolonga para o exterior, como que flutuante originando a esplanada.

A efemeridade explorada em inúmeros projetos cenográficos de João Mendes Ribeiro, trás para a casa de chá a possibilidade do objeto desaparecer no meio da muralha, sem se tornar obsoleto ou envelhecido. A casa de chá é a negação do objeto novo em favor do objeto preexistente. O espaço definido na casa é principalmente uma realidade flexível e evolutiva que se define pela natureza e pela intensidade do seu uso – o movimento dos corpos no espaço e a disposição do mobiliário refletem a mutação do objeto construído. O espaço interior só é identificado quando existe mobiliário (mesas, cadeiras e carrinhos de chá). A maioria das fotografias publicadas não têm mobiliário o que torna o espaço ainda mais abstrato porque não há sinais identificadores de uso e de uma função – até mesmo o corpo de serviços está camuflado.

No âmbito deste projeto, é importante também mencionar a casa Farnsworth que Mies Van Der Rohe construiu entre 1945-51, em Plano, Illinois, pela transparência, pela abstração, pela tentativa de negação do objeto em relação à sua envolvente e pela afirmação da envolvente no interior do objeto. Igualmente dois planos distintos formam respetivamente a cobertura e o pavimento e comprimem um espaço aberto para viver. Mies aplicou igualmente o conceito de um espaço único, livre e flexível, encerrado por um vidro, concretizando a expressão de um volume imperturbável que flutua.

Na casa de chá, tal como na casa Farnsworth, todo o vocabulário tradicional que define um objeto arquitetónico – divisões, paredes, portas, janelas e mobiliário – é virtualmente eliminado numa visão puritana de simplificação, de existência transcendental e de enfatização contextual. A ideia é antes refinada e desenvolvida através de uma escolha aturada de cores, detalhes e materiais – no caso da casa de chá madeira, vidro, aço e cobre.

Sendo assim, é a relação Espaço – Corpo – Arquitetura que caracteriza o trabalho de João Mendes Ribeiro, sobretudo através da construção de cenários/objetos arquitetónicos dinâmicos e multifuncionais, com possibilidades de mutação de acordo com as ações dos intérpretes/utilizadores.

 

Ana Ruepp

 

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

Bayreuth, Markgr Opernh 1995

 

   Minha Princesa de mim:

 

   Voltando ao nascer e pôr do sol  --  que é sempre (pensaste nisso, Princesa?) simultaneamente o mesmo e o seu reverso, pois é o mesmo sol noutro lado ou de outro modo, e como o vemos e chamamos (nascente, poente) depende só do tempo e do lugar em que nos encontramos...  Voltando, quero dizer, àquela lembrança do abraço de Deus, como um manto sob o qual nos recolhemos, e que nos aconchega, carinho imaterial onde vamos esquecer frustrações, desilusões e dores, e repetir o sonho da esperança... E volto quase sem querer, quiçá só por um mais forte sentimento do tempo como circular circunstância nossa, ou roda da vida, algo que, em mim, a evocação do Japão sempre me traz. E   trouxe-me, hoje mesmo, outras memórias...

   Como a de um fado de Coimbra que cantava:

 

             Ave Marias são beijos,

             Padre Nossos são abraços,

             rosários os meus desejos,

             a cruz é abrir os braços...

 

             De rezar beijos e abraços,

             e desejos, estou cansado...

             Abre depressa os teus braços:

             quero ser crucificado! 

 

   A minha longa estadia no Japão  --  apesar de dever viajar, com muita frequência, da Coreia à Nova Zelândia, não só passando, mas parando, sentindo um pouco de tudo  --  foi sendo um tempo diferente, e único, de meditação, silêncio interior. Não quero ser ousado, muito menos  temerário no juízo, mas aquilo, o tal Oriente, que nos diziam ser misterioso, mítico, assombrador, revelou-se-me, singelamente, como um modo (vários modos) outramente tranquilo dos homens na sua circunstância... Aquele ser diferente não me assustou, menos ainda me afugentou. Tampouco me levou a qualquer voluntariosa consciência da superioridade da minha cultura, das crenças em que fui criado, das circunstâncias político-sociais em que cresci. Despertou-me a curiosidade, que é o primeiro passo do amor. Porque ser curioso, no nosso antigo sentido latino, antes de significar indiscrição ou indagação, é sinal de cuidado extremo, de aproximação ao outro e à sua verdade. Aliás, na nossa tradição evangélica, quem foi curioso, e quis saber do outro, foi o bom samaritano, o tal que foi ver e cuidou.

   Ora, a verdade de qualquer de nós, para quem nos quiser mesmo ver, se não for a do amor, só pode ser a  do desejo de destruir. Esta, e só esta, nas relações humanas, é a norma ética fundamental. Não tenhas medo das palavras, Princesa: só o amor é, pode ser, fundador de relações humanas. Afirmá-lo assim é definir um critério de convivência. E de moralidade. A letra de fado que acima citei  --  de cor e memória antiga  --  não é necessariamente blasfema, nem poderá sê-lo à luz do amor cristão. Poderá, é claro, ser só uma metáfora erótica, mas também pode ser tomada como convite místico à entrega pelo amor, a um ofertório de si. Qualquer relação humana é, inevitavelmente, um entendimento mútuo, no sentido de uma troca de olhares que podem estar carregados de amor, ou ódio, ou indiferença. O outro, como eu o entendo, surge ao toque do meu olhar. Escrevo esta frase e reparo que estive agora mesmo a escutar a ópera Siegfried, do Wagner, dirigida pelo Daniel Barenboim, no Festival de Bayreuth, em 1992. Trago ainda nos ouvidos  --  enchem-me o coração e a cabeça  --  a música e as palavras da cena final, que começa com Siegfried cantando Selige Öde / auf wonniger Höh´!, ó divina solidão em iluminado cume... Aí, um raio de luz o fará descobrir Brünhilde deitada, adormecida, vestida de armadura, como valquíria. Quando, para a aliviar, ele retira o colete de aço que cobre o peito dela, lança aquele grito de poderoso espanto: Das ist kein Mann! E não é um homem, não, é uma bela mulher que ele ousará despertar com um beijo nos lábios. Brünhilde abre os olhos e canta: Heil dir, Sonne! / Heil dir, Licht! / Heil dir, leuchtender Tag! Ave sol ! Ave luz ! Ave radioso dia ! E será novamente uma iluminação que ambos saudarão no fim, quando ela já decidiu renunciar à eternidade do Walhalla e tornar-se num ser humano e mortal, podendo assim entregar-se ao desejo de Siegfried que, aliás, ao descobri-la, encontrara a Mulher, e sentira medo! Vencido este pelo inconsciente poder de atracção de Brunhilde, também esta será vencida pela força do amor de Siegfried. Ambos poderão então finalmente cantar : leuchtende  Liebe! / lachender Tod!, esplendoroso amor, morte radiante!

   Esta carta, Princesa de mim, nada afirma ou nega, nem explica ou pretende explicar. E o que conta, mais não é do que um passeio, uma deambulação de mim, como quando me deixo perder num mar de corais...

 

                     Camilo Maria


Camilo Martins de Oliveira

 

Rose Ausländer: o caminho poético e a experiência do Holocausto na sua obra.

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Rose nasceu em 1901 e faleceu em 1988.

 

"Eu sou uma poeta, sim, sei isso; mas nunca quis ser uma escritora"
Para a autora judaico-alemã a poesia é uma forma mais funda que a escrita em si.

 

A escassez, o parco, o mínimo, o sussurro são características comuns entre muitos dos poetas sobreviventes da catástrofe, também chamados os Poetas da Escassez. Vemos isso em Rose Ausländer, assim como em muito da poesia de Paul Celan, que caminha para um quase emudecimento. Nestes poetas, o mínimo é uma necessidade intrínseca para a verdade da realidade dos sentires. É mesmo uma necessidade estética, julgo. É também a lucidez do WE POSSESS NOTHING, adágio tantas vezes repetido.

Quando Celan escreve sobre a voz e o canto dos prisioneiros nos campos de extermínio, naqueles seus pungentes poemas, claro se torna que a língua era tudo o que restava, tal como naquela história que se inicia com um senhor, que um dia fora um menino de 13 anos, que cantava para os nazistas a fim de sobreviver.

Vejo nestes poetas o que vejo em Rose Ausländer, também ela sobrevivente desta grande trgédia humanitária, vejo nela e sinto o abandono completo da palavra, e a adopção da prática de uma poética do respirar em que o material do poeta se torna no seu próprio corpo, direi, não recusando a sensibilidade que me transmitiu Henri Chopin poeta do movimento avant-garde a respeito da fisicalidade das palavras. Intuo em Rose a ligação à linhagem de poetas do mínimo e do parco no século XX, como na poesia da americana Lorine Niedecker.

Rose Ausländer nasceu em Czernowitz, na Bucovina, quando a região pertencia ao Império Austro-Húngaro, e a sua família estava ligada ao movimento judaico hassídico, forma de misticismo judaico surgido do interior do judaísmo ortodoxo, comunicando-se em alemão e iídiche, língua esta pertencente a um subgrupo germânico e adoptada pelos judeus que a usam em caracteres hebraicos. Depois da guerra, Rose abandona a língua alemã, passando a escrever em inglês e somente na década de 60 ela retornaria à Áustria e à Alemanha, voltando a escrever em alemão.

Entretanto Chernivtsi, passou a ser a conhecida cidade dos poetas mortos. Esta cidade ucraniana, desde há muito metrópole cultural, promove anualmente a herança sempre presente dos artistas judeus que escreviam na língua materna,e, por óbvio, Rose Ausländer não é esquecida.

Da editora espanhola IGITUR surgiu em 2014 uma tradução da poesia de Rose com a ajuda do Goeth-Institut e colaboração do Ministério dos Negócios Estrangeiros Alemão. Este livro que muito gostei de ler – Mi aliento se llama ahora – (y otros poemas) conta com um excelente prólogo de Helmut Braun que bem esclarece o quanto a obra de Rose tem sido estudada intensamente e inclusivamente em Portugal.

E de Rose Ausländer este acutilante, agudo e maravilhoso poema:

 

SEPARACIÓN

 

Te sapararás

de los magnólios

Y los jubilosos pájaros

 

de tu casa

Y las manos

que la hacen habitable

 

de la terca costumbre

de abrir los ojos

Y cerrarlos

cuando el sueño te llama

 

del

que te há creado

 

Te separarás

de tu sombra

que te acompañó toda

la vida a la luz

 

La Tierra se separará de ti

Y de tu amor por ella

 

 

Teresa Bracinha Vieira

2016

 

 

ATORES, ENCENADORES - LXIII

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DUAS IRMÃS CANTORAS E ATRIZES DOS SÉCULOS XVIII-XIX

 

Fazemos hoje um “retrocesso histórico”, para assinalar duas artistas de cena que marcaram a sua época: as irmãs Cecília Rosa de Aguiar, nascida em 1746, portanto há exatos 270 anos, mas cuja celebridade na época se deveu em grande parte ao facto de ser irmã da grande Luísa Todi, esta nascida em 1753 e falecida em 1833. Ignora-se o ano da morte da Cecília. Mas conhece-se bem a fulgurante carreira da Luísa, não tanto como atriz, que também o foi, mas sobretudo como grande cantora lírica de projeção europeia.

Ambas eram naturais de Setúbal. E pode já acrescentar-se que a cidade não desmereceu a homenagem a Luísa Todi. A toponímia da cidade e o Fórum Municipal com o seu nome significam uma tradição que, repita-se, no caso específico de Luísa, bem se compreende: foi uma das grandes cantoras do seu tempo a nível europeu.

É evidente que a música e o canto são, por definição, artes mais universais, digamos desse modo. É mais fácil uma carreira internacional na música do que no teatro... E não falamos obviamente no cinema!

O certo é que Cecília e Luísa fizeram ambas carreira no teatro declamado. Ambas terão estreado no Teatro do Conde de Soure, por alturas de 1777, possivelmente com o “Tartufo” de Molière. A ser verdade, constitui um dado interessante no que respeita a uma certa internacionalização do espetáculo teatral na época.

No que respeita a Cecília, Sousa Bastos, no seu sempre citável “Diccionario do Theatro Português” (1908), remete para o Teatro do Bairro Alto o período mais destacado da carreira como atriz. Evoca concretamente a participação em peças de Voltaire e de Nicolau Luís da Silva: e pode agora recordar-se que, na época, Nicolau Luís foi um nome de primeiro plano não tanto como dramaturgo, mas como empresário, precisamente do Teatro do Bairro Alto.

Por seu lado, Inocêncio F. da Silva, no ”Dicionário Bibliográfico Português” (Tomo I) cita José Maria Costa e Silva, o qual traça de Nicolau Luís um retrato no mínimo pitoresco: “Morava no fim da rua da Rosa, toucado com uma cabeleira de grande rabicho, que ninguém viu na rua senão embuçado em capote de baetão de toda a roda, notável pelo desalinho e desmazelo do seu vestuário, trazendo consigo um grande cão de água que o acompanhava sempre, e sorvendo repetidas pitadas de simonte com toda a placidez e majestade catedrática”, assim mesmo!...

Ora bem: este Nicolau Luís, empresário do Teatro do Bairro Alto onde Cecília atuou, produziu centenas de títulos, entre traduções e adaptações, para alimentar o Teatro: mas original, só terá escrito a peça “Os Maridos Peraltas e as Mulheres Sagazes”, editada no chamado Teatro de Cordel – edições avulsas que, segundo recordou Nicolau Tolentino, “no Arsenal, ao vago caminhante/ Se vendem a cavalo num barbante”…

Note-se que Cecília Rosa surge também como intérprete de ópera: Mário Moreau, no volume I do estudo sobre “Cantores de Ópera Portugueses” (1981), refere que Cecília alternava atuações de canto e de declamação” e descrimina verbas pagas à cantora-atriz, assinalando que, a partir de 1769, -1770, “as condições modificaram-se para pior, o que se deve certamente à necessidade de comprimir despesas, dados os habituais défices do teatro” (pág.30).

Do mesmo não se deveria queixar a irmã Luísa: a sua carreira como cantora de ópera, iniciada em Lisboa em 1771, prolonga-se até 1799, com atuações e longas permanências em França, Alemanha, Itália, Espanha, Rússia, tendo cantado na corte de São Petersburgo a convite de Catarina II e também a convite do Imperador na corte de Frederico II da Prússia. Faleceu, cega, em 1833.

Cito, para terminar, o livro sobre “O Teatro Nacional de São Carlos” (Lello e Irmão, ed. 1992 – pág.7), da autoria de Manuel Ivo Cruz (meu irmão):

“Entre outros, os teatros do Bairro Alto (depositário da tradição popular das óperas em vernáculo de António José da Silva – António Teixeira), da Rua dos Condes (reconstruído em 1769) e do Salitre (inaugurado em 1782) mantiveram uma intensa atividade, não obstante a precaridade das instalações, más para os artistas e para o público. No entanto, até a própria família real os frequentava com assiduidade, e artistas como Luisa Todi, sua irmã Cecília de Aguiar, Maria Joaquina, Ana Zamperini, Marcos Portugal e tantos outros, lá trabalharam e projetaram-se definitivamente na história da nossa cultura”.  


Duarte Ivo Cruz

 

LONDON LETTERS

 

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The golden global BAFTAs, 2016


And The British Academy Film Award Goes To....
O bom momento das indústrias criativas no reino cintila forte no atlas cinéfilo, com a inteligência, beleza e ironia do talento sem fronteiras. A Royal Opera House acolhe os 69th Annual BAFTAs e Convent Garden

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transforma-se em imenso palco de sonhos no ano 400 de Master Will Shakespeare. — Chérie. Chacun est artisan de sa fortune! O desaparecimento do Justice Antonin Scalia abre épica frente de batalha nos USA entre republicanos e democratas, quanto ao futuro do Supreme Court. A morte do juiz nomeado pelo President Ronald Reagan, em 1986, debilita ainda o movimento global conservador, pela perda da fonte inspiradora do “originalismo jurídico.” — Hmm! You should not judge a book by its cover. O teatro do mundo oferece outros tópicos de interesse. Na corrida à White House, Mrs Hillary Clinton e Mr Donald Trump lideram as sondagens nos caucuses de South Carolina quando a campanha get personal. Dos iniciais 17 candidatos no GOP restam 6, com o establishment agora mais apostado em ressuscitar o Crown Prince Jeb Bush. Num abraço ao Patriarch Kirill extingue Pope Francis um milénio de questões bizantinas. O achado das gravitational waves atesta a relatividade de Mr Albert Einstein e prediz Nobel Prize para o observatório Ligo do Louisiana. O Prime Minister David Cameron viaja para Paris, na tentativa de fechar o EU reform package antes do European Council Summit desta semana.

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Cold, colder and windy showers days em London. As ruas de Covent Garden, West End, Soho e Mayfair agitam-se com a red carpet dos 69th British Academy Film Awards, naquilo que o Daily Mirror bem titula como “A Titanic Night.” Traduzindo, sem abarcar o ambíguo charme do apresentador Mr Stephen Fry: os 2016 BAFTAs dos melhores atores vão para o duo que protagoniza o famoso blockbuster movie de 1997. Vencem Mrs Kate Winslet (em Steve Jobs) e Mr Leonardo DeCaprio (The Revenant), numa edição dominada pela película dirigida por Mr Alejandro G Inarritu. Abrindo rota para os Oscars de Los Angeles, a dark story do renascido soma aqui três prémios maiores ‒ Best Picture, Best Director e Best Actor. Especial referência merece Sir Sidney Poitier que, aos 88 anos, sob aplauso de Dame Maggie Smith, recebe a Bafta Fellowship com justíssimo Lifetime Achievement Award. Louvor privado vai para Mr Levente Szabó, ilustrador dos fabulosos programas da cerimónia (que abaixo se dá exemplo com a capa de Bridge of Spies). A dizer da influência cultural deste evento emerge entretanto novo dictum na Tweetminster, acerca do candidato conservador a Mayor of London: "Zac [Goldsmith] is the political Judi Dench – good on film, breathtaking on stage."

Westminster District permanece focado no euroreferendo, com divisões na ala dos Brexiters e no Tory Party, aquela por falta de liderança e este devido a um disputado legado thatcheriano. O

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último caso é duplamente curioso. A um tempo, porque aparecem políticos respeitáveis a reivindicar qualidades mediúnicas sobre o sentido do voto que Mrs Maggie Thatcher daria ‒ se vivesse. A outro tempo, e mais singular, porquanto durante décadas ouvi em situações dilemáticas do género a questão “What would the good old Winston say/do?” Pois bem, o fraseado dispõe de novel heroína. Temendo que as Houses of Parliament estejam assombradas, quiçá, eis ainda o Prime Minister a tentar o reframing do seu EU New Deal, fora de portas, após generalizada reação negativa que fez disparar o Brexit. RH David Cameron apresenta em Germany a visão londrina para uma European Union mais coesa mas necessariamente reformada, escoltada até por “a sucessfull Eurozone.” Falando no St Matthew’s Day Banquet em Hamburg, cidade berço de Herr Helmut Schmidt, recorda a comum tradição hanseática das open nations para sublinhar uma fundamental comunalidade com o Great German Chancellor. Afirma, preto no branco, tanto o “Britain's right to protect its sovereignty” quanto que “Britain would continue to stand alongside Germany in leading the way.”

Velho hábito, allways good for moral and intellectual support, conduz-me aos BBC Archives. Desta feita partilho um memorando assinado por Mr Guy Burgess, nenhum outro senão um dos infames

Untitled 5.jpgCambridge Four Spy Ring. Comprovadamente, Hicks ou Mr Guy Francis de Moncy Burgess (Devon 1911‒Moscow 1963) passa informações à USSR durante a II World War e a alva da Cold War, a par de Mr Donald Duart Maclean (codename: Homer), Mr Anthony Blunt (Johnson) e Mr Kim Philby (Stanley). O enigma da identidade e das atividades danosas dos espiões soviéticos por cá recrutados nos 30s mantém pontas soltas, sabendo-se da sua atenção pela aliança atlântica. O fascínio inteletual pela ideologia (que hoje retorna) diz de alguém descritível pela quintessentially classic education: filho de um comandante da Royal Navy, Burgess estuda em Eton, Dartmouth Naval College e no Trinity College da University of Cambridge. Ora, o documento de 1938 relata encontro difícil. “Mr. Churchill complained that he had been very badly treated in the matter of political broadcasts and that he was always muzzled by the B.B.C. I said I was not myself in possession of the facts and, in any case, had nothing to do with such matters,” lê-se num Internal Circulating Memo. Datilografado à máquina, o documento doa retrato de WSC na long wild decade em que, quase só, se opõe à política oficial de apaziguamento com o regime nazi hegemónico na política europeia. — Well! Think about Master Will in Macbeth: This life, which had been the tomb of his virtue and of his honour, is but a walking shadow.

 

St James, 15th February
Very sincerely yours,
V.

 

A VIDA DOS LIVROS

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De 15 a 21 de fevereiro de 2016

 

«Os Doze de Inglaterra» de Eduardo Teixeira Coelho (Gradiva, 2015), que acaba de ser publicado com a inexcedível qualidade do apoio técnico e artístico de José Ruy, é uma merecida homenagem ao mais internacional dos desenhadores portugueses de Banda Desenhada, quando se celebram os 80 anos de «O Mosquito».

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UMA OBRA-PRIMA ATÉ AQUI SEM ALBUM

Eduardo Teixeira Coelho, ETC (1919-2005) é uma referência na história europeia e mundial da BD, como é reconhecido pelos maiores especialistas. Começou a colaborar no «Sempre Fixe», com apenas 17 anos e a partir de 1943 vem-lo nas páginas de «O Mosquito», ao lado do argumentista Raul Correia. Aí assina «Os Guerreiros do Lago» (1945); «Os Náufragos do Barco sem Nome» (1946); «Falcão Negro» (1946-49); «O Caminho do Oriente» (1946-48); «Sigurd, o Herói (1946); «A Lei da Selva» (1948); «Lobo Cinzento» (1948-49); «A Torre de D. Ramires» (adaptação de Eça de Queiroz, a que se seguirão outras); «O Defunto» (1950); «O Suave Milagre»; «Os Doze de Inglaterra» (1950-51» e «A Ásia» (1952). O «Cavaleiro Andante» foi também beneficiário de belas mas esporádicas ilustrações de ETC. Com a interrupção da saída de «O Mosquito» (1953), Coelho decide emigrar para França, onde usa o pseudónimo Martin Sièvre e colabora no semanário «Vaillant» (e depois em outros, como «Pif Gadget») até 1970, com «Ragnar, o Viking»; «Till Ulenspiegel»; «Davy Crockett»; «Wango»; «Yves, le Loup»; «Robin du Bois»; «Le Furet»; «Ayak» e «Erik le Rouge». É este o período de maior afirmação internacional de ETC, com generalizado reconhecimento dos conhecedores e especialistas. Em Portugal, foi o «Mundo de Aventuras» que publicou em tradução algumas dessas obras. A partir de 1970 trabalhará em Itália, sendo premiado com o galardão «Yellow Kid» no festival de Lucca. Como salienta o editor Guilherme Valente, é a primeira vez que os admiradores do mestre «vão poder apreciar na íntegra uma das obras mais belas que desenhou». Pela primeira vez estas pranchas são publicadas em álbum, sem as amputações que «na sua edição original sacrificaram, frequentemente, a integralidade do desenho ao espaço ocupado pelo texto de Raul Correia (…), numa edição que só foi possível pela arte, o conhecimento e o empenho de outro grande criador da banda desenhada portuguesa, José Ruy».

 

UMA HISTÓRIA CAVALHEIRESCA

Estamos perante uma história de cavaleiros, passada na Europa medieval, que tem a ver com 12 damas inglesas ofendidas por doze nobres ingleses, que alegavam não ser elas dignas do nome de damas, pela vida que supostamente levavam. Perante tão ignóbil afronta, as doze damas pediram ajuda ao Duque de Lancastre, João de Gante, que tinha combatido na Península Ibérica ao lado de D. João, Mestre de Avis – tendo sido por este indicados os cavaleiros portugueses que poderiam reconquistar a honra ameaçada das donzelas. Eram eles: Álvaro Gonçalves Coutinho, o Magriço (verdadeiro herói desta série); João Fernandes Pacheco (filho de um dos matadores de Inês de Castro) e seu irmão Lopo Fernandes Pacheco; Álvaro Vaz de Almada (que seria 1º Conde de Avranches); Álvaro Mendes Cerveira; Rui Mendes Cerveira; João Pereira da Cunha Agostim (parente de Nuno Álvares); Soeiro da Costa; Luís Gonçalves Malafaia; Martim Lopes de Azevedo; Pedro Homem das Costa e Rui Gomes da Silva – constando ainda que o rei indicou ainda Vasco Anes da Costa, o Corte-Real… Cada uma das damas escreveu a cada um dos doze cavaleiros e até a D. João I, acrescendo ainda o pedido do Duque de Lancastre. Onze cavaleiros seguiram por mar, mas um deles, o Magriço, querendo demonstrar maior valentia, decidiu ir por terra para «conhecer terras e águas estranhas, várias gentes e leis e várias manhas». Quando se atingiu o dia do torneio, o Magriço não chegara, para desespero dos companheiros e da dama que coubera a Coutinho, que já antecipava a desonra. No entanto, no último momento, Álvaro Gonçalves Coutinho apareceu, na sequência de mil aventuras e glórias, e permitiu que a honra das damas fosse salva. O episódio vem relatado, como sabemos, por Fernão Veloso no Canto Sexto de «Os Lusíadas», pouco antes da chegada a Calecute, mas Eduardo Teixeira Coelho foi busca-lo a António Campos Júnior, nas suas invocações da «Ala dos Namorados» (Edições Romano Torres, de 1905), já que o «Magriço» pertencera ao grupo de destemidos e jovens cavaleiros que intervieram na Batalha de Aljubarrota – e por quem D. João I tinha especial apreço.

 

A SOMBRA DE H. FOSTER

Como está documentado na apresentação do álbum, a obra foi totalmente remontada e, se era já uma obra-prima, fica como uma preciosidade gráfica. Nota-se a influência de Harold Rudolf Foster (1892-1982), o célebre autor do Príncipe Valente, criador da figura em 1937. Em bom rigor, esta longa série de 112 pranchas refere-se não tanto aos «Doze de Inglaterra», mas ao mais célebre deles, o Magriço. ETC escolhe um herói, à maneira romântica e como fez H. Foster. Entre a partida de Portugal e a chegada a Inglaterra, temos um conjunto de episódios que revelam a valentia e a eficácia do Magriço, à semelhança do Príncipe Valente. Seguindo o mesmo método de Foster, Eduardo Teixeira Coelho também não utiliza os balões nesta série. Enquanto o tema de Foster corresponde ao período compreendido entre o final do Império Romano e o início da Idade Média – integrando-se no ciclo bretão, que envolve, na tradição céltica, o rei Artur, os cavaleiros da Távola Redonda, Camelot, Merlin, Tristão, Laçarote do Lago etc.. O sucesso ficou a dever-se à referência histórica e ao culto individual do sucesso e do heroísmo… Não por acaso Teixeira Coelho escolhe um tema com semelhanças, que tem a ver com o início da dinastia de Avis e com o facto de a Mãe da Ínclita Geração e dos Altos Infantes ser uma Lancastre – tendo o seu casamento com D. João I dado origem à mais antiga das alianças no mundo. «Os Doze de Inglaterra» são o pretexto para enaltecer o Magriço, como Campos Júnior também faz, mas a propósito da «Ala dos Namorados» e das suas façanhas. O que ETC aqui nos apresenta é um conjunto de façanhas do Magriço. Pode dizer-se que o mestre atinge aqui a sua maturidade, que corresponderia ao seu momento mais fecundo e de mais nítido domínio da difícil arte da BD. Há uma articulação perfeita entre o ritmo da aventura, a apresentação das imagens, que se sucedem a um ritmo cinematográfico (que o seu autor desejava), o movimento, a intensidade da identificação e a representação das personagens. Com uma personalidade estilística muito marcada, o certo é que as reminiscências de Foster constituem uma marca de qualidade indiscutível. Se a influência é percetível, o certo é que ETC cedo se liberta das amarras de um qualquer seguidismo, demonstrando a sua própria originalidade, que o torna (como no caso dos maiores artistas) um caso excecional de originalidade. Os críticos têm concordado com o facto de a maturidade de «Os Doze de Inglaterra» corresponder a uma fase de grande domínio do traço e do seu sentido dramático pelo autor, por contraste com o tempo da grande produção em França (ou em Itália), onde se nota uma maior atenção ao pormenor e menos à encenação dramática e à força do talento artístico.

 

Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões - Ensaio Geral, Rádio Renascença

 

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

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   Minha Princesa de mim:

 

O Japão é assim: tem segredos nas belezas expostas, que nos fascinam por dentro. É o inei raisan, o elogio da sombra. Nada é tão bonito como o que vemos por dentro. Silencia-se o que mais se sente. Assim também um dos nossos monges cartuxos escuta. Certa vez, estava eu por lá, uma amiga japonesa, natural de Matsué, sobre o mar do Japão, que foi terra e castelo (ainda erguido) dos Matsudaira, linhagem dos Tokugawa, e mausoléu de muitos deles, sítio também dum dos mais antigos santuários shinto, perguntou-me de que gostava eu mais: se do sol nascente, se do poente. Nada aí tinha a ver com conversa ou intenção "romântica": estávamos em Tokyo, em vésperas de Ano Novo, onde o sol nasce do mar, nessa costa leste do arquipélago nipónico... Mas, em Matsué, na costa ocidental, é no mar que o sol se põe. O que a minha querida amiga quis saber  --  ela que era produtora e realizadora de televisão e fizera um dos mais belos programas sobre Portugal que eu tivesse visto  --  era a espontaneidade ou a fidelidade da minha esperança. Da esperança como virtude de qualquer fé. Quem vê, à data do parto de um novo ano, por alturas do solstício de Inverno, o sol que do mar se levanta sobre o Império do Sol Nascente, deve necessariamente comover-se. Sobretudo se tiver cumprido o ritual shintoísta da prece noturna que chama procissões infindáveis de milhões de pessoas aos santuários, a pedirem Ano Bom. Ao despontar do dia novo, alguns estarão até no Fuji, muitos em lugares altos ou sagrados, para a primícia da saudação do soberano astro. Já antes, como nas nossas consoadas de Natal, se tinham reunido as famílias, em ceia litúrgica. O sol, respondi, é como a vida, é sempre uma promessa: surge onde o vemos primeiro, esconde-se quando já não conseguimos agarrá-lo. Vemo-lo partir, e só a noite dará sentido à nossa esperança: sentimo-lo caloroso e amigo, parece, depois, que nos deixou, mas acreditamos que ele há-de voltar. O tempo é circular, como o mundo. E Deus é um enorme abraço. Fiquei a pensar se será sempre preciso ser "escatológico" para se ser "religioso".  De que nos serve pensarmos demais em exames e castigos, no terrível e temível dies irae, quando Nosso Senhor, afinal, talvez antes nos esteja chamando a recolher rebanhos pela calada final da tarde, e a mantê-los mansos e seguros até ao erguer do novo sol... E, se em noite sossegada morrermos, sem ódios, nem raivas, nem desprezo, indiferença ou esquecimento voluntário, quiçá despertemos inundados de luz... Rezo por nós, Princesa,

                                                     Camilo Maria

 

 

Camilo Martins de Oliveira

A FORÇA DO ATO CRIADOR

 

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A Casa da Cultura da Juventude de Beja
de Raul Hestnes Ferreira

 

Em 1975, Raul Hestnes Ferreira (1931) iniciou o projeto da Casa da Cultura da Juventude em Beja (1975-1985).

Hestnes Ferreira ao desenhar a casa da juventude num importante espaço urbano pretende ligar o centro da cidade, de textura contínua, a um arrabalde de vivendas. Evoca a variedade da cidade e transforma um objecto de programa singular em símbolo – pela situação na cidade, por fazer paisagem, por revelar novas virtualidades com a implantação de massas, direções, ritmos e perenidade. A centralidade e a importância do edifício ao ser visível de todos os lados fez com que fosse concebido como se de um quarteirão único se tratasse – e a simetria ordena o conjunto.

O programa é único e foi elaborado logo após o 25 de Abril de 1974. Hestnes Ferreira pensou a obra de modo a ser capaz de se identificar com uma comunidade e de ser interpretável – já não se afirma uma obra só pela razão, as especificações locais e a história são elementos indispensáveis de projeto. A obra relaciona-se com a noção de monumento, com a tentativa de construir a duração eterna através de uma forma elementar e estável. Para ser reconhecível, à casa da juventude foram associadas, características de grandeza e valor de excecionalidade com dimensão, distinção, proporção, expressão e ordem.

O tratamento do conjunto é feito por volumes organizados – é evidente o diálogo de formas complementares (da curva e da recta) que dinamiza toda a obra. Cada espaço interno é individual. As fenestrações, de caixilharias azuis e amarelas, são todas diferentes evidenciando a singularidade de cada espaço. As fachadas, brancas e lisas, variam pelas suas extensões em forma de pátio, de anfiteatro, de pórtico, de terraço e de praceta. Hestnes restaura o valor hierárquico e funcional de uma parede, de um pilar, de uma cobertura abobadada, de uma janela, estudando a sua relação com o espaço. As formas estão hierarquizadas e evidenciam a diferença entre espaços, materiais, luz e sombra. Agora o espaço já não é fluído como Le Corbusier anunciava, desenham-se antes formas parciais com características próprias (de geometria, de matéria, de cor, de textura, de estrutura). As vinte abóbadas vermelho-barro são os elementos de exceção e esclarecem a existência de um local de reunião por excelência.

O complexo é polivalente contendo um espaço central (quase) cúbico coberto pelas quatro cúpulas maiores, rodeado por espaços fragmentados com funções específicas (ateliers de cerâmica, de fotografia, salas destinadas ao ensino da música e serviços diversos) a que sobrepõem as dezasseis cúpulas menores. O espaço central está desenhado de maneira a permitir o encontro e a reunião – três degraus de bancada servem para as pessoas se sentarem em roda. A sul do espaço central situa-se o palco, ambivalente, aberto por sua vez a duas bancadas ao ar livre construídas em semicírculo, afirmando um prolongamento externo que estabelece relações urbanas.

A arquitetura da casa da juventude não é feita à luz de uma teoria, os problemas são reais – é reflexão sobre a tradição da arquitetura portuguesa, sensível à singularidade popular. É assim de referir a importância da publicação do Inquérito à Arquitetura Popular em Portugal, ainda na década de 60 mas que proporcionou conhecimento acerca da construção – nomeadamente da construção de abóbadas de tijolo no Alentejo com as mãos e sem cofragem. Pretende-se sobretudo revelar na obra o entendimento da cultura local (parâmetros técnicos e plásticos), associadas a possibilidades técnicas contemporâneas. As abóbadas tradicionais são reminiscências de formas construtivas do sul. O interior das abóbadas revela um singular arrumar do tijolo, tendo no cimo um pequeno lanternim em vidro e ferro pintado de azul.

Através dos ensinamentos de Louis I. Kahn (com quem colaborou em Filadélfia de 1963 a 1965), Hestnes busca pela essência, procura pelo que a construção deseja ser. Tal como Kahn, Hestnes revê o moderno – que pretendia ser intelectual, internacional, resistente ao gosto estabelecido e às convenções – para expressar vontades institucionais e comunitárias. Reclama o olhar para o monumento. Kahn trouxe de novo a história como referência, porque as formas do passado têm os valores eternos, universais, padrões enraizados na memória do espírito. A escolha das técnicas artesanais revela igualmente o pensamento de Kahn. Tal como nas obras de Kahn Hestnes manipula conjuntamente a entrada da luz natural e a estrutura e obtém arquitetura – a introdução de pátios reforça a iluminação natural interior. Hestnes Ferreira, evoca Kahn ao projetar a casa da juventude através do desejo de criar uma comunidade, um lugar que possa dar abrigo à reunião, à aprendizagem, à expressão e à reflexão.

O discurso de Hestnes Ferreira na casa da juventude é consistente, estruturado e espiritual – advinha-se o contraste luminoso das superfícies, a fenestração das superfícies faz eco à arquitetura local, adequada ao clima. As variações formais são adaptadas às circunstâncias locais, integradas numa continuidade.

 

Ana Ruepp