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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

PERÍODOS NA CRIAÇÃO CAMILIANA

 

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Recordo o Professor do Liceu Camões e vogal da Junta Nacional de Educação, António do Prado Coelho, que numa edição de Manuel Barreira de1950, expõe o seu estudo crítico sobre a obra de Camilo. Registei particularmente a atenção dada à evolução de Camilo relacionada com o seu conceito de heroísmo, longo e conturbado período. Entendi aquela maneira romântica de conceber homem e vida, ambas dominadas por forças divinas que exaltam a visão de grandeza que exclui o comezinho, pois este é o que decepa o berço de onde se ergue o herói.

Julgo ter entendido que nesta perspectiva existe uma radical transformação de valores e de transcendências e emancipa-nos do que é baixamente terreno, e nos expõe às proporções de um destino com significação superior que se impõe ao artista, ao ser que determina em si o eu num método de visão que se impõe obstinadamente a si mesmo. Daqui resulta que, este eu , é o único capaz de fazer surgir o herói a todo o homem de boa vontade e deixando à nossa consideração descortinar o pseudo-herói que não é mais do que o ser que a si mesmo se burla.

Afinal, recordo Kierkegaard, para quem demandar o heroísmo, é ser capaz de «viver na ideia», isto é, de viver a vida em plenitude de sacrifício pelo bem de outrem e se coloque à prova sempre, e faça desse trabalho a sua marca distintiva. Por esta reflexão me surge aquela desesperante impotência sem remédio, aquela estagnação no homem, bem mais capaz de acções fragmentárias e de fugas a si mesmo opondo uma filosofia prática e pragmática até, à luz da qual encontra o seu heroísmo, afinal tão diferente daquele que tentámos definir com um grau de pureza não patética. Assim, quando é que o homem deseja e concretiza o superar-se a si mesmo?, honrando eventuais movimentos volitivos coordenados e harmónicos, não tendo na busca a herói tanto lixo acumulado de qualidades negativas que em si as não detecta.

Julgo que em Camilo e porque não, naqueles todos que se acham diferentes, pode bem caber um largo tempo de vida que corresponderá ao período do orgulho, do exagero deste no inferno e no céu da confusão em que o homem se sangra a si mesmo. A verdade é que nem mesmo o trabalho incessante é criatividade ou originalidade inventiva e rebelde. Nem mesmo o amor deixa de ser uma vontade de comando, afinal tão distante do que nele é ser herói, e herói não por submissão ao que acontece, mas antes por pretender excesso de significado sofrido a um período da vida em que só a humildade é força no beijo.

E é assim, talvez deste modo, que nos surge em 1862 o Amor de Perdição, por mim visto como fecunda promessa de criações futuras. E não é o sentido trágico do herói que detectamos aqui com possibilidades de esclarecer o que quer que seja; de resto, a galhardia da bandeira que se transporta no sofrimento pode ser mera expiação. Paira sim, e não se deixe escapar, aquela nuvem que afirmamos longe de nós e se cola à pele e de onde a viu Pascal e logo disse «somos incapazes quer de certeza, quer de felicidade».

Encontramos agora um outro Camilo que perante a dor se curva reverente e não entende sequer a indiferença dos homens quer à dor quer à morte. Sabe sim, que para a morte se avança sempre, que os planos divinos já não triunfam por si em heroicidade e fé. Recolhe-se e concretiza que a humanização da dor fá-la perder majestade.

E diz-nos o professor da Universidade de Genebra, Georges Mottier «só com a chancela do pensamento criador se pode crescer»

Permitam-me que acrescente um segredo que seguramente Camilo conheceu pelas palavras do herói e do pseudo-herói:

para criar temos de interpretar, relacionar, distinguir, escolher, formar a ideia, isto é intuir sobre o que poderíamos denominar o sentido da vida e nela, sobretudo, o que preside à variabilidade, à mutação, ao conteúdo poético do motivo, que afinal existe , e de primeira linha, de primeira integridade.

O herói afinal comove-se com ele mesmo, atribui-se o julgamento da justiça e de um modo ou de outro fecha assim o coração à aurora de um mundo que ficará por viver. Os outros, enfim, não se cansam de espreitar, investindo-se de pertença magnanimidade. E os outros dos outros e como outros? Poderão ser o embrião de uma diferente criatura?

Os amores heróicos dos deuses gregos com humanos poderão ser a tentativa destes deuses viverem o amor sem o amparo da eternidade. Mas a Noite, o Jogo, a Coisa é o que nos defronta sempre na obstinação do seu silêncio, e nós schopenhaurianos, cheios de perguntas heroínas, cheios do Nada de onde brotam as razões que nos entendam.

Este o meu período de hoje na criação Camiliana, entre mundos e ideia de passagem.


Teresa Bracinha Vieira
2016

LONDON LETTERS

  

A Burkean duty, 2016-18

A inquirição é simplesmente deliciosa. Frente a frente no Treasury Committee estão o chair RH Andrew Tyrie ladeado de 10 MPs face ao depoente RH Boris Johnson. O Mayor of London presta oral evidence sobre “The economic and financial costs and benefits of UK membership of the EU.” Desde logo surpreende a etiqueta parlamentar: Chair ‒ "I do not know whether to call you Boris or Mr Johnson. (...) I suppose I could call you Mayor." / BJ ‒ "Boris is fine, Mr Tyrie."

Depois ressoa a persistência nas sondagens: ‒ “You are not keeping an eye on the opinion polls?” Por fim seduz o posicionamento da estrela dos Brexiters: ‒ “No, we have a Burkean duty.” — Chérie. Bonne volonté est réputeé pour le fait. Ainda mal refeitos do choque pelos atentados em Paris e novos bombistas suicidas cravam a morte no coração europeu. Brussels chora hoje os seus mortos, tal como ontem New York, Madrid ou London, enquanto o resto da European Union interpela os power games em torno da emigração e das fronteiras. — Hmm! Accidents will happen. O exército sírio reconquista Palmyra ao Isis e os arqueólogos avalizam que a gesta destruidora dos jihadistas na Hadrian city é reversível. Mr Donald Trump e Mrs Hillary Clinton somam e seguem na White House Race. O candidato republicano com terras em Scotland diz que o UK prepara a Brexit e declara reino e continente como "not safe places." O US President Barack Obama dança ousado tango em Buenos Aires; os Rolling Stones dão concerto histórico em Havana. O Thames recebe as 2016 Boat Races.

 Still stormy weather em London. A tempestade Katie comparece com high winds nas festas pascais e semeia danos, dificuldades e afazeres extra para as counties’ fire brigades. Os céus entram já em acalmia, mas o mau tempo traz drama adicional quer ao Molenbeek Problem em Belgium, quer à Oxbridge rivalry no Thames que por cá tematizam as conversas. As tradicionais boat races atraem todas as atenções nas margens ribeirinhas, este Sunday, desde as pontes de Putney e Hammersmith às de Barnes e Chiswick. A emoção cedo vai ao rubro. O batel feminino da Cambridge University mete tanta água que mobiliza meios de socorro para o circuito rápido de Middlesex. Assim garante comentários jocosos e o triunfo das Oxford girls. Os remos equilibram depois, até com dispensa de intervenção do Honest John ao longo do curso das quatro milhas, dada a vitória desafogada dos Cam boys

Águas rápidas também em Whitehall. Os Tories permanecem ocupados com a gestão de danos pela surpreendente demissão de RH Iain Duncan Smith do HM Government. Um subproduto é a latente insurreição em matéria do euroreferendo, do grupo parlamentar às local grassroots, com os 140 MPs do Leave EU a posaram para a posteridade junto às Houses of Parliament. Para não destoar, igualmente o Labour e o UKIP revelam sinais de fragmentação às portas das 5th May elections. Se a direção partidária de RH Nigel Farage suspende Mrs Suzanne Evans, tão só a autora do programa eleitoral e potencial candidata dos Ukippers à London Assembly, por razões procedimentais menores, o Lab antes se embrulha numa mal explicada “loyalty list” dos seus backbenchers, arrumados por mão obscura segundo categorias de neutrais a hostis à orientação de RH Jeremy Corbyn. Resume o Prime Minister: “I thought I had problems!”

Na House of Commons, todavia, multiplicam-se as preocupações para a maioria conservadora. A incomodidade gerada pelo 2016 Budget marca presença dentro e fora da câmara, com os protestos e a agitação sindical a regressarem a Westminster City. O Premier deita água e algum bicabornato na fervura. Em pleno Parliament, após um longuíssimo e turbulento fim de semana de duros ataques e contra ataques mediáticos entre apoiantes de um e outro, Sir David Cameron acaba a elogiar o contributo político do seu ex ministro e agora arquirival RH IDS. O atual e anterior líder dos Tories têm confrontos agendados para as semanas da campanha referendária, mas o fogo inicial da resignação é debelado quando já chamuscava um rapidamente discreto Chancellor of The Exchequer. Ora, missing in action durante os dias mais quentes do debate, RH George Osborne introduz quer polémicas pautas fiscais no reino, quer novel jogo em Whitehall: “Where is Ozzie?”

Bem humorada é ainda a intervenção na Lower House de outro dos tenores dos Conservatives. O Chair do Committee qualifica mesmo a audição de “busking, humorous approach,” aliás, em contraste com a pose que Mr Tyrie doa “to a very serious question for the United Kingdom.” Pois das muitas horas do testemunho prestado por RH Boris Johnson MP retêm-se dois factos. O Mayor de London é um natural candidato à sucessão do PM no partido e em Downing Street. No capítulo dos Eurosceptics at war avulta o entendimento por ele verbalizado de a European Union viver “the intensification of the dominance of Germany.” À reação imediata explorando discrepâncias escutadas na Thatcher Room, logo decorre polifonia de punctos contra puntum. O Johnsonian verb encontra contravapor mediato no Bank of England e no alerta de perigo maior que a eventual Brexit acarreta para a estabilidade financeira nacional. Caso tal não baste em torrente de fear, doom and gloom, a Education Secretary RH Nicky Morgan aponta entretanto para o risco de a "lost generation" caso Britain vote a saída da EU. No mais do voto de 23rd June: Only 86 days to go…

Perante o agitado perfil das elites políticas domésticas, nem sempre por melódicas razões, nota final para o Pope Francis. Uma mega sondagem da WIN/Gallup International indica o Holy Father como “more popular than any political world leader.” A opinião mais altamente favorável ao líder de Rome é recolhida entre católicos e judeus, sendo estes secundados por mais de metade dos protestantes e quase outro tanto dos ateus e agnósticos. Hmm! Think about what Master Will says in “The Life and Death of King John:” Strong reasons make strong actions: let us go: / If you say ay, the king will not say no.

St James, 28th March                  

Very sincerely yours,

V.

ATORES, ENCENADORES (LXIX)

  

HENRIQUE LOPES DE MENDONÇA ORIENTADOR DA CENA E DA INTERPRETAÇÃO

A preparação de uma edição de Teatro Escolhido de Henrique Lopes de Mendonça leva-me a questionar a potencialidade de espetáculo dos textos de teatro e a maior ou menor intervenção e orientação do próprio dramaturgo na respetiva realização cénica. Apetece então lembrar a fundação do teatro-espetáculo português, quando, em 7 de junho der 1502, um “pastor” penetra “aos arrepelões” e “à punhada” na Câmara onde a Infanta D. Maria, mulher de D. Manuel I dera á luz o futuro D. João III.

Sabemos que o “pastor” era Gil Vicente “trovador e mestre da balança” e o “Auto da Visitação” ou “Monólogo do Vaqueiro” formaliza um fundação do teatro português, peses embora os antecedentes já então concretizados por exemplo por Henrique da Mota, hoje esquecido. Isto, para dizer que qualquer texto de teatro tem necessariamente o potencial da sua realização de espetáculo, ou então não é teatro, é prosa ou poesia dialogada... Só que há dramaturgos que melhor ou pior alcançam e potenciam essa dimensão de espetáculo.

Vem tudo isto a propósito de um estudo que efetuei sobre o teatro de Henrique Lopes de Mendonça, autor da letra do Hino Nacional A Portuguesa. Oficial de Marinha escreveu mais de 30 textos dramáticos. E o que aqui nos prende agora a atenção é precisamente o sentido de espetáculo e a encenação potencial que muitos ou quase todos esses textos expressamente contêm.

Digamos que é habitual os autores completarem as falas de cada personagem com indicações, maiores ou menores, de cena, orientando assim, de certo modo, a potencialidade de cada interpretação/encenação. Como também é comum a descrição de cenários e ambientes cenográficos, muitas e muitas vezes introduzidos pelo dramaturgo, geralmente no início de cada ato. Mas em Lopes de Mendonça estamos perante textos de verdadeira orientação cénica correspondentes a cada personagem, a cada situação dramática. E é interessante, repita-se, encontra-los num dramaturgo que, pela sua formação (Oficial da Armada) e pela sua biografia, não era propriamente um homem de teatro-espetáculo

Essa formação e atividade profissional surge porem, não raro, subjacente e até evidente nas descrições de cena. Assim por exemplo, na descrição da nau Flor da Rosa da peça “Afonso de Albuquerque”:                                    
“Trecho da tolda da nau Flor de la Rosa em viagem, vista quase longitudinalmente de estibordo, supondo-se o eixo do navio com a obliquidade de cerca de uns 30º sobre a linha do proscénio. À esquerda levanta-se o chapitéu, cuja parede anterior fecha a cena por esse lado. Sobre o chapitéu, varanda corrida, com escada aos dois bordos para a tolda, e mastro da mezena, cuja vela triangular se vê em parte, cortada pelas bambolinas”(…)

Mas agora compare-se esta descrição com a nota de cena do Ato I da peça “O Azebre”, esta passada em “Lisboa atualidade” (1909), onde se descreve a habitação e a vida miserável de um velho músico:

“Um sótão. Ao F. porta de entrada comunicando com a escada da qual se entrevê a grade do corrimão. À D. janela de água-furtada. À E. porta para a cozinha. Cómoda à E., abaixo da porta, tendo em cima um grande numero de musicas e alguns livros. Mesa um pouco à D. quase em frente da janela. Cama de ferro ao F., em desalinho, entre a porta e a E. da cena. Junto dela, um mocho alto com uma palmatória de folha e um livro. Quatro ou cinco cadeiras espalhadas pela cena. Toda a mobília ordinária e em mau estado”…

Este ambiente irá contrastar com o segundo ato, numa “sala de receção comunicando com um ou mais arcos com a sala de música ao F. Vê-se nesta um grande piano de cauda e uma harpa encapada. – Portas laterais. Uma janela à E. A. Mobília de aparato. – Lustres e candeeiros acesos”.

E o mesmo detalhe acompanha muitas vezes as próprias cenas e as intervenções dos personagens, em didascálias que traduzem um sentido de orientação de espetáculo e de interpretações. Importa aliás referir que “O Azebre” foi recusado pelo Teatro D. Amélia e Pelo Teatro D. Maria II por ser considerado “obsceno”. E só subiria á cena em 1909, no então Teatro do Príncipe Real, com atores que, mesmo na época, nem todos eram de primeiro plano: mas que tinham no elenco também grandes nomes: desde logo Ferreira da Silva no protagonista, mas também, nos papéis principais, Teodoro Santos, Luciano de Castro, Amélia Ramos, Zulmira Ramos, Maria Falcão, Adélia Pereira. (cfr. “Teatro Naturalista” de Luís Francisco Rebello, INCM 2013).   

Mas outras peças de Henrique Lopes de Mendonça merecem atenção no ponto de vista do espetáculo. Veja-se, como mais um mero exemplo, esta nota de cena ´da peça “O Salto Mortal”, envolvendo as duas protagonistas, Luísa e Doroteia: “Luiza tem ido buscar os objetos pedidos. Apenas volta com eles, Doroteia começa a fazer a cama sobre a arca, podo primeiro a esteira em guisa de enxerga, e por cima o cobertor e o colchão. Tudo é feito durante as falas seguintes, conforme se vai deduzindo do diálogo”. É uma verdadeira orientação de dramaturgo-encenador!

Ora bem: este sentido do espetáculo marca profundamente o teatro de Henrique Lopes de Mendonça. E torna mais evidentes as opções cénicas e interpretativas, da parte de atores e encenadores, como da parte de cenógrafos e técnicos de espetáculo que, de uma forma ou de outra, o interpretam e fazem-no atual. Pois, como escreveu, e bem, Luciana Stegagno Pichio, que aliás põe algumas reservas a esta dramaturgia, as suas peças refletem “rigor documental na pintura dos ambientes e costumes“ e “preocupação de verosimilhança que denuncia a influência da nova estética verista” (in “História do Teatro Português” -  trad. port.- pag.279).

E esse sentido de espetáculo justifica a referência, pelo conteúdo dramático dos textos, mas também pela orientação que expressamente consagra relativamente aos atores e aos encenadores: e os exemplos podem multiplicar-se, na vasta obra “ teórica e prática” de Henrique Lopes de Mendonça!


DUARTE IVO CRUZ

A LÍNGUA PORTUGUESA NO MUNDO

 

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V - MONOLINGUISMO, DIVERSIDADE E NEUTRALIDADE LINGUÍSTICA

 

1. A hegemonia do inglês é vista de várias formas. Para os fatalistas e mais pessimistas, mesmo que se esteja perante uma inevitabilidade, é sempre uma ameaça à diversidade linguística. Para os otimistas, uma benesse e um benefício, uma dádiva bem aceite e recebida. Para outros, nomeadamente franceses, mesmo entre aqueles que defendem que a boa diversidade é a que fala francês, a língua inglesa, dada a sua apetência glotofágica, é um idioma de destruição linguística. Seja qual for a perspetiva, o monolinguismo veicular duma língua tem sempre subjacente a ideia de que uma herança linguística diversa é um obstáculo para a homogeneização do mercado, não coincidindo com as necessidades de unicidade do mercado global, dado que a globalização pressupõe e impõe a unicidade, entrando em confronto com várias zonas linguísticas que comportam a existência de vários mercados. A ideia que prevalece é a de que quem tem o poder impõe a língua. E um dos argumentos mais comuns para se usar o inglês e não usar outras línguas é o mesmo: os custos. Usar o inglês é mais barato, permitir o uso de outras línguas é dispendioso e nocivo.

2. Segundo outros, é salutar preservar e manter a diversidade linguística, pois que cada língua tem um tipo especial de relação com a realidade, um depósito de raízes e opções históricas, uma atitude de perceção e de conformação com o ambiente e meio em que nos inserimos e nos rodeia, na sequência de se ter como saudável que é a diversidade de perspetivas que pode proporcionar melhores soluções. Sendo a liberdade cultural parte vital do desenvolvimento humano, defende-se o respeito pela diversidade e a criação de sociedades mais inclusivas, promovendo políticas que reconheçam diferenças culturais, entre estas a diversidade linguística. A UNESCO, organização internacional e plurinacional com maior responsabilidade quanto ao estatuto e futuro das línguas, tem como linha oficial que todas as línguas planetárias têm, no essencial, o mesmo valor e a mesma dignidade quanto à sua proteção legal, pelo que a preservação da diversidade cultural e linguística é condição prévia para uma convivência internacional e civilizacional saudável e pacífica. Pertencendo à esfera do conhecimento, a língua é um valor difícil de quantificar, daí a sua heterogeneidade por confronto com uma homogeneidade global.

3. Numa tentativa de suprir o conflito dos idiomas, afastando o perigo do monolinguismo restrito ou veicular duma língua materna e oficial já existente, de um clube linguístico de línguas dominantes, de um regime de plurilinguismo restrito e geral, de uma permanente discriminação e tensão entre línguas dominantes e dominadas, consoante os respetivos contextos e circunstâncias, surgiram cenários alternativos. Aí se assumindo uma posição estratégica e programática a favor da neutralidade linguística, via criação de uma língua neutra, obrigando a optar entre uma língua-mãe e uma língua planeada interétnica, salvaguardando o princípio da igualdade das línguas, funcionando equidistante em relação a todas as línguas estaduais, querendo reduzir-se custos, permitir poupanças e eliminar desconfianças. Conseguir-se-ia a unidade preservando-se a diversidade das línguas e das culturas, pela sua natureza e isenção. Tomando como referência a Europa e a sua densa disseminação linguística num espaço proporcionalmente pequeno, as propostas vão desde a adoção de um idioma europeu com poucos falantes e pouco peso político, até à ressurreição duma língua-mãe, maioritariamente o latim, em detrimento do grego clássico, sem esquecer o esperanto, que nunca vingaram. A favor da neutralidade linguística, tem-se como fundamento sociológico que o ser humano, como ser social, não está, em termos identitários, restrito ao Estado-nação, identificando-se, simultaneamente, com comunidades territoriais que se sobrepõem em várias escalas (aldeia, vila, cidade, distrito, província, região) e com outros grupos (família, amigos, colegas, clubes, ideologia, religião), tendo como axioma que uma nova identidade não contraria outras identidades, por maioria de razão numa entidade supranacional (como o pretende ser a União Europeia), dado que para ter e manter identidade, tem de ter uma língua de identidade. Entende-se que uma língua não neutral não pode servir de língua identitária para uma entidade supranacional.

4. Entre as soluções propostas, a tida como reunindo melhores condições para servir de interlíngua foi o esperanto, uma língua neutra, internacional e racionalmente planeada. Segundo especialistas, goza da vantagem de ter uma gramática otimizada, de aprendizagem dezenas de vezes mais fácil e rápida que o latim, sendo um latim europeizado e modernizado, com concessões aos ramos românico, germânico e eslavo. Quantificando, o léxico do esperanto é integrado por 92,92% de lexemas prontamente compreensíveis por falantes de línguas românicas (por exemplo, português), em 89,82% de lexemas de imediato reconhecíveis por falantes de língua germânica e por 42,62% de lexemas imediatamente compreensíveis por falantes de línguas eslavas. Também não vingou, apesar do tratamento especial e lisonjeiro que lhe é dado, entre outros, por Umberto Eco e pelo prémio Nobel da Economia de 1994, Reinhard Selton.

Fernando Pessoa, após admitir ser bem possível que o esperanto seja aprendido num quinto do tempo que qualquer pessoa normal leva a aprender inglês, escreve: ”É melhor aprender catalão do que Esperanto, pois se conhecer o catalão poderá sentir-se em casa na Catalunha, mas se aprender Esperanto, em parte nenhuma se sentirá em casa porque o Esperanto não tem pátria. Ao aprender qualquer forma de Esperanto terá perdido, não uma oportunidade, mas todas as oportunidades que existem no mundo”. E acrescenta: “Se tivermos de ter uma língua universal, essa língua será o inglês e servirá tanto como língua cultural que como língua natural. Se tivermos de ter uma língua artificial universal, essa, teria ainda de ser inventada e deveria ser o mais completa possível, e não o mais fácil possível” (“A Língua Portuguesa”, Assírio & Alvim, edição Luísa Medeiros, 1997, pp. 117/8). Sendo uma língua artificial, nunca foi naturalmente aceite, nem internacional nem universalmente, por que uma língua não natural, apátrida, qual quimera idealizada.

5. A língua veicula poder e é ferramenta de comunicação, dominar a língua é dominar o mercado, pelo que o atual sucesso do inglês, como língua dominante, nasce da conjunção da expansão e força do Império Britânico com a hegemonia do poder militar e tecnológico dos Estados Unidos, surgindo como uma língua híperglobal ou “hipercentral language” numa galáxia linguística global, em concorrência e conjugação de intentos com um conjunto restrito de outras línguas, as superglobais ou “supercentral languages”, onde se inclui o português, o espanhol e o francês, todas elas línguas globais e internacionais. Podendo as línguas ser vistas como um organismo que sobrevive através de um processo de expansão dos seus falantes combinado com o seu desenvolvimento económico, sustentando os falantes nativos e o aparecimento de falantes não nativos, se nenhum destes elementos se verificar a língua entra em declínio, razão pela qual a ideia que prevalece é a de que os que detêm o poder impõem a língua, sem prejuízo duma opção da unidade com diversidade, em antinomia com a diversidade sem unidade e unidade sem diversidade.

 

28 de Março de 2016
Joaquim Miguel De Morgado Patrício

 

A VIDA DOS LIVROS

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De 28 de março a 3 de abril de 2016

 

«Viagens de Pêro da Covilhã» do Conde de Ficalho (INCM, 1988, Fronteira do Caos, 2008) permite-nos revisitar uma das gestas mais curiosas e fecundas da empresa portuguesa dos Descobrimentos – o encontro com a Etiópia e o Império do mítico Preste João das Índias.

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RELAÇÕES ANCESTRAIS
Falar das relações entre Portugal e a Etiópia é reportarmo-nos a um conjunto notável de ligações e testemunhos (materiais e imateriais) que nos permitem compreender o modo como se desenvolveram os primeiros encontros entre civilizações diferentes nos tempos modernos. «A Etiópia, esquecida do mundo e esquecendo o mundo durante mil anos – na frase de um grande historiador inglês – a Etiópia foi depois descoberta ou redescoberta pelos portugueses, e durante um século ou mais ocupou as atenções dos soberanos e dos povos do Ocidente. Mas, passado aquele período, caiu de novo no antigo isolamento e esquecimento, donde apenas surgiu nos tempos modernos…». Assim se exprimia o Conde de Ficalho, em 1898, no seu utilíssimo livro «As Viagens de Pêro da Covilhã»… E, ao referir a Etiópia, somos levados, antes do mais, ao mito do Preste João das Índias, com raízes muito antigas, que correspondem à ideia de que no Oriente, vasto e desconhecido, haveria um reino cristão, que poderia ser aliado ou contraponto relativamente à influência do Islão no Mediterrâneo e no Oriente. De meados do século XI ao século XII, esta hipótese vai desenvolver-se, o Bispo sírio Hugo de Jabala dá conta da existência de um reino cristão «para lá da Pérsia e da Arménia», onde haveria um rei-sacerdote – o Presbítero João – talvez descendente de Baltazar, o Santo Rei Mago da Epifania cristã. Estava-se na preparação da Segunda Cruzada, depois da queda de Edessa, na zona da Síria e de Antioquia. Em 1165 circularam na Europa diversas versões de uma hipotética carta do Preste João, ao Papa Alexandre III, ao Sacro-Imperador Frederico e a D. Manuel Comneno de Bizâncio. Tratar-se-ia de um Reino maravilhoso aquele em que o Preste João reinaria, vivendo num palácio de ébano e de cristal, decorado com pedras preciosas e colunas de ouro, albergando todas as espécies de animais que havia sob o Sol. Esse rei sacerdote exerceria o seu poder num território incerto, a oriente do rio Nilo. Há várias referências, designadamente dos franciscanos Piano Carpino e Ruybroek, merecendo destaque, em finais do século XIII, o testemunho do célebre livro de Marco Polo, no qual o Preste João é identificado como sendo Uang-Khan, chefe de uma tribo mongol, junto do rio Amarelo. No século XIV, os frades menores Odorico de Pordenone e Giovanni Monte Corvino, chegados a Pequim, falam de um rei-branco, porventura cristão-nestoriano, que seria aliado dos mongóis.

 

UM REINO MISTERIOSO…
Sobre o Preste João, há, pois, elementos contraditórios e incertos, uma vez que temos notícia de grupos nestorianos na Ásia Central e na Índia, além de haver no Malabar a antiga comunidade de S. Tomé e na Etiópia o reino cristão-copta de Axum. A Etiópia tornou-se, porém, por aproximações sucessivas, com o tempo, o território mais provável para ser o do misterioso Império do Preste João – sendo esse Imperador mítico representado na segunda metade do século XIV nas cartas geográficas sentado num trono com um globo e uma cruz, símbolos do poder entre os cristãos. Gomes Eanes de Zurara refere, aliás, entre os objetivos do Infante, a procura de um aliado cristão. Nesta linha, D. João II projetou em 1487 as viagens conjugadas de Bartolomeu Dias, por mar, e dos emissários por terra, Afonso de Paiva e Pêro da Covilhã – para descobrir e saber do Preste João e onde achar canela e outras especiarias. D. João teria mesmo recebido um monge abexim, Lucas Marcos, vindo de Roma, a quem teria entregado cartas para o Imperador Presbítero. Este celebrado «plano da Índia» teria tido como antecedentes o interesse manifestado por D. Pedro e D. Henrique. Afonso de Paiva e Pêro da Covilhã avançam para o Cairo, atravessam o Mar Roxo e chegam a Adem. Paiva vai para a Etiópia e o companheiro viaja até ao subcontinente indiano. No regresso ao Cairo, Pêro da Covilhã sabe da morte de Paiva e segue para a Etiópia, onde se fixa e constitui família. Quando a embaixada portuguesa de Rodrigo Lima chega à Etiópia encontra-o já fixado e com descendência, mas o Império, longe da riqueza esperada, luta com dificuldades e defende-se com sacrifício do expansionismo dos povos vizinhos. Os portugueses irão, aliás, ajudar os etíopes nas dificuldades com que se debatem.

 

NOVAS CIRCUNSTÂNCIAS
A abertura da rota do Cabo, a estabilização das relações com a Índia levaram a que as relações entre a Etiópia e Portugal se tenham reforçado. O Rei D. Manuel passa a intitular-se «Senhor da Conquista e da Navegação e Comércio da Etiópia, Arábia, Pérsia e Índia» - o que demonstra uma vontade de domínio assumida pelo monarca português. De facto, há interesse em estabelecer ligações oficiais com a Etiópia com múltiplas finalidades, desde a comercial à religiosa. Afonso de Albuquerque apoia a ida a Lisboa de um representante etíope da Rainha Eleni, o mercador de origem arménia, Mateus, rodeado de muitas desconfianças e dúvidas, por haver quem julgasse que era um espião. Na sequência desta missão, o cronista Duarte Galvão, já idoso, é nomeado embaixador à Etiópia para acompanhar Mateus e também Lopo Soares de Albergaria, este designado para substituir Afonso de Albuquerque no governo do Estado da Índia. A embaixada é, no entanto, comprometida pelas graves contradições internas. Duarte Galvão falha, assim, o desembarque para chegar à Etiópia e morre pouco depois. Em 1520, D. Rodrigo de Lima é designado, já pelo substituto de Lopo Soares de Albergaria, Duarte Lopes de Sequeira, para representar o Rei de Portugal. Na comitiva que se atardará durante cerca de sete anos na Etiópia, encontramos, de novo, de início, Mateus, que morre pouco depois do início da missão, bem como do clérigo secular Padre Francisco Álvares, cujo testemunho será crucial quer relativamente a Pêro da Covilhã quer no tocante à vivência na sociedade abexim. A «Verdadeira Informação das Terras do Preste João das Índias» do Padre Álvares é um documento precioso – quer para se perceber a sociedade etíope, quer para conhecer o pensamento de um europeu do seu tempo sobre uma sociedade desconhecida. Notam-se as diversas tentativas para a mudança do rito etíope, para contrariar a dependência de Alexandria e para ligar a Abissínia a Roma, sem sucesso. Damião de Gois vai também interessar-se pela aproximação entre os ritos etíope e romano. O jesuíta espanhol Pero Pais, vindo de Goa, merece também referência, pelo papel que teve na influência da arquitetura portuguesa na Etiópia. Foi o primeiro europeu a chegar à nascente do Nilo Azul, além de ser dos primeiros difusores da importância do café. É, aliás, importante falarmos de um património de influência portuguesa na Etiópia. Há memórias de uma pequena comunidade católica de origem indo-portuguesa – devendo lembrar-se os vestígios edificados da presença portuguesa, com um caráter próprio e original, nas áreas militar, civil e religiosa. Refiram-se o complexo de Gondar, com influência jesuítica e nítidas semelhanças relativamente a Goa e Diu – classificado pela UNESCO, envolvendo Gorgora Nova, a norte do Lago Tana, Guzara, protótipo do estilo luso-etíope, entre Gondar e o Lago Tana – a primeira cidadela em pedra e cal, além das ruínas da catedral e do palácio de Danqaz.

 

Guilherme d'Oliveira Martins 
Oiça aqui as minhas sugestões - Ensaio Geral, Rádio Renascença

 

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

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   Minha Princesa de mim:

 

   Lembro-me de que, em meados dos anos 70 do século passado, quando fui chamado a orientar uns trabalhos de mestrandos na Universidade de Lovaina, reflecti e falei muito (quiçá demais) de umas previsões que John Maynard Keynes adiantara em 1928, num opúsculo sobre o longo prazo, cujo título era Economic Possibilities for our Grandchildren. Aí, o grande economista estimava que, dentro de um século, o crescimento económico teria feito com que os seus netos não precisassem de trabalhar mais do que três horas por dia. E recordo-me ainda de como, dez anos depois, em meados da década de 80  --  morava eu em Scarsdale, NY, USA  --  se falava muito na pequena cidade de White Plains, a umas 50 milhas de Nova Iorque, que ia crescendo, graças à afluência de uma população que podia trabalhar fora dos grandes centros urbanos e produtivos  --  e mesmo em suas casas  --  menos tempo e com mais liberdade, beneficiando do progresso tecnológico de novos instrumentos de trabalho. Assim chegava à ribalta do nosso pensamento social, e dos nossos sentimentos partilhados, uma nova personagem: o tempo livre. Amanhecia uma nova cultura, a do lazer;  e, com ela, um ser humano distinto do homo faber. A edição que conheço da obrita de Keynes acima referida data de 1930, no ano seguinte ao do estrondo inicial da Grande Depressão, nas palavras do economista uma crise que a história recordará como das mais profundas que a humanidade jamais viveu. Hoje, quase um século mais tarde, o envelhecimento das populações "industrializadas", e a extensão da esperança de vida, as desorientações financeiras, a crescente insustentabilidade do welfare state, vão suscitando outras ponderações do tempo de trabalho e da própria duração da vida activa. Por outro lado, nas mesmíssimas "sociedades de afluência", a libertação de tarefas domésticas e outras, oferecida pela disponibilização generalizada de aparelhagem auxiliar, coloca muita gente perante a questão de como ocupar o tempo, ao ponto de levar alguns a crises depressivas... Nas nossas conversas por aí, frequentemente passamos de quem não tem tempo para nada, nem mãos a medir, a quem não sabe que fazer ao tempo, nem acha com que se entreter. Em registo diferente, tanto nos queixamos de que o tempo passa a correr, como de que nunca mais passa... Quando éramos estudantes, eram longas as aulas, curtos os recreios, nunca mais acabávamos o curso nem começávamos a trabalhar. Impacientes. Depois dos setenta, tudo passou tão depressa... E até já temos paciência para ser pacientes connosco. Todo o tempo nos parece curto, é preciso que dure. Como diria a marechala de Der Rosencavalier, é coisa singular: quando o vivemos assim, nada é; depois, de repente, só o sentimos a ele. Mas escapa-nos sempre, dizemos que passa por nós, mas um fado ensina-nos que ele fica e nós é que passamos... Olha, Princesa de mim, com estas maleitas que me prendem em casa, tive agora tempo para me entreter com um livro recente do Rüdiger Safranski: Zeit. was sie mit uns macht und was wir aus ihr machen. (Tempo. O que ele faz connosco e o que nós fazemos dele). Reconduziu-me àquelas páginas maravilhosas das Confissões de Santo Agostinho, à sabedoria do Livro XI, quando o bispo africano responde à pergunta Que fazia Deus antes de criar o céu e a terra? --  Não vou dar essa resposta brincalhona que, conta-se, certo dia se propôs para iludir tão temível questão: "Deus preparava o inferno para os curiosos". Brincar é uma coisa, reflectir outra. Não, não quero essa resposta. Quando não sei, prefiro responder "Não sei!" a tornar ridículo quem faz uma pergunta profunda e a aplaudir quem dá uma paródia de resposta. É posta assim a questão no parágrafo XII, tem a ver com a eternidade de Deus e a criação do tempo, mas o ser do tempo é tratado no parágrafo XIV e seguintes: O que é, então, o tempo? Quem saberá facilmente dar dele uma breve explicação? Quem  poderá agarrá-lo, ainda que só em pensamento, para o dizer? E, todavia, haverá qualquer evocação mais familiar e clássica, nas nossas conversas, do que a do tempo? Compreendemo-lo bem quando dele falamos; também o compreendemos ao ouvir outrem falar dele. Que será, então, o tempo? Se ninguém me lo perguntar, eu sei. Mas se alguém me fizer a pergunta, e eu quiser explicar, já não sei. Contudo, afirmo com força o seguinte: se nada passasse, não haveria passado; se nada adviesse, não haveria futuro; se nada estivesse, não haveria presente. Mas esses dois tempos  --  o passado e o futuro  --  como poderemos nós dizer que eles "são", posto que o passado já não é, e o futuro ainda não é? Quanto ao presente, se ele ficasse sempre presente sem se transformar em passado, deixaria de ser "tempo" para ser "eternidade". Se, portanto, o presente, para ser "tempo", deve transformar-se em passado, como podemos nós dizer que ele "é", visto que a sua única razão de ser é já não ser  --  a tal ponto que, na verdade, só podemos falar do ser do tempo porque ele se encaminha para o não-ser? Creio que, por diversas vezes já, te disse que pensossinto a mudança, no sentido de evolução, passagem, como essência do ser natureza. A tal ponto, como criaturas que somos, a vivemos, que, quando algo demora muito, dizemos que é uma eternidade... Cansa-nos a permanência do presente, é contranatura.  Mas o tempo que é, com o espaço, categoria necessária à percepção da nossa  condição, também nos aflige, precisamente porque intuímos que acaba, e cada um de nós, nesta nossa condição, com ele, com o seu nosso tempo. Seguindo Agostinho, digamos que o tempo é porque deixa de ser. Por isso acredito na eternidade: sendo absurdo que o ser seja não-ser, a fé, como diz S. Paulo, é a substância das coisas que devemos esperar. Cheguei, Princesa, àquela idade em que pouco me importa se tenho tão presente a grande dor das coisas que passaram (Camões), pois se me esfuma o tempo e ganha substância a alma.

                  Camilo Maria

  

Camilo Martins de Oliveira

 

 

A FORÇA DO ATO CRIADOR

  

O Centro de Artes de Sines
 

Situado em Sines, o projecto do Centro de Artes (2000-2005) foi desenhado por Francisco e Manuel Aires Mateus de modo a completar dois quarteirões e a marcar uma nova entrada para o núcleo histórico. Localiza-se na área antes ocupada pelo Cine-Teatro Vasco da Gama e pelo Teatro do Mar. Quatro bandas erguem-se paralelas à Rua Cândido dos Reis – antigo caminho medieval que parte da Rua Marquês de Pombal (que separa o núcleo histórico da cidade mais recente) e que liga a cidade à baía. A geometria, a escala, a continuidade, as massas sólidas, a escavação da matéria e a complexidade interior são os elementos que permitem a ancoragem do conjunto àquele bocado de cidade.

A Rua Cândido dos Reis assume um papel muito importante, como eixo, na determinação do projecto do Centro das Artes. De um e do outro lado da rua compacta-se o variado programa. Todos os volumes estão unidos através de uma continuidade visual, espacial e material.

Ao nível da rua é possível ter-se uma leitura visual horizontal que cruza o auditório, o centro de documentação, a biblioteca e o espaço de exposições e assim se revela toda a extensão do centro cultural. Em corte transversal os volumes parecem mesmo estar suspensos de modo a permitir a continuidade desejada.

O projecto relaciona duas condições – uma enterrada e outra emergente. A parte que se desenvolve escavada permite gravar no lugar o programa e assim ligar os volumes que se separam no exterior. A parte emergente busca referências no Castelo da cidade e o revestimento em pedra de lioz reforça a unidade do edifício que se consolida duplamente como matéria e espaço. Os volumes são robustos e sólidos e combinam opacidade e transparência. Ao nível do peão e ao longo da Rua Cândido dos Reis as fachadas são envidraçadas, de modo a garantir a permeabilidade para as diversas actividades culturais que se desenvolvem no interior do centro. O interior é assim revestido de mármore branco liso de maneira a garantir o máximo uso da luz natural e a clareza espacial.

Para Manuel e Francisco Aires Mateus, a lógica do lugar, do programa e do tempo encontra sentido na lógica interna do projecto que se baseia numa procura sucessiva de uma ideia que se vai testando e encontrando significado em maquetes e desenhos. A ideia é uma descoberta que se encadeia e que resulta de um método experimental de tentativa e erro. Constitui, deste modo, a estrutura intelectual consistente para que o projecto tenha vida longa e própria.

Os Aires Mateus trabalham através de dualidades – o contexto e a lógica; o sentir e o pensar; o problema e a ideologia; a inspiração e a forma; a essência e a razão. Tiveram mestres como Manuel Tainha, e desde cedo começaram a colaborar activamente no atelier de Gonçalo Byrne.

De Manuel Tainha, os irmãos Mateus, trazem a lição de que a arquitectura sucede pelo meio do desenho. Este método permite uma apropriação do real e uma representação de posições no espaço, porque o traço contém todo o saber que se adensa à medida que se vai definindo a ideia.

Como já foi visto, no processo de projecto dos irmãos Mateus, determina-se importante o desempenho do desenho, da maquete e das representações informatizadas – o processo é sequencial e por vezes reduzido ao elementar (desenhos a preto e branco) para que se busque pela síntese e pela clareza. O preto e branco dos desenhos e as maquetes transparentes tornam até por vezes ambíguo o entendimento do espaço cheio e do espaço vazio e trazem a incerteza dos limites.

A concepção de que a lógica do sítio, do programa e do tempo e sobretudo a existência de uma estrutura de projecto consistente e rigorosa que prevalece sobre a forma foi influenciada pelo trabalho de Gonçalo Byrne.

Da colaboração com Byrne resultaram dois trabalhos muito importantes para os Aires Mateus: a Residência de Estudantes de Coimbra (1996-1999) e a Casa em Alenquer (1999-2001).

Para os Aires de Mateus é necessária uma reflexão sobre o espaço e a sua forma e para tal é determinante a importância do espaço que está dentro, do espaço entre, do espaço por baixo, da ausência que se torna presença, do vazio que se torna cheio, do transparente que se torna opaco, do interior que passa a exterior e das paredes

que engrossam e que podem ser vividas por dentro. A relação com o corpo torna-se assim mais intensa – o abrigo e a desprotecção, a memória do espaço, a preservação do vazio, o prolongar da história de um lugar que agora não pode ser vivido por dentro mas antes contemplado por fora tal como acontece por exemplo nos projectos para a Livraria Medina (1999-2002) ou no projecto para a Casa em Alvalade (1999) ou ainda na Casa em Brejos de Azeitão (2000-2003).

Sendo assim, o Centro de Artes de Sines na pequena escala da cidade adquire uma enorme importância. O objecto foi concebido como um compacto e opaco monólito e que depressa alcançou um valor emblemático. A identidade do conjunto é conseguida evitando analogias directas com a envolvente, enraizando antes a proposta na continuidade e na lógica urbana.
 

Ana Ruepp

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

Minha Princesa de mim:
 

A parte VI do primeiro livro da Muqaddima, essa introdução ao Livro dos Exemplos de Ibn Khaldun (Túnis, 1332 - Cairo, 1406), trata das Diversas Ciências, Métodos de Ensino e Estados que os Afectam, e começa com o seguinte preâmbulo: Sobre o pensamento humano, que distingue o homem dos animais, e o guia para a aquisição dos meios de subsistência e para a cooperação com os seus semelhantes, com vista àquela, tal como para a consideração d´Aquele que ele adora e das mensagens transmitidas pelos Seus enviados. Deus submeteu ao homem todos os animais e colocou-os sob o seu poder. Deu-lhe, graças ao pensamento, a superioridade sobre muitas das suas criaturas. E logo adiante, já no corpo do primeiro capítulo (O Pensamento Humano), esclarece: Os animais têm consciência do que lhes é exterior, graças aos sentidos externos com que Deus os dotou: ouvido, vista, olfacto, gosto e tacto. Além disso, o homem é o único de todos os animais que pode perceber o que lhe é exterior por meio do pensamento, que está para lá dos sentidos. Isso graças às faculdades, localizadas nas cavidades do seu cérebro, que lhe permitem extrair as formas das coisas sensíveis, de nelas aplicar o seu espírito e delas abstrair outras formas. O pensamento é a livre utilização dessas formas para lá dos sentidos, e o exercício, pelo espírito que as percorre, da abstracção e da síntese. É esse o significado da palavra «corações» (af´ida), no versículo corânico «Deus deu-vos o ouvido, a vista e os corações». Af´ida é o plural de fu´ad, que aqui significa «pensamento». Tal processo genético das ideias, como também o decorrente lugar do homem na natureza, é conceito aristotélico, que terá chegado a Ibn Khaldun por via de tradução de Averroes, que, aliás, através da versão latina de Guilherme de Moerbeck, que traduziu Aristóteles para São Tomás de Aquino, influenciara já, na cristandade europeia, este teólogo dominicano, e o pensamento cristão, no século XIII. As ideias formam-se a partir da experiência sensorial, e da memória dela, pela faculdade de abstracção do espírito humano. Aquilo que distingue o homem dos animais é o poder e saber pensar. Digo, e repito, poder e saber, porque a capacidade (o poder) é um dom de Deus, uma distinção, e a sabedoria (o saber) é uma aquisição, isto é, o rendimento dessa capacidade, como o próprio Jesus já ensinava na parábola dos talentos: será dado o dobro ao que muito recebeu e fez render, será retirado o pouco a quem o enterrou, para que nada arriscasse... Em Aristóteles - nem sempre isto foi observado - a virtude é pertença da alma (do espírito de cada humano), mas de modo não acidental:  partamos do princípio de que há duas partes da alma que participam da razão [da inteligência], mas não é da mesma maneira que, uma e outra, partilham a razão. Pelo contrário, uma o fará porque é de sua natureza dar ordens, e, a outra, porque é da sua obedecer e escutar... E salto um passo do estagirita, só por me lembrar de outro, cuja lição, parece-me, tantas vezes esquecemos: Ora, a virtude tem duas formas: ou é moral, ou intelectual. Na verdade, não louvamos apenas as pessoas justas, mas também as pessoas inteligentes e os sábios, porque os louvores, está assente, dirigem-se à virtude ou à tarefa que ela permite cumprir...  ...Desde que as virtudes intelectuais se acompanhem de razão, tais virtudes pertencem a essa parte racional da alma que é capaz de dar ordens... ( in Ética a Eudemo).

Quero só dizer-te, Princesa, que, neste jogo de mim no que me rodeia - ou seja, na circunstância das nossas vidas - todos os dias dou graças por poder pensar, isto é, por tentar ultrapassar  as limitações dos meus sentidos, e poder ser, para além deles, um homem, esse ser tão estranho que, necessariamente, correrá sempre o risco admirável de se interrogar: sobre si, porque sempre pergunta o que é em tudo isto e, com uma agulha na alma, porque é que no meio disto está, donde veio aqui parar, para onde irá ou, last not least, para onde poderá ir e como... Vejo, nessa Weltanschaung medieva, quer a norte, quer a sul do Mediterrâneo - esse mar que separava, confrontava  e aproximava Islão e Cristandade - as mesmas angústias, as mesmas esperanças ou desejos, uma fé quiçá igual na natureza da interrogação das almas, talvez próxima pelo misterioso sentimento humano da transcendência de nós, certamente oposta pelas ditaduras das formas canónicas... No título II da parte VI do livro acima referido, intitulado O mundo das coisas criadas a partir a acção cumpre-se graças ao pensamento, Ibn Khaldun escreve: O mundo das coisas existentes compreende, por um lado, essências puras, como os corpos celestes e as suas influências, e os três tipos de seres criados a partir deles, isto é, os minerais, os vegetais e os animais - e todas essas coisas dependem do poder divino. Por outro lado, as acções que emanam dos animais, que resultam das suas intenções e que dependem do poder que Deus neles depositou para as cumprirem. Algumas dessas acções são ordenadas: são as acções humanas; outras não o são: são as dos animais. Na verdade, o pensamento percebe a ordem que existe entre as coisas criadas, quer naturalmente, quer convencionalmente... ... As acções do homem subjugaram o mundo dos seres criados e tudo o que ele encerra. Esse mundo está-lhe inteiramente submetido e à sua discrição. É o significado do vicariato, de que fala o Corão, quando Deus diz: «Vou colocar na terra um vigário». O pensamento é, portanto, a particular qualidade humana pela qual o homem se distingue dos outros animais. O grau de humanidade mede-se pela capacidade de estabelecer no pensamento a cadeia ordenada das causas. Todas as citações acima feitas teriam a concordância de Tomás de Aquino, o seu discurso não pareceria estranho ao pensamento reinante na cristandade coeva. Aliás, a definição do homem e do seu lugar na criação decorre do relato original do Génese (I, 27-28): Deus criou o homem à sua imagem, à imagem de Deus ele o criou, homem e mulher ele o criou. Deus abençoou-os e disse-lhes: «Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra e submetei-a; dominai sobre os peixes do mar, as aves do céu, e todos os animais que andam na terra». Cristianismo e islamismo, ambos são herdeiros da mundividência e da antropologia da Bíblia judaica, tal como da teologia de um Deus único e criador de todas as coisas, e que define a ordem natural dos seres. Nos apontamentos que outrora escrevi acerca do que chamei O presépio cósmico de Tiago Voragino - frade dominicano que, no século XIII, foi arcebispo de Génova e autor da famosa Legenda Aurea - digo que ele nos oferece ali um texto composto com a retórica de um sermão, em que apresenta a manifestação da Natividade do Senhor por cinco ordens de seres ou criaturas: os que são puramente materiais (corpos opacos, transparentes ou translúcidos, e corpos luminosos como as estrelas) que só têm existência; em seguida, por criaturas que têm existência e vida, como as plantas e as árvores; depois, por seres com existência, vida e sensações, como os animais; e ainda pelos que, além da existência, da vida e das sensações, são dotados de razão, como os seres humanos; finalmente, a incarnação de Deus foi proclamada pelos anjos que, além dessas quatro qualidades dos homens, receberam também o intelecto, isto é, a inteligência ou visão de Deus. Para estabelecer, Princesa de mim, estes paralelos entre o pensamento grego, bíblico, cristão e muçulmano, escolhi, no fim, como vês, a ilustração do presépio cósmico do Voragino. Para realçar a novidade que diferencia a visão cristã, essa crença dos discípulos de Jesus que é inaceitável, até blasfema, para um judeu ou um muçulmano: a incarnação de Deus, o transcendente Criador que se torna criatura sua. Escândalo lhe chamou São Paulo, escândalo para judeus e gentios, pois Deus deve estar acima e imune à corrupção da vida mortal. Curiosamente, Alcorão aceita Jesus como o maior dos profetas até Maomé, filho de Maria sempre virgem, homem, sim, Filho de Deus não. Mas o mesmo Livro rejeita, desmente, a morte na cruz. Nem o profeta Jesus poderia ter sofrido tal ignomínia... Pessoalmente, na visão mística que tenho do cristianismo e da história, lembro-me sempre muito de Teilhard de Chardin, e sinto, no íntimo de mim, essa força da constante evolução do mundo - para além dos factores  aristotélicos da geração e da corrupção, que a própria teoria da História de Ibn Khaldun adopta - como um processo escatológico de cosmogénese que é a continuação da revelação de Deus, quiçá uma teogénese...
 

Camilo Maria
 

Camilo Martins de Oliveira

José Santos González Vera, o escritor chileno

 

Prémio Nacional de Literatura em 1950

apenas com a publicação de dois livros:

Vidas mínimas (1923) e Alhué (1928)

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Um dia olhei para um livro muito especial que não deixei na livraria. Tratava-se de uma análise do estilo de escrita de José Vera feito por Ester Ljungstedt, numa edição da “Insula” - Madrid 1965.

Esta edição referia expressamente a assunção do Instituto Ibero-Americano de Gotemburgo (Suécia) fundado em 1939, e cuja finalidade era a de fortalecer as relações culturais entre o povo sueco e os povos de língua espanhola e portuguesa. Assim, achei ter encontrado neste livro que recomendo, uma clara ajuda à minha sugestão de se conhecer melhor a escrita de José Vera.

Na verdade, no seu percurso como escritor, José González Vera contacta amiúde com o jovem Pablo Neruda, bem como com a poeta Gabriela Mistral igualmente chilena e agraciada com o Nobel da Literatura de 1945, aliás, primeiro escritor latino-americano a receber essa honra, na altura em que ela era membro do corpo diplomático chileno. Curiosamente esta escritora, movida por um profundo sentimento religioso, não deixou de influenciar o jovem anarquista José Vera que muito soube como se não levar a sério, permanecendo fiel a um certo humor na sua peculiar forma de estar na vida, quase infantil.

A Sociedade de Escritores chilena abriu um estafado debate contra a atribuição a José Vera do Prémio Nacional de Literatura, dizendo mesmo que “Sus obras completas caben en un cuaderno de composición escolar”

Encontrei na leitura de “Vidas mínimasuma capacidade de análise da realidade, invulgar de José González Vera. Retrata ele de algum modo a sua experiencia de vida de jeito literário hábil e intimista, não descurando a vida dura que suportava, mas em vez de optar pela lamentação, olha a realidade tirando-lhe o pulso minuciosamente e estuda-a sem repugnâncias ou ódios, apesar de descrever com detalhes as injustiças claras que o homem enfrentava em terras que nunca se transformariam em paraísos, ou os donos de mundo responsáveis por uma perversidade quase contemplativa e carinhosa não aceitassem impor vidas miseráveis a outros homens.

Julgo também ter encontrado em José González Vera, um rebelde e um sonhador emotivo, mas que consegue dominar as emoções com o sorriso da ironia no livro "Cuando era muchacho". Surge, aliás, o silêncio neste livro e na escrita de José Vera como sinónimo de paz e simultaneamente tem um papel de sonoridade indispensável ao raciocínio de Vera.

Diga-se que esta análise de Ester Ljungstedt ao estilo de González Vera, consegue trazer-nos uma clareza acerca da importância do tal silêncio que atravessa a obra deste escritor, quando apenas com dois livros lhe é atribuído o Prémio Nacional de Literatura. Não soube dizer a razão pela qual me senti atraída pela escrita de Vera. Seguramente que este livro de Ester Ljungstedt muito esclarece do quanto a quantidade de escrita não definirá nunca a sua qualidade.

 

Teresa Bracinha Vieira
Fevereiro 2016

ATORES, ENCENADORES - LXVIII

 

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EVOCAÇÃO DE NICOLAU BREYNER

 

Uma breve nota pessoal, a propósito da morte inesperada de Nicolau Breyner, para evocar o início da carreira deste brilhante e talentoso homem de espetáculo: e isto no sentido mais abrangente do termo, na medida em que Nicolau representa um paradigma brilhante da geração de artistas portugueses que iniciaram a transição do teatro- espetáculo direto para o espetáculo televisivo.

Mas sem por isso deixar de ser destacado ator de teatro, com um historial muito relevante na carreira própria e na carreira dos outros artistas intervenientes, e também no historial da própria televisão portuguesa. Aí, como bem sabemos, Nicolau não se limitou a ser o grande ator que efetivamente foi: a sua intervenção e criação televisiva – e recordo, a propósito, o referencial Senhor Contente e Senhor Feliz, e recordo a renovação qualificada da novela – marcaram uma época iniciática.

E sobretudo, evoco aqui a sua passagem pelo então Conservatório Nacional, onde iniciou a formação de ator a partir de 1958. Ora, como já tenho escrito, foi por essa altura que eu próprio passei a frequentar, quase diariamente, alem das aulas da Faculdade de e Direito, as aulas da então chamada Secção de Teatro do Conservatório Nacional, como aluno da cadeira de Filosofia do Teatro dirigida e ministrada exemplarmente por Fernando Amado.

Eramos na altura um grupo de cerca de 20 estudantes, a rondar os 17-18 anos. Posso recordar, e tenho-o aqui feito, nomes que prosseguiram as carreiras: desde logo Nicolau Breyner, mas também Irene Cruz, Henriqueta Maia, Florbela Queiroz, Rui Matos, Fernanda Figueiredo, Vítor Ribeiro, Clara Rocha, Benjamim Falcão, Natércia Gonzaga e outros.

Ora, nesse mesmo ano letivo de 1958 -1959, a Escola passou por uma transição: a disciplina então chamada Arte de Representar e Encenação foi ministrada durante toda a temporada escolar por Fernando Amado, isto pela aposentação do anterior titular, o ator Samuel Dinis, e antes da posse de Álvaro Benamor como novo titular da cadeira.

E já aqui tenho recordado a qualidade do ensino e dos repertórios que, no quadro de uma escola nos anos 50/60, Fernando Amado selecionou: para além dos clássicos em interpretações e encenações modernas de Gil Vicente e dos outros clássicos portugueses e europeus, o Conservatório apresentou em público, por vezes pela primeira vez em Portugal, autores como Thorton Wilder, Federico Garcia Lorca, Eugene O’Neill e outros mais – além de peças de Fernando Amado, de notável qualidade.

Ora o que importa aqui lembrar é que o aluno Nicolau Breyner desde logo marcou pelo talento. E de tal forma que surge pela mesma época e em temporadas teatrais seguintes, em grandes companhias profissionais, como o Teatro Nacional Popular – TNP de Francisco Ribeiro- Ribeirinho e em outras, e tanto em papeis dramáticos como em papeis cómicos – “ator cómico de notáveis recursos histriónicos” escreveu Luís Francisco Rebello.

Nicolau Breyner fez uma longa e brilhante carreira inovadora em tantos aspetos da arte de espetáculo, com mais de 40 filmes desde 1961 (“Raça” de Augusto Fraga) e na televisão, desde 1966 até este mês.

Amplamente se justifica esta evocação.

 

DUARTE IVO CRUZ

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