A FORÇA DO ATO CRIADOR
A igreja de Álvaro Siza.
‘Querer fazer uma igreja que se pareça com uma igreja e não um edifício com uma cruz.’, Álvaro Siza, 1998
O complexo paroquial do Marco de Canaveses (1990-1997) foi concebido com o desígnio de construir um lugar para substituir a escarpa muito acentuada e delimitada por uma estrada com muito tráfego. O projecto do complexo compreendia para além da igreja, uma residência paroquial e uma área social com um auditório e salas de catequese. Até agora a igreja foi o único edifício construído.
A partir da estrada, a igreja vê-se de costas e está elevada. No fim dos acessos, determinados pelo muro de granito, desenha-se o adro, espaço central e de vivência por excelência, que seria o local de articulação dos três elementos do complexo, aberto sobre o vale de Marco de Canaveses.
O edifício da igreja articula dois níveis: o nível superior da assembleia e o nível inferior da capela mortuária.
A capela mortuária funciona como a fundação da igreja. O nível superior da assembleia é de planta rectangular, de uma só nave e de secção quase quadrada. A torre sineira e a torre do baptistério enquadram a porta principal (que só é aberta em circunstâncias especiais) e formam um pequeno ‘u’ que se iria contrapor ao grande ‘U’ formado pelo centro paroquial e pela residência do pároco.
Na zona do altar, a nave estreita-se através de duas paredes de interior convexo. Ao lado da nave um corpo baixo abre-se permitindo o acesso às salas complementares. A introdução deste corpo lateral assimetriza a volumetria, corta uma das paredes convexas do altar e intersecta a parede curva a noroeste. O altar é ainda iluminado por uma ténue e filtrada luz – que entra através de duas aberturas verticais – conduzida por um ducto (visível da fachada tardoz) até à capela mortuária, situada na cave.
O eixo transversal é caracterizado por uma parede a noroeste convexa que se contrapõem a uma parede plana e quase cega. A parede convexa inclina-se como que suspensa sobre todo o espaço da nave e contem um conjunto de três janelas de grande dimensão junto ao tecto. A parede plana apresenta apenas uma abertura horizontal que acompanha, à altura de quem reza, todo o comprimento da assembleia – sendo assim possível contemplar a paisagem sobre o vale do Marco de Canaveses.
Álvaro Siza cria os seus edifícios através de uma interpretação do que existe, rejeitando uma linguagem pré-estabelecida. O arquitecto está antes disponível para ‘imaginar a evidência’, para experimentar sobre o lugar e para encontrar soluções acerca de um programa específico e de um modo de construir adequado.
Na igreja de Santa Maria, Siza traz como referências Adolf Loos, a capela de Ronchamp (1950-55) de Le Corbusier e a igreja de Imatra (1957-59) de Alvar Aalto.
O volume cúbico, branco, cego, sólido e compacto da igreja remete para a Casa Steiner (1910) e para a Villa Müller (1930) de Adolf Loos, já evocadas anteriormente na Casa Avelino Duarte (Ovar, 1981-85). A Casa Steiner, em Viena, revela uma simetria aparente exterior, que na igreja, Siza aplica ao colocar dois volumes verticais que enquadram a porta de entrada. A localização da Villa Müller, em Praga, é também elevada e da estrada principal, tal como no projecto da igreja, a casa também se vê de costas.
A localização excepcional, da Capela de Notre Dame-du-Haut em Ronchamp, no pico de uma grande montanha apresentando óptimas vistas; o uso intenso da curva na definição do espaço externo e interno que não é simétrico; o desenho variado das dramáticas entradas de luz natural, são os factores que aproximam a capela ao projecto da igreja de Santa Maria.
No interior, a igreja de Imatra apresenta-se assimétrica transversalmente, num lado um conjunto de três formas côncavas contrapõe-se a uma parede longa e plana. O assumir dessa assimetria cria um diálogo entre o horizontal e o vertical, entre o natural e o feito pelo homem – no caso de Aalto é bem marcada dada as características da liturgia Luterana, no caso de Siza a assimetria contrapõe a contemplação divina da parede côncava que cai sobre a assembleia, à contemplação mais humana da parede que tem uma abertura horizontal sobre o vale de Marco de Canavezes.
Nos seus projectos, Álvaro Siza por vezes utiliza um discurso formal ambíguo, recorrendo ao uso simultâneo de duas ou mais ideias contraditórias. E na igreja de Santa Maria esse discurso contraditório materializa-se em:
- Fazer um edifício com uma dimensão sagrada e transcendente – austeridade cúbica e cega do exterior, grande porta de entrada, grande altura da nave, entradas de luz dramaticamente desenhadas e sensação de infinito – mas ao mesmo tempo que revele uma preocupação artesanal com condições que se aproximem do sentido de pureza e da verdade dos materiais (o uso do azulejo pintado, o desenho da pia baptismal em pedra, o desenho da cruz e o altar em madeira).
- A inclinação da parede noroeste esconde as janelas e simula profundidade, só a luz se vê. Siza deseja evocar a entrada da luz através das grossas paredes que antes faziam parte da construção tradicional das igrejas.
- Apesar de ser um espaço puramente contemplativo e fechado sobre si próprio com dramáticas entradas de luz, Siza escolhe abrir uma janela horizontal baixa, a todo o comprimento da nave e que quebra o ambiente de puro recolhimento. Assim a contemplação é espiritual mas também concreta, material sobre uma paisagem real.
- O espaço correspondente à abside é virado do avesso. No altar, as formas convexas advêm da inversão dos quadrantes que constituem a geometria habitual e tradicional de uma abside semi-circular.
- As torres marcam verticalmente a entrada mas estão truncadas, cortadas à mesma altura da cobertura da nave.
- A igreja parece levitar. Os muros de granito reforçam o branco do volume, criam uma separação em relação à estrada, elevam a igreja, mas ao mesmo tempo prendem-na ao chão, materializam a capela mortuária, disciplinam os acessos e desenham o claustro.
Sendo assim, no projecto da igreja de Santa Maria, Álvaro Siza expressa uma vontade de formalizar uma espiritualidade inserida numa realidade concreta de um tempo e de um lugar.
Ana Ruepp