CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA
Minha Princesa de mim:
Os Parisienses distinguem-se entre os povos da Cristandade pela agudeza dos seus intelectos, a precisão do seu entendimento, e a imersão dos seus espíritos em assuntos profundos... não são prisioneiros da tradição, mas gostam sempre de conhecer a origem das coisas e as provas delas. Mesmo a gente comum sabe ler e escrever, e entram como as outras em assuntos importantes, cada homem consoante a sua capacidade... Está na natureza dos Franceses serem curiosos e entusiasmarem-se mcom o que é novidade, e gostam da mudança e alteração das coisas, principalmente quanto a vestidos... Mudança e capricho também estão na natureza deles: passarão imediatamente da alegria à tristeza ou da seriedade à brincadeira, ou vice versa, de tal modo que num só dia um homem fará toda a maneira de coisas contraditórias. Mas tudo isso no que toca a miudezas; nas coisas grandes, as suas visões da política não mudam; cada homem permanece com as suas crenças e opiniões... Estão mais próximos da falta de misericórdia do que da generosidade... Negam os milagres, e crêem que não é possível infringir leis naturais, e que as religiões se fizeram para apontar boas obras aos homens... mas entre as horríveis crenças deles está essa de que o intelecto e virtude dos seus homens sábios são maiores do que a inteligência dos profetas... Aqui tens, Princesa, um trecho dum relatório que Rifa´a al-Tahtawi, enviado a Paris, em missão de investigação da educação francesa, pelo 1º khediva do Egipto, Maomé Ali, remeteu ao seu soberano. É muito interessante, por curto que seja, a vários títulos: antes de mais, por ser coevo das missões que o Japão da restauração Meiji também enviava à Europa, com similares objectivos, o que diz muito do prestígio e da emulação que o "Ocidente" criara junto de outros povos, do médio e extremo oriente; depois, porque é cautelosamente lúcido na percepção das "luzes" ou espírito crítico e livre pensamento como factores de progresso; e, adiante, por não lhe escaparem os gostos e as frivolidades que os ventos ditos de progresso sempre trazem; finalmente, pelo receio instintivo de um muçulmano perante essa liberdade de pensamento e atitude que, se já parece contestar normas ou práticas religiosas cristãs, poderá significar outra revolução no seio da ortodoxia sunita... Pelo nosso lado, notemos apenas que, na cristandade europeia, ao tempo, também um clericalismo bacoco - de que Pio IX ficou símbolo - se aterrorizava e condenava o modernismo... Mas, na presente carta, quero tão só falar-te do Médio Oriente, nesse período em que o império otomano se desmembrava e as potências europeias, rivalizando entre si, rapidamente e em força tentaram ocupar e ocupar-se dos territórios órfãos de império. Simplificando o relato histórico, o império otomano afirma-se no princípio do século XIV e, no seu apogeu, que se pode situar entre a conquista de Constantinopla (1453) e o levantar do cerco de Viena (1683), ocupava a margem sul do Mediterrâneo, do Magreb ao Egipto, Palestina, Líbano, Síria, Iraque, Irão, Chipre e Creta, a Anatólia, Turquia europeia, Grécia, Macedónia e Balcãs, a própria Hungria e Europa oriental, a sul do Dniepre e até à Crimeia... O fracasso do cerco de Viena (que tanto assustou a cristandade!) marca o início de dois séculos e meio de derrotas e recuos, sobretudo a partir de finais do século XVIII, em que é uma referência a invasão do Egipto pelo exército de Napoleão, em 1798. Aliás, não vejo claramente quais as razões dessa campanha napoleónica, ainda que sempre me tenha perseguido a impressão de que, a exemplo dos antigos generais romanos - que, em vitórias e conquistas longínquas, procuravam a glória que os alcandorasse ao poder em Roma - o estratega corso nas margens do fértil Nilo buscasse o prestígio histórico que trouxesse brilho e fama à sua ambição, numa França embebida de admirativas referências da Antiguidade Clássica... Mas poderei perguntar, com o historiador britânico Donald Quataert: Seguiria Napoleão na senda da Índia britânica ou pretendia simplesmente bloquear o acesso da Inglaterra à sua futura jóia da coroa? Ou, tal como a incursão gorada sobre o norte da Palestina parece sugerir, procuraria ele substituir o império otomano pelo seu próprio império? Fosse o que fosse, não é essa história que me traz até ti, nem tampouco a dos afrontamentos, por ali, entre potências europeias (França, Reino Unido e Reich alemão), antes e durante a 1ª Grande Guerra, sobretudo por via da sublevação de populações locais e de alianças várias, e variáveis, levando-lhes a concomitante instrução em técnicas de guerrilha, sabotagem e terrorismo. Tudo isso que levou, primeiro, ao desmantelamento do poder otomano na região e, pouco depois, à sua derrota, aliada à Alemanha, nessa guerra, a que sucederia a implantação da República Turca, em 1923. Entretanto, assistia-se à instalação de protectorados franceses e britânicos, à ocupação colonial, por ambos, do norte africano e do oriente médio - a que, entre as duas Grandes Guerras, se juntaria a italiana, na Líbia - e, finalmente, à constituição do estado sionista de Israel e ao desenho das fronteiras de todos os outros que para ali estão em ameaças e conflitos permanentes. A lembrança que quero trazer-te antes tem que ver com o surto de instituições de educação, ensino e investigação, de que beneficiaram, sobretudo, populações e elites egípcias (Cairo) e libanesas (Beirute). Penso que já te terei falado de algumas delas. Mesmo ainda durante o império otomano, o desejo de tentar concorrer com a Europa levou governos reformistas a criar escolas destinadas à formação do necessário pessoal militar e administrativo, bem como engenheiros e médicos, designadamente em Istambul, no Cairo e em Túnis. Mas com a emancipação, do poder otomano, de cidades e províncias do império, e a concomitante presença e influência de culturas europeias, cresceram elites locais e generalizou-se, de Marrocos à Síria, o ensino das línguas francesa e inglesa, sobretudo da primeira, que com elas veiculavam saberes e técnicas diferentes e novos, além de outros modos de olhar e estar no mundo e na vida... Se algumas dessas escolas eram de iniciativa autóctone, outras chegavam do exterior ou surgiam da combinação de projectos indígenas com oportunidades estrangeiras, como no caso de comunidades árabes cristãs, por exemplo as de maronitas libaneses. No Líbano, além das missões católicas francesas que vieram em apoio das igrejas católicas maronitas, até com financiamento republicano francês, já em 1875 os jesuítas fundavam a Universidade de São José, em Beirute, a que se juntaria uma faculdade de medicina em 1883. Antes ainda, em 1866, americanos haviam fundado o Colégio Protestante Sírio, donde mais tarde nasceria a Universidade Americana de Beirute. Curiosamente, bem cedo famílias muçulmanas preferiram colocar as suas filhas em colégios de freiras, onde, além de falar francês e outras prendas, as meninas aprendiam a conduzir-se como tais e a ter modos... Sucessivamente iam afluindo, além das católicas, mais francesas, missões protestantes, inglesas e americanas, tal como ortodoxas russas, todas, claro está, fomentadas pelos respectivos governos. A própria França esteve por detrás de uma Aliança Judia que, de Marrocos ao Iraque foi implantando escolas hebraicas para as crianças dessas comunidades. E, em consequência disso tudo, foram aparecendo reflexões, receios, condenações e propostas, reacções várias à crescente e muito presente influência ocidental. Respigo dois textos, da autoria de respeitados intelectuais islâmicos, atentos aos sinais dos tempos: Este de Khayr al-Din (+1889), um dos que tentaram reformar o governo da Tunísia, antes da ocupação francesa: Antes de mais, é urgente incitar zelosos e resolutos homens de estado e religião a adoptarem, tanto quanto puderem, tudo o que conduza ao bem estar da comunidade Islâmica, e ao desenvolvimento da sua civilização, tal como a expansão dos limites da ciência e aprendizagem e à preparação dos caminhos que conduzem à riqueza...sendo a base de tudo isso um bom governo. Depois, censurar todos esses que não se incomodam com a persistência, da generalidade dos Muçulmanos, em fechar os olhos ao que é digno de louvor, e se conforma com a nossa própria lei religiosa, na prática de fiéis doutras religiões, só porque meteram na cabeça que devem ser evitados todos os actos e instituições daqueles que não são Muçulmanos. Mais este de Maomé Abdu (1849-1905), um egípcio muito e longamente influente no pensamento islâmico: Quero libertar o pensamento das algemas da imitação, e entender a religião como ela era entendida pela comunidade antes de aparecer a dissensão. Quero regressar, na aquisição de sabedoria religiosa, às suas primeiras fontes, e ponderá-las à escala da razão humana, que Deus criou para prevenir excessos na adulteração da religião, e assim se cumprir a sabedoria de Deus e preservar a ordem do mundo humano. E para provar que, vista a esta luz, a religião deve ser contada como amiga da ciência, empurrando o homem a investigar os segredos da existência, intimando-o a respeitar as verdades estabelecidas e a delas depender na sua vida moral e conduta. Em ambos estes autores encontro afinidades com o pensamento do enorme Ibn Khaldun - esse sábio do século XIV, de raiz andaluza, acerca do qual, no passado, Princesa de mim, já escrevi - quando na sua Introdução ao Livro dos Exemplos, a chamada Muqaddima, VI, XVIII (Das ciências racionais) escreve sobre persas e rum (nome que refere os bizantinos ou, conjuntamente, gregos e romanos) : De todos os povos cuja história conhecemos, aqueles que mais cultivaram essas ciências, são as duas grandes nações pré-islâmicas dos Persas e dos Rum. Segundo as informações que chegaram até nós, as ciências tinham nelas lugar de honra, porque elas tinham uma civilização florescente, e eram elas que governavam o mundo antes do Islão e quando ele surgiu. Nas suas diferentes regiões e cidades, as ciências eram muito prósperas. E, depois de percorrer a história das ciências nas civilizações persa , grega e romana, nomeando com rigor filósofos e outros sábios, Ibn Khaldun escreve: Depois da destruição do poderio grego, o poder passou para os imperadores romanos, que adoptaram a religião cristã e abandonaram as ciências racionais, tal como exigiam as religiões e as leis religiosas. Mas essas ciências puderam ser conservadas graças às colecções em que ficaram consignadas, e essas foram preservadas nas suas bibliotecas. Mais tarde, os imperadores romanos apoderaram-se da Síria, e essas obras científicas continuaram a ser preservadas. Depois, Deus trouxe o Islão. Os muçulmanos tiveram uma incomparável vitória, e os Rum estavam entre as nações a que eles retiraram o poder. Ao princípio, os muçulmanos guardaram a sua simplicidade e mostraram pouco interesse pelas artes. Mas em breve se desenvolveram o seu poder e o seu Estado. Tiveram uma civilização urbana mais próspera do que a de qualquer outra nação, cultivaram uma grande variedade de artes e de ciências, e desejaram conhecer essas ciências filosóficas. Com efeito, tinham tido ecos delas pelos bispos e padres cristãos que faziam parte dos seus súbditos. Além disso foram impelidos a pesquisá-las, em razão da natural aspiração do pensamento humano a esse género de ciências. Abu Jafar al-Mansur pediu ao imperador bizantino que lhe enviasse traduções de obras de matemática. O imperador fez-lhe chegar o Livro de Euclides e algumas obras de física. Os muçulmanos estudaram-nas e inteiraram-se do seu conteúdo. Então, quiseram ainda mais ardentemente conhecer o resto dessas ciências. Mais tarde, veio al-Mamun. Cultivando ele mesmo as ciências, tinha grande desejo de aprender. Entusiasmou-se por essas matérias e enviou embaixadores aos imperadores de Bizâncio, para procurarem ciências gregas e traduzi-las em árabe. Para o efeito, também mandou tradutores. Assim se pôde escolher e recolher todas essas ciências... Este mesmo sábio, muçulmano sunita, ou seja, seguidor fiel da tradição ou suna dos ditos (hadith) do Profeta (ou a este atribuídos), também escreveu que o homem é ignorante por essência e torna-se sábio por aquisição. Ou, ainda: o ensino das ciências é uma arte. A ele voltarei, Princesa de mim, em próximas cartas. Nalguma te contarei o paralelo que descobri entre trechos do seu pensamento e outros - que longamente citei, creio que por volta do Natal de 2012, em escritos meus para o Centro Nacional de Cultura - do frei Tiago Voragino, o, seu quase coevo, autor da Legenda Aurea.
Camilo Maria
Camilo Martins de Oliveira