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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

Minha Princesa de mim:
 

A parte VI do primeiro livro da Muqaddima, essa introdução ao Livro dos Exemplos de Ibn Khaldun (Túnis, 1332 - Cairo, 1406), trata das Diversas Ciências, Métodos de Ensino e Estados que os Afectam, e começa com o seguinte preâmbulo: Sobre o pensamento humano, que distingue o homem dos animais, e o guia para a aquisição dos meios de subsistência e para a cooperação com os seus semelhantes, com vista àquela, tal como para a consideração d´Aquele que ele adora e das mensagens transmitidas pelos Seus enviados. Deus submeteu ao homem todos os animais e colocou-os sob o seu poder. Deu-lhe, graças ao pensamento, a superioridade sobre muitas das suas criaturas. E logo adiante, já no corpo do primeiro capítulo (O Pensamento Humano), esclarece: Os animais têm consciência do que lhes é exterior, graças aos sentidos externos com que Deus os dotou: ouvido, vista, olfacto, gosto e tacto. Além disso, o homem é o único de todos os animais que pode perceber o que lhe é exterior por meio do pensamento, que está para lá dos sentidos. Isso graças às faculdades, localizadas nas cavidades do seu cérebro, que lhe permitem extrair as formas das coisas sensíveis, de nelas aplicar o seu espírito e delas abstrair outras formas. O pensamento é a livre utilização dessas formas para lá dos sentidos, e o exercício, pelo espírito que as percorre, da abstracção e da síntese. É esse o significado da palavra «corações» (af´ida), no versículo corânico «Deus deu-vos o ouvido, a vista e os corações». Af´ida é o plural de fu´ad, que aqui significa «pensamento». Tal processo genético das ideias, como também o decorrente lugar do homem na natureza, é conceito aristotélico, que terá chegado a Ibn Khaldun por via de tradução de Averroes, que, aliás, através da versão latina de Guilherme de Moerbeck, que traduziu Aristóteles para São Tomás de Aquino, influenciara já, na cristandade europeia, este teólogo dominicano, e o pensamento cristão, no século XIII. As ideias formam-se a partir da experiência sensorial, e da memória dela, pela faculdade de abstracção do espírito humano. Aquilo que distingue o homem dos animais é o poder e saber pensar. Digo, e repito, poder e saber, porque a capacidade (o poder) é um dom de Deus, uma distinção, e a sabedoria (o saber) é uma aquisição, isto é, o rendimento dessa capacidade, como o próprio Jesus já ensinava na parábola dos talentos: será dado o dobro ao que muito recebeu e fez render, será retirado o pouco a quem o enterrou, para que nada arriscasse... Em Aristóteles - nem sempre isto foi observado - a virtude é pertença da alma (do espírito de cada humano), mas de modo não acidental:  partamos do princípio de que há duas partes da alma que participam da razão [da inteligência], mas não é da mesma maneira que, uma e outra, partilham a razão. Pelo contrário, uma o fará porque é de sua natureza dar ordens, e, a outra, porque é da sua obedecer e escutar... E salto um passo do estagirita, só por me lembrar de outro, cuja lição, parece-me, tantas vezes esquecemos: Ora, a virtude tem duas formas: ou é moral, ou intelectual. Na verdade, não louvamos apenas as pessoas justas, mas também as pessoas inteligentes e os sábios, porque os louvores, está assente, dirigem-se à virtude ou à tarefa que ela permite cumprir...  ...Desde que as virtudes intelectuais se acompanhem de razão, tais virtudes pertencem a essa parte racional da alma que é capaz de dar ordens... ( in Ética a Eudemo).

Quero só dizer-te, Princesa, que, neste jogo de mim no que me rodeia - ou seja, na circunstância das nossas vidas - todos os dias dou graças por poder pensar, isto é, por tentar ultrapassar  as limitações dos meus sentidos, e poder ser, para além deles, um homem, esse ser tão estranho que, necessariamente, correrá sempre o risco admirável de se interrogar: sobre si, porque sempre pergunta o que é em tudo isto e, com uma agulha na alma, porque é que no meio disto está, donde veio aqui parar, para onde irá ou, last not least, para onde poderá ir e como... Vejo, nessa Weltanschaung medieva, quer a norte, quer a sul do Mediterrâneo - esse mar que separava, confrontava  e aproximava Islão e Cristandade - as mesmas angústias, as mesmas esperanças ou desejos, uma fé quiçá igual na natureza da interrogação das almas, talvez próxima pelo misterioso sentimento humano da transcendência de nós, certamente oposta pelas ditaduras das formas canónicas... No título II da parte VI do livro acima referido, intitulado O mundo das coisas criadas a partir a acção cumpre-se graças ao pensamento, Ibn Khaldun escreve: O mundo das coisas existentes compreende, por um lado, essências puras, como os corpos celestes e as suas influências, e os três tipos de seres criados a partir deles, isto é, os minerais, os vegetais e os animais - e todas essas coisas dependem do poder divino. Por outro lado, as acções que emanam dos animais, que resultam das suas intenções e que dependem do poder que Deus neles depositou para as cumprirem. Algumas dessas acções são ordenadas: são as acções humanas; outras não o são: são as dos animais. Na verdade, o pensamento percebe a ordem que existe entre as coisas criadas, quer naturalmente, quer convencionalmente... ... As acções do homem subjugaram o mundo dos seres criados e tudo o que ele encerra. Esse mundo está-lhe inteiramente submetido e à sua discrição. É o significado do vicariato, de que fala o Corão, quando Deus diz: «Vou colocar na terra um vigário». O pensamento é, portanto, a particular qualidade humana pela qual o homem se distingue dos outros animais. O grau de humanidade mede-se pela capacidade de estabelecer no pensamento a cadeia ordenada das causas. Todas as citações acima feitas teriam a concordância de Tomás de Aquino, o seu discurso não pareceria estranho ao pensamento reinante na cristandade coeva. Aliás, a definição do homem e do seu lugar na criação decorre do relato original do Génese (I, 27-28): Deus criou o homem à sua imagem, à imagem de Deus ele o criou, homem e mulher ele o criou. Deus abençoou-os e disse-lhes: «Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra e submetei-a; dominai sobre os peixes do mar, as aves do céu, e todos os animais que andam na terra». Cristianismo e islamismo, ambos são herdeiros da mundividência e da antropologia da Bíblia judaica, tal como da teologia de um Deus único e criador de todas as coisas, e que define a ordem natural dos seres. Nos apontamentos que outrora escrevi acerca do que chamei O presépio cósmico de Tiago Voragino - frade dominicano que, no século XIII, foi arcebispo de Génova e autor da famosa Legenda Aurea - digo que ele nos oferece ali um texto composto com a retórica de um sermão, em que apresenta a manifestação da Natividade do Senhor por cinco ordens de seres ou criaturas: os que são puramente materiais (corpos opacos, transparentes ou translúcidos, e corpos luminosos como as estrelas) que só têm existência; em seguida, por criaturas que têm existência e vida, como as plantas e as árvores; depois, por seres com existência, vida e sensações, como os animais; e ainda pelos que, além da existência, da vida e das sensações, são dotados de razão, como os seres humanos; finalmente, a incarnação de Deus foi proclamada pelos anjos que, além dessas quatro qualidades dos homens, receberam também o intelecto, isto é, a inteligência ou visão de Deus. Para estabelecer, Princesa de mim, estes paralelos entre o pensamento grego, bíblico, cristão e muçulmano, escolhi, no fim, como vês, a ilustração do presépio cósmico do Voragino. Para realçar a novidade que diferencia a visão cristã, essa crença dos discípulos de Jesus que é inaceitável, até blasfema, para um judeu ou um muçulmano: a incarnação de Deus, o transcendente Criador que se torna criatura sua. Escândalo lhe chamou São Paulo, escândalo para judeus e gentios, pois Deus deve estar acima e imune à corrupção da vida mortal. Curiosamente, Alcorão aceita Jesus como o maior dos profetas até Maomé, filho de Maria sempre virgem, homem, sim, Filho de Deus não. Mas o mesmo Livro rejeita, desmente, a morte na cruz. Nem o profeta Jesus poderia ter sofrido tal ignomínia... Pessoalmente, na visão mística que tenho do cristianismo e da história, lembro-me sempre muito de Teilhard de Chardin, e sinto, no íntimo de mim, essa força da constante evolução do mundo - para além dos factores  aristotélicos da geração e da corrupção, que a própria teoria da História de Ibn Khaldun adopta - como um processo escatológico de cosmogénese que é a continuação da revelação de Deus, quiçá uma teogénese...
 

Camilo Maria
 

Camilo Martins de Oliveira