JAPÃO: UM ITINERÁRIO DE MUITOS OLHARES
1. Origem mítica, natureza e raça: o sentido telúrico da pátria do sol nascente e sua gente
O mito fundador do ser nacional nipónico, e da sua história, consta da mais antiga narrativa escrita do nascimento do solo e do sangue japonês: O Registo das Coisas Antigas ou Kojiki, coletânea das antigas lendas, que começou a ser redigida no século VII, por ordem do príncipe Shotoku Taishi (574-622), filho do imperador Yomei e, depois, regente. Parece-me importante referir, desde já, que este príncipe era não só budista convicto, mas grande admirador e estudioso das coisas da China, desde urbanização, arquitetura e artes à organização política e administrativa; como dos ensinamentos de Confúcio, sobretudo pelo ênfase destes nas virtudes da lealdade e da ordem social. Conhecedor, também, da língua e literatura chinesas, cuja escrita tratou de aplicar ao japonês, até então iletrado. O Kojiki é coevo do Nihon Shoki ou Crónicas do Japão, ambos datando dessa introdução da escrita. Ambos produzidos por iniciativa oficial -- tal como, antes, o tinham sido, no Celeste Império, ou do Meio, as histórias Shih chi e Han shu -- foram sofrendo perdas e danos em guerras e incêndios, até terem os seus textos fixados, já no século VIII, respetivamente em 712 e 720, sob o imperador Gemmei. Cabe aqui nomear também os Fudoki ou Registos do Clima, todos estes oriundos de diferentes regiões do Japão, coligindo lendas e narrativas locais, mas registando também nomes e localizações de montanhas, rios, povoações, culturas agrícolas, com seus climas respetivos. Como veremos adiante, todas estas crónicas e observações se reúnem à volta de um propósito claro: identificar o Império do Sol Nascente, a origem e a história da terra e da gente que o constituem. Tal intenção não é originalmente nipónica, como testemunham registos mais antigos, quer chineses (como os Shih chi e os Han shu, acima citados), quer coreanos (como os Paekche Shinch´an e os Paekche Pon´gi, novos e velhos registos de Paekche -- um dos três reinos coreanos da altura, em contacto com o Japão -- ou a História dos Três Reinos, a Samguk Sagi). Mas, para quem, como eu, viveu no Extremo Oriente, terá sido mais viva a memória presentemente encontrada no Japão, talvez pelo maior lugar dado ao Kojiki, quer na cultura popular, quer nas escolas, quer na liturgia oficial do culto do Tenno (imperador), desde logo pela necessidade de preservar a cultura popular shintoísta e autóctone do esmagamento com que o triunfo do budismo a ameaçava. Na verdade, essas obras escritas -- o Kojiki já num esforço de adaptação da escrita chinesa à língua japonesa, o Nihon Shoki em chinês clássico -- quando do Império do Meio tinham chegado os caracteres e a literatura, tal como confucianismo e budismo, e ainda o esquema da organização política e administrativa de um império, preocupam-se sobretudo com encontrar, na tradição oral nipónica, e divulgar, mitos e contos primitivos que, primeiro, identificassem a origem da terra e da nação japonesa, e legitimassem o novo poder imperial e a sua divina ascendência.
Mas tentemos compreender melhor aqueles temas mobilizadores. Simplificando, diremos que deparamos ali com uma genealogia (tal como conhecemos outras em livros muito distantes destes, como a Bíblia) e com crónicas várias. A genealogia ou Sumera mikoto no hitsugi (linhagem solar dos soberanos) decorre da origem mítica da família imperial, as crónicas são relatos ou registos antigos dos tempos primordiais (Saki no yo no furugoto). Os deuses iniciais são surtos espontâneos, entre os quais aparecem Izanagi e Izanami, cuja união sexual é criadora. Da consumação desse casamento nascem as ilhas do Japão. Mas, por sua iniciativa, a deusa Izanami dá vida a uma deusa ardente, cujo fogo a queima e atira para o reino das trevas (Yomi no Kuni), vindo a ser infrutíferas todas as tentativas de Izanagi para a libertar, conseguindo apenas tapar a porta de Yomi com o seu corpo, pois a visão que teve do mundo inferior foi a do nojo da morte. O deus Izanagi deverá então criar outros Kami, com partes do seu próprio corpo, que serão o universo natural nas suas várias facetas. Do seu olho esquerdo formará o mais importante de todos: Amaterasu, a deusa solar. Um irmão desta, Susa no O, torna-se seu rival e inimigo, o que a levará a fechar-se numa gruta, assim privando de sol a terra e a vida. Mas Susa no O, trazendo-lhe um espelho (que hoje ainda é um dos atributos divinos do imperador) e com dança erótica, consegue tirá-la da gruta, pelo que será expulso do céu.
Visitei várias vezes, no Japão, os santuários shintoístas de Ise -- na costa do Pacífico, consagrado a Amaterasu -- e de Izumo, na costa do Mar do Japão, onde se originou o culto de Susa no O. Só quando Amaterasu envia o seu neto à terra, Okuni Nushi, descendente de Susa no O, deverá ceder-lhe o poder terrenal, que ficará na casa imperial, em troca da permanência do próprio culto dela em Izumo. Este o relato do Kojiki. Mas já no Nihon Shoki se regista o nascimento de Amaterasu como fruto direto da união sexual de Izanagi e Izanami. A diferença talvez se possa explicar pelo carácter mais japonês do Kojiki que, menos determinado por cânones chineses, não deixou de parte uma mitologia quiçá mais antiga. Não me demorarei nessa questão, apenas direi que ela é outro sinal da concorrência, sobretudo até à era de Nara (Heijo-kyo, 720-794), das tradições culturais, religiosas e cultuais, vindas da China, com as nativas nipónicas.
[Aliás, nem devemos estranhar dualidades de relatos antigos, também o livro do Génese tem duas versões da criação do homem e da mulher. Observo ainda que também na mitologia greco-latina encontramos analogias possíveis com as histórias aqui referidas a mitos nipónicos, desde Orfeu que tenta salvar Eurídice do inferno de Hades, cujo nome latino é Plutão, o deus do mundo subterrâneo, o tal que rapta Prosérpina, filha de Júpiter e Ceres, a deusa da terra ("mãe" dos cereais), levando-a para o seu reino inferior, casando com ela e enraivecendo a deusa sua mãe que então lança a maldição da escassez de luz e colheitas sobre a terra. Tal castigo, como sabemos, levará Júpiter a obrigar Plutão a devolver a filha à mãe, uma vez por ano: eis a festa criadora da Primavera. Histórias de benesses e raivas dos deuses, de colheitas e pão (ou arroz), todas têm a ver com a vulnerabilidade da condição humana... Faço este parêntese para alertar para a natureza original da alma humana, em contos diferentes sendo, sempre e jamais, a mesma.]
Mesmo antes do século III, advento do reino de Yamato, com seus sacerdotais soberanos hereditários -- que edificaram montes tumulares conhecidos por kofun -- teria havido, no Japão, sobretudo depois da introdução da cultura do arroz, cerca do ano 300 antes de Cristo, monarquias hereditárias reclamando-se de poderes divinos. No livro de Man´yoshu (Dez mil folhas), antologia poética de finais do século IX, a primeira de língua japonesa, com 4416 waka numerados, encontrei esta elegia que Kakinomoto no Hitomaru dedicou ao príncipe herdeiro Kukasabe, quando este morreu em 689:
No princípio do céu e da terra,
todos os milhares de miríades de kami,
reunidos em alto conselho
nas praias douradas do Rio Celeste,
entregaram o governo do Céu
à Deusa Hirume, a Luz dos Céus,
e, para todos os tempos,
enquanto céu e terra durarem, deram o governo
do País do Arroz abundante, dos campos de Bambu
ao poder da sua descendência,
essa que, abrindo as oito dobras da celeste nuvem,
fez a sua divina descida sobre a terra.
Eis o nosso nobre Príncipe, filho de Quem Brilha lá no alto,
olhando para esta terra sobre a qual,
como um Deus, reina o gracioso Rei
O que para aqui importa é lembrar essa mais do que milenar tradição, bem enraizada na alma japonesa, de uma terra, um povo, um imperador de singular origem divina, ali intocáveis, como tal, desde tempos imemoriais, na sua própria união: natureza, povo e rei. A par da consciência de terem nascido no sagai kuni -- o país dos desastres naturais, terramotos, maremotos furacões... -- os japoneses festejam social e religiosamente os encantos coloridos da primavera (p. ex. os hanami, festa das sakura ou cerejeiras em flor) e do outono (os momiji ou folhas de outono dos bordos) e, pelo calendário dos anos, os seus mortos e antepassados, as crianças de 7, 5 e 3 anos (shichi-go-san se chama a festa), e sobretudo o shogatsu (o Ano Novo, o dia certo do mês inicial: nessa noite, além do jantar ritual em família (hatsumode), vai-se aos santuários shinto dar graças, cumprimentar os kami e pedir-lhes proteção e ajuda; e, pela madrugada, vai-se ver o sol nascer (hatsuinode): é o Novo Dia, por excelência o dia do Sol Nascente... São inúmeros, e estão por todo o lado, como as festas das nossas aldeias cristãs, os Matsuri ou festivais de inspiração shintoísta. E outros há, os nenju gyoji, de origem chinesa, budista ou confucionista, alguns que até compõem calendários de ritos imperiais, mas não são esses para aqui chamados. Na origem, os matsuri são festas religiosas, ritos de propiciação dos deuses e dos espíritos dos mortos, pelas sementeiras e boas colheitas, saúde e paz, afastamento dos maus espíritos e temíveis ameaças. São, portanto, celebrações, muito populares, da comunhão da terra, dos povos e dos kami, com forte estrutura coletiva. Por isso incluem refeições com os deuses (naorai), oferendas aos santuários, ritos de bênção de campos, sementeiras e colheitas, pessoas e seus instrumentos, invocações de tradições da vida e de alegrias históricas, muitas vezes em divertimentos coletivos, das procissões de andores a representações teatrais, de justas de tiro ao arco a concursos hípicos. Um dos matsuri mais populares -- e grande atração turística -- contudo, não é um festival propriamente shintoísta: trata-se do Jidai Matsuri (Festival das Idades, ou dos tempos históricos) celebrado em Kyoto a 22 de Outubro, todos os anos. Foi instituído em 1895, em plena Restauração Meiji, com a mudança do imperador para Edo, que passou a chamar-se Tokyo, ou capital oriental. Um cortejo sai do palácio imperial de Kyoto e vai até ao templo de Heian, numa sucessão de procissões, andores e carros alegóricos dos períodos da história da cidade capital (Heian kyo, ou Capital da Paz, sendo o primeiro nome de Kyoto) desde o ano de 794, quando, de Nara, para ali se mudou a casa imperial. É importante não esquecer que este festival, não sendo religiosamente shintoísta, traduz, à sua maneira e com intenção política, a fulcralidade da linhagem imperial na identificação nipónica: os imperadores tinham residido em Kyoto por mil anos, 600 deles mesmo depois de se ter iniciado uma sucessão de governos shogunais instalados noutras localidades, sendo que o de maior longevidade foi o dos Tokugawa (1600-1867), sediado em Edo, e a única exceção a do shogunato Ashikaga (1338-1573), sediado em Kyoto, durante a era conhecida por Muromachi. Quando, após a restauração do poder imperial efetivo, com o imperador Meiji, este decide levar a sua residência para Edo, de forma a não ficar afastado dos titulares e serviços da administração central, que ali fora domiciliada pelo shogun, à nova capital imperial será então dado o nome de Tokyo, mas o Jidai Matsuri lembrará que, afinal, capital mesmo só a do imperador...
Para não me acusarem de obliterar os factos da atualidade, regresso ao que acima deixei dito sobre as celebrações do Ano Novo, as ceias rituais, as visitas aos santuários, o nascer do sol... Nem todos os japoneses ainda assim procedem: muitos há, sobretudo entre os jovens emancipados e casais de namorados, que preferem ir para um hotel celebrar a passagem de ano à ocidental. Como muitos europeus vão passar o Natal em férias nos trópicos... Tal como se tornou, nessa mesma classe etária, muito popular a noite de amor e champanhe de S. Valentim... Também outros, e de outras gerações, são hoje céticos ou descrentes dos mitos fundadores, e mesmo opositores da tradição imperial. Mas, apesar da Constituição de 1949 já não consagrar a origem divina do imperador, considerando-o apenas um símbolo do Japão, Nihon ou Nippon (Japão), continua a significar a origem ou raiz do sol, e os dois caracteres que dizem imperador, Tenno, em português lêem-se assim: Céu Rei, isto é, Imperador Celeste. Se a isto acrescentarmos a regular uniformidade física dos nipónicos e os modos, usos e costumes que, nas escolas, desde pequeninos, os formam como seres sociais, compreenderemos que, mesmo empalidecidos ou apagados, os mitos antigos marcam uma identidade.
Camilo Martins de Oliveira