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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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ATORES, ENCENADORES (LXXV)

EVOCAÇÃO DA ÓPERA DO TEJO E DO MEIO TEATRAL DA ÉPOCA
 

Acaba de ser publicado um livro da autoria de Aline Gllaschi-Hall de Beuvink, professora da Universidade Autónoma de Lisboa e especialista em História da Arquitetura e do Espetáculo: e precisamente, o estudo agora publicado, “Ressuscitar a Ópera do Tejo – o Desvendar do Mito” (ed. Caleidoscópio) evoca, com larga informação e muita qualidade, o Teatro- edifício, junto ao Terreiro do Paço que, durante 7 meses marcou a vida cultural e urbana de Lisboa, de 31 de Março a 1 de Novembro de 1755, até ser destruído pelo Terramoto. Ficaram entretanto memórias e documentos que o livro cita e analisa em detalhe: e ficou designadamente uma gravura das ruinas, da autoria de Le Bas, datada de 1757.

Num texto introdutório, a autora enuncia as sucessivas designações do Teatro, desde a origem até hoje. E até nesta variedade de identificação, podemos adivinhar, algo paradoxalmente, a transitoriedade catastrófica do edifício: Real Casa da Ópera, Teatro do Paço, Real Teatro de Lisboa, e até Teatro da Tanuaria.

E acresce que, nos escassos meses de atividade, apenas subiram à cena dois espetáculos, já que o terceiro estava em fase de produção: e foram eles a ópera “Alessando nell Indie”, de David Perez sobre libreto de Pietro Metastasio e “La Clemenza de Tito” de Antonio Mazzoni, também sobre libreto de Metastasio. O terceiro espetáculo, “Antigono”, dos mesmos autores, estava previsto para estrear em 4 de novembro: mas a tragédia real foi outra, três dias antes...Estaria em preparação um quarto espetáculo, “Artaserse”,de David Perez.

Gustavo de Matos Sequeira ainda evoca outro espetáculo, “Destruição de Cartago”. Mas sobretudo refere com detalhe a inauguração da Ópera do Tejo e as encenações. E destaca por exemplo, numa delas, a intervenção de um corpo de cavaleiros no palco, “marchando todos os rocins ao som da orquestra”!

E transcreve a opinião de um espetador qualificado, Frei João de S. José Queiroz, Bispo do Grão-Pará, o qual criticou não só o esplendor do teatro em si, como as despesas da produção operística:

“Não se pode nem deve sustentar a magnificência, o esplendor e o gosto de um teatro com uma orquestra soberbíssima, reputada pelos embaixadores estrangeiros como a primeira do mundo. Assim mo disse o conde de Peralada, que esteve na Favorita em Viena, e Nápoles, em Itália, e finalmente viu o teatro espanhol depois de apurado no governo dos reis D. Fernando e Dona Maria Bárbara”... (in “Teatro de Outros Tempos” 1933 págs. 189/190).

 E mais: a vasta bibliografia que enquadra a atividade operística do período, numa dimensão cultural europeia no que toca à música e de certo modo ao teatro, não era habitual entre nós. Mas por essa época assiste-se a um movimento de produção de espetáculos com reflexo imediato na edificação de teatros e mais espaços que deixaram nome e memória, muito embora muitos deles tenham sido atingidos pelo Terremoto.

 A época posterior acabou aliás por contemplar em termos de recuperação arquitetónica espaços de espetáculo que “prepararam” o grande movimento ao longo da segunda metade do seculo XVIII até se entrar em pleno no seculo XIX, época privilegiada no que respeita ao espetáculo teatral.

 O livro de Aline Beuvin sobre a Ópera do Tejo escrito “no período em que se assinala o 260º Aniversário da sua construção e fenecimento”, diz-nos a autora na Apresentação, é também extremamente esclarecedor no “desvendar do mito”, expressão que como vimos integra o título.

Por seu lado, Maria Alexandra Trindade Gago da Câmara e Vanda Anastácio referem com destaque a intervenção de Inácio de Oliveira Bernardes (1659-1781) como decorador e cenógrafo, já na altura com larga carreira, o que terá justificado a nomeação, por D. José, para o exercício desta atividade junto dos teatros da corte. Remetem para uma coleção de desenhos e esboços, salientando que “muitos desses traços mostram o seu conhecimento dos modelos estéticos barrocos, correspondendo alguns dos seus desenhos a soluções pessoais a partir de condicionantes ditadas pela ação dramática”, numa perspetiva de “adaptação da estética barroca a novas tendências proto-românticas” (in “O Teatro em Lisboa no Tempo do Marquês de Pombal” ed. MNT 2005 págs. 122 e segs.).

E veja-se ainda, entre outras obras, a descrição detalhada que encontramos em Marina Tavares Dias, para quem a Ópera do Tejo “talvez tivesse vindo a ser um marco na história da cidade. Pelas razões óbvias, é apenas uma memória difusa”. (in “Lisboa Desconhecida” vol. 5 1996 pág. 62). E remete-se para a descrição detalhada que faz Mara Ana T. Gago da Câmara no “Dicionário da História de Lisboa”, direção de Francisco Santana e Eduardo Sucena no verbete relativo a Teatros Régios (1999 pág. 899).              

Finalmente: sendo este Teatro concebido e construído com vocação operística, e nela tendo preenchido os escassos meses em que sobreviveu, o que se sabe da sua estrutura e o que historicamente se conhece do meio teatral da época não deixa excluir a hipótese de posteriores atividades teatrais, tal como sucedeu aliás no “sucessor” Real Teatro de São Carlos, inaugurado em 1793.

Sobretudo, se considerarmos que na época atravessava-se um período interessante de heterogeneidade teatral, no sentido global de texto e espetáculo.

Basta lembrar as sucessivas Dissertações que em 1757, Correia Garção apresentou à Arcádia Lusitana, definindo uma teoria geral do espetáculo, a partir a própria elaboração dos textos, mas conduzindo à produção teatral e ao que, mais tarde (e até hoje) se chamaria encenação. Aí se determina, designadamente, a necessidade de despojar a cena que deverá ser simples e austera.

E em 1766 apresentou a sua peça de estreia, “Assembleia ou Partida” que põe em cena, com ironia crítica, a preparação de um espetáculo teatral, no que respeita designadamente a interpretação e encenação:

Vejamos o que diz o personagem denominado Artur Bigodes:

“A ideia de teatro é bom projeto/O ponto só consiste em desbancarmos/ o da Rua dos Condes e Bairro Alto”

E mais adiante, o personagem Aprígio:

“Aqui trago compadre estes senhores/Ambos um non plus ultra de teatro./ São músicos, atores, dançarinos,/ Grandes poetas, tudo ao mesmo tempo/ (…) O Senhor Jofre, quando as áreas cantam/ As almas arrepia, cala o vento./ Pois o mancebo cá, o meu Inigo,/ esse vivo bemol, esse magano,/ Nos lances amorosos é um pasmo!”

 E no final, outra vez o Artur:

 “Inda o Fado não quer, inda não chega/ A época feliz e suspirada/ de lançar do teatro alheias musas/ De restaurar a cena portuguesa.”!...

Ora bem: o espetáculo de estreia não chegou ao fim, interrompido pela pateada e pelas vaias do público! Teófilo Braga é aliás categórico: “A comédia Teatro Novo é uma sátira constante aos que dominavam a cena portuguesa sem nada compreender da arte dramática” (in “História do Teatro Português – A Baixa Comédia e a Ópera” 1871 pág. 74).                                             


DUARTE IVO CRUZ