JAPÃO: UM ITINERÁRIO DE MUITOS OLHARES
2. A herança oriental da cultura japonesa: China, budismo e escrita
Buda, como sabemos, é o nome que adquiriu o príncipe nepalês Sidarta Gautama, do clã real dos Sakya, por isso também por vezes referido como o Sábio (ou Sage) dos Sakya, depois de ter atingido o despertar ou iluminação, debaixo da Árvore da Sabedoria (ou Sageza), Árvore da Bodhi. A sabedoria conseguida revelou-lhe que viver é penar até à morte, se nos ativermos ao nosso egoísmo e gosto pelas coisas sensuais e passageiras, sendo a própria morte o início de uma reincarnação do nosso sofrimento e dor em nova vida do mesmo. E mais lhe ensinou como, pelos oito caminhos (crenças, aspirações, pensamentos, palavras, modo de vida, atos, ascese e meditação), se atinge o Nirvana, ou a morte sem reincarnação. Mais tarde, em certas escolas, o Nirvana ganhou outro sentido possível, que curiosamente o aproxima dos conceitos cristãos de salvação e eternidade: o Buda seria imortal, apenas revestiu forma humana para ensinar, o Nirvana sendo então regresso ao Paraíso donde veio e onde agora espera os seus fiéis. Esta ideia é prevalecente no budismo Mahayana, ou da Porta Larga, que se espalhou pelo norte do extremo oriente, enquanto que o da Porta Estreita, ou Hinayana, se estabeleceu no sul e sudeste asiático. Neste, é apertada a entrada no Nirvana, conseguida, à vez, por cada um. No outro, a porta abre-se de par em par, de forma a que se salve o maior número possível. E para dar uma ajuda, lá aparecem os bodhisattvas (bosatsu, em japonês), que renunciaram a entrar logo no Nirvana, para andarem por cá a apoiar-nos. Como os santos católicos que por nós intercedem lá no Céu. É este Mahayana que chega à China e à Coreia, donde o rei Song de Paekche manda, em 552, ao imperador Kinmei do Japão uma mensagem missionária e uma imagem do Buda. Assim, é ainda no início da era Asuka (552-710), que a nova religião chega ao Japão. No ponto seguinte desta exposição aprofundaremos a história da estranheza e reconciliação entre budismo e shintoísmo. Por agora, limito-me a referir que, ao tempo da chegada do budismo, o imperador Kinmei consultou os seus ministros sobre a admissão dessa crença, tendo sido dividida a resposta entre os que eram por e os do contra. Falemos antes do príncipe Shotoku, neto de Kinmei e filho do imperador Yomei, depois regente da imperatriz Suiko, sua tia, que dele fez o seu sucessor. Mas ele morreu antes de ser, como o avô e o pai, imperador também.
Falar dele é, necessariamente, falar de Horyuji e muito mais. Vejamos, primeiro, o retrato que dele fez o professor da Universidade Imperial de Tokyo, Hiraizumi Kiyoshi, famoso defensor do nacionalismo japonês e do regime imperial. Recorro ao doutor Hiraizumi, precisamente por essa sua característica, que o leva, em Uma História do Japão -- sua última obra, escrita bem depois dele se ter demitido da Universidade, na sequência da derrota das forças imperiais na 2ª Grande Guerra -- a procurar valorizar a japonização do budismo na legitimação do poder imperial e da organização política do Japão, na que, afinal, terá sido, no fim da era Asuka, e mesmo antes da era Nara (710-794), a primeira constituição escrita do Império do Sol Nascente. Traduzo: O nome Príncipe Shotoku, cujo significado é "sagrado e virtuoso", provém da admiração do povo pelo seu carácter. Originalmente, chamava-se Príncipe Umayado (Príncipe Porta do Estábulo do Cavalo). Este nome veio-lhe do facto de sua mãe, a Imperatriz, que passeava pelo palácio, ter entrado em trabalho de parto à entrada do estábulo e aí ter dado à luz. Ele era superiormente inteligente. Conseguia prestar atenção simultaneamente a oito diferentes pessoas argumentando as suas respetivas causas, e emitir veredictos corretos sem qualquer confusão. Cheio de espanto, o povo também o apelidava de Príncipe dos Oito Ouvidos. Tinha vinte anos quando foi instituído Regente. A autoridade da corte imperial, que decaíra, por infortúnios vários, recuperou a sua glória e esplendor com este talentoso Príncipe Herdeiro e Regente... ...Outro feito do Príncipe Shotoku foi a Constituição. No 12º ano de reinado da Imperatriz Suiko (604), ele criou a Constituição de Dezassete Artigos. O art.º 1º estipula: "A Harmonia tem de ser valorizada, e deve ser honrada a recusa de oposição caprichosa". ...O art.º 2º diz: "Reverenciem sinceramente os Três Tesouros do Buda [a Sutra do Lótus, o Discurso sobre a Verdade Última e o Livro sobre a Zelosa Decisão], a Lei e o Sacerdócio"... ...O art.º 3º é o mais importante: "Quando receberes ordens Imperiais, nunca deixes de escrupulosamente lhes obedeceres. O senhor é Céu, o vassalo é Terra. O Céu estende-se por cima, e a Terra sustém por baixo. Quando isto é assim, as quatro estações seguem o seu curso, e os poderes da Natureza obtêm a sua eficácia. Se a Terra tentasse estender-se por cima, o Céu cairia simplesmente em ruína. Por isso é que quando o senhor fala, o vassalo ouve; quando o superior age, o inferior traz-lhe apoio. Consequentemente, quando receberes ordens Imperiais, não deixes de as executar escrupulosamente. Se deixares que haja desleixo nesta matéria, a ruína será o resultado". Outros artigos disporão contra a corrupção por "cunhas", as sevícias públicas, tal como encorajarão a justiça e a equidade, o mérito e a sua remuneração, as decisões refletidas e o trabalho aturado dos funcionários. O art.º 9º insiste na necessidade da boa fé, como fundamento do direito em todas as circunstâncias. E o 12º avisará contra o despotismo possível de funcionários públicos, prevenindo: "Num país não há dois senhores. O povo não tem dois senhores. O soberano é o mestre do povo de todo o país. Os oficiais a quem ele entrega cargos são todos seus vassalos". Há muito de Confúcio nisto.
O Horyuji, perto de Nara, é o único sobrevivente dos templos budistas que se ergueram no Japão, depois da vitória do Príncipe Shotoku sobre os adversários do novo culto, que tornara possível que este se tornasse público. É, portanto, não só o mais antigo edifício, religioso ou não, existente no Japão, como a mais idosa construção de madeira em todo o mundo. Foi fundado em 607, como reza uma inscrição feita na auréola da belíssima estátua do Buda Yakushi, ou da medicina, hoje conservada na sala dourada doutro templo, o Yakusiji, consagrado ao deus da cura. Deve-se essa fundação à ordem do imperador Yomei a seu filho Shotoku, para que este fundisse uma estátua daquele Buda, como ex-voto para a cura da doença que o afetava. Assim foi feito, mas o templo original foi destruído por um incêndio em 670, tendo a sua reconstrução sido feita em terreno próximo, e terminada em 711, quase 90 anos depois da morte de Shotoku, já na era Nara. Não obstante, o complexo atual ainda alberga a mais completa coleção de escultura budista da era Asuka, incluindo a tríade do Buda Shaka, notável peça de Tori Busshi, escultor de origem coreana, encomendada em 622, como ex-voto para a cura do Príncipe que, todavia, viria a morrer nesse mesmo ano, com sua consorte, um ano antes da escultura estar terminada. De Horyuji só posso dizer que sempre aconselho a visita e, nos meus tempos de Japão, levei lá muita gente... Sem querer ser maçador, lembro que há quem divida, compreensivelmente, a era Asuka entre esta, propriamente dita, e a Hakuho (645-710), este último período sendo o que vai da queda do clã Soga, ligado a Shotoku, já morto há 23 anos, à mudança da corte para Nara. De reter é que o vencedor dos Soga foi Nakatomi no Kamatari, fundador do clã Fujiwara, família que, além de ter condensado as relações familiares com a linhagem imperial, terá que ver, como adiante relatamos, com a Murasaki dos Contos de Genji e o magnífico templo de Byodo-in, em Uji -- "pátria" japonesa do chá: leia-se O Culto do Chá do nosso Wenceslau -- junto a Kyoto. Tal apelido deriva da cidade de Fujiwara, onde se instalara a capital imperial (de 694 a 710), a primeira, aliás, a corresponder ao padrão Tang chinês. Do que eu chamaria o subperíodo Hakuho (finais do século VII), que marca o início da ascensão dos Fujiwara, datam precisamente os mais antigos edifícios de Horyuji: o portão principal, o pavilhão dourado e o pagode. O Yumedono (pavilhão dos sonhos) é já do século VIII (Nara) e ergue-se no sítio onde estivera o palácio do Príncipe Shotoku.
Mas, neste capítulo, não nos demoraremos aí: vamos continuar a trepar pela história do Japão, apoiando-nos em monumentos da sua arte budista. Recorrerei a alguns exemplos que considero mais ilustrativos, deixarei de parte outras considerações, designadamente observações de pormenor ou análises críticas... Ainda durante a era Asuka (de 552 a 710), quando o budismo se "instalou" no Japão, a capital imperial mudava de sítio a cada morte de imperador. E assim também era queimado o palácio imperial, tudo isso pelo nojo shintoísta à morte e ao seu contágio, que se exprime já na visão de Izanagi, quando tenta salvar Izanami do mundo das trevas... Será com a vinda do budismo e a posterior estadia da corte imperial em Nara, que esta se tornará na primeira capital permanente do Império do Sol Nascente. O modelo político, como já vimos, vem da China, do Celeste Império. O urbanístico e arquitetónico também: Nara, com seu palácio imperial, segue as regras de construção da dinastia Tang, em Xian, a tal relíquia que hoje atrai milhões de visitantes à China... O plano elementar é retangular, como o de Chang-an (Xian) e, mais tarde Heiankyo (Kyoto), só que a cidade de Heijokyo (a capital Nara) desapareceu. Mas ficaram os grandes templos budistas de Kofukuji, Toshodaiji e Yakushiji, que, a vários títulos, referimos alhures. Mais imponente de tudo o que ficou -- e cujo pavilhão principal é a maior estrutura de madeira do mundo -- é o templo de Todaiji (ou grande santuário oriental), construído em 752 (reconstruído em 1709) para acolher uma gigantesca estátua do Buda Birushana, por ordem do imperador Shomu, na sequência de devastadora epidemia, em 748. Todos estes monumentos -- e as obras de arte neles conservadas -- podem ser visitados hoje em dia, não vou descrevê-los, apenas apontarei para algumas histórias, que são factos históricos, que os envolveram. Assim, por exemplo, houve grande rivalidade entre os monges de Todaiji e Kofukuji, ambos os mosteiros estando, aliás, localizados no Parque de Nara (Nara Koen). Certo dia de 1102, já a capital estava em Kyoto, os de Todaiji celebravam um festival em honra dos seus kami protetores, e os de Kofukuji alegravam-se em dengaku, dança relacionada com ritos agrícolas. Os colegas do lado não acharam graça, e desataram a frechar os vizinhos, tudo resultando em batalha campal, com danos infligidos aos edifícios de ambos os templos e mosteiros. [Lembro-me dos monges de S. Bento, no norte de Portugal, que, ao tempo das guerras miguelistas, saíam a terreiro para desatarem à cacetada aos liberais...] Ao Toshodaiji está ligado o nome do monge chinês, padre budista, Ganjin, com fama de santidade, vindo ao Japão em 754, com a missão de reformar comunidades corrompidas e conferir ordens canónicas a monjas e monges japoneses. Instalar-se-á no Todaiji, antes de ser para ele edificado o Toshodaiji. Este movimento de renovação "eclesial" -- que abrangeu as seis seitas budistas de Nara -- impunha-se, no final do século VIII, também pela necessidade de castigar a promiscuidade entre os mosteiros, a corte e o poder político. Ilustrativa é a história da intimidade da imperatriz Shotoku com uma espécie de Rasputine chamado Dokyo, escândalo que foi fator influente da posterior mudança da capital para Kyoto. Antes de para esta cidade passarmos, seja-me permitido acrescentar umas observações incidentes sobre a introdução da escrita chinesa no Japão.
Tanto quanto saiba, os primeiros documentos da sua prática no Império do Sol Nascente relacionam-se com o comércio. Aliás, antes do mais, com objetos ali comercializados, provenientes da Coreia, mesmo quando de origem china (utensílios e ferramentas, armas, artigos de luxo). Entre estes, contavam-se espelhos de bronze com ideogramas chineses gravados; pelo século V, começou-se a copiar, no Japão, esses caracteres, para aplicação em espelhos de fabrico local. Mais tarde, essa escrita passou a ser utilizada para registos de transações ou operações oficiais, feitos por funcionários chamados fubitobe, na maioria originários do continente. Só com a chegada, pelo século VI, de letrados confucionistas (gokyo hakase), vindos também da Coreia, e do encontro com o budismo, se foi cultivando a leitura dos clássicos e desenvolvendo, entre a aristocracia nipónica, a aprendizagem da escrita, de forma a reproduzir e imitar as lições dos mestres e os ensinamentos de Buda. O cume deste exercício é atingido pelo príncipe Shotoku que, já vimos, devoto budista, era estudioso e profundo conhecedor das letras e do pensamento clássico chinês. Dispunha, além disso, da autoridade política necessária ao processo educativo e legislativo que tinha em vista. Num convento de monjas anexo ao Horyuji, conserva-se um bordado feito por encomenda da consorte do príncipe: regista um dito de Shotoku a sua mulher: O mundo é folia, só o Buda é verdade. Tal pensamento é alheio ao espírito japonês original, onde não cabia, bem pelo contrário, qualquer ideia de separação da natureza ou de transcendência do homem. Por isso muitos consideram que, como afirma o professor Saburo Ienaga, tal como a filosofia grega começou com Tales de Mileto, e a chinesa com Confúcio, o pai da japonesa foi Shotoku.
Sem entrar aqui em alongadas considerações sobre as vicissitudes e evolução do que, finalmente, foi a adaptação da escrita chinesa às exigências fonéticas e sintáticas do japonês, deixo todavia duas pistas. A primeira leva-nos à existência atual de três grafias e "alfabetos" (expressão aqui manifestamente incorreta, ainda que sugestiva) do japonês escrito: os kanji, ou caracteres chineses originais, sendo 1850 -- mais 92 para escrever nomes pessoais -- os aprovados pelo Mombusho (Ministério da Educação), dos quais 881 são de aprendizagem obrigatória na instrução primária; os hiragana, ou caracteres simplificados e cursivos, que logo apareceram para os não letrados, bem como para a escrita de vocábulos nativos e sufixos, sendo em número de 48; e os katakana, ou caracteres cortados (kata... como em katana!), servindo para transcrição fonética de palavras estrangeiras, sobretudo nomes próprios, tendo este silabário o mesmo número de caracteres que o anterior. A segunda pista conduz-nos ao fenómeno da dupla pronúncia dos kanji; a chinesa, ou on-yomi, e a japonesa, ou kun-yomi. Para ilustrar este ponto, vou aos quatro pontos cardeais: norte pronuncia-se hoku ou kita; sul é nan ou minami; leste diz-se to ou Higashi; oeste dá por sai (ou sei) ou nishi. Como tom final de ironia, lembro que o silabário hiragana, estava reservado também para as mulheres, já que estas não podiam integrar a categoria dos letrados, a mesmo título que os homens. Por isso, Murasaki Shikibu, no século XI, apesar de conhecer os kanji e os clássicos chineses, teve de redigir em hiragana aquele que é o primeiro grande romance da literatura japonesa quiçá mundial, ainda hoje um dos maiores de sempre: Os Contos do Genji...
Camilo Martins de Oliveira