JAPÃO: UM ITINERÁRIO DE MUITOS OLHARES
3 (A). História política das religiões japonesas: poderes rivais e sincretismo religioso
A chegada do budismo ao Japão, como já foi dito, encontrou, na corte imperial a cuja porta batera, reações opostas: uns eram por, outros contra. O imperador (o rei de Yamato) Kinmei não decidiu sem antes consultar uns e outros: Soga no Itamo, e o seu clã, próximo da família imperial, arguiu que se os países vizinhos veneravam Buda, não via razão para que o Japão não o fizesse; Mononobe no Okoshi e Nakatomi no Kamako opuseram-lhe os argumentos relatados no Nihon Shoki: Aqueles que governaram o Império neste nosso Estado sempre cuidaram de louvar na Primavera, no Verão, no Outono e no Inverno os 180 Deuses do Céu e da Terra, e os Deuses dos Campos e do Grão. Se agora mesmo começarmos a louvar em vez deles Divindades estrangeiras, pode temer-se que incorramos na cólera dos nossos Deuses Nacionais... [Isto até nos traz à memória, o diferendo bíblico entre Moisés e Aarão...] O imperador decidiu não autorizar o budismo como religião nacional, mas permitiu a Soga no Itamo o culto privado dele. Este levou então para casa a estátua de Buda que o rei coreano de Paekche oferecera ao Imperador, e ali montou um templo. Para sua infelicidade, estalou uma epidemia e muita gente morreu. Claro que os seus adversários logo reclamaram dizendo que os Deuses locais castigavam assim o facto de Soga guardar a estátua do Buda. Por ordem imperial, esta teve então de ser lançada ao rio, a casa de Soga foi incendiada. Poucos anos passados, porém, o príncipe Shotoku e a família Soga derrotam os anti-budistas, e nem a queda dos Soga, vinte e três anos após a morte de Shotoku, afetará o avanço do budismo no Japão: os Fujiwara, vencedores dos Soga e seus futuros substitutos junto da linhagem imperial, por casamentos, começarão por impor a reforma Taika -- digamos, em termos genéricos, que é uma constituição budista do Império do Sol Nascente -- e serão, por muitas e longas décadas, os regentes do mesmo, além de grandes protetores da seita Hosso, do Kufokuji, em Nara, tal como instigadores da mudança da capital de Heijokyo (Nara) para Heiankyo (Kyoto), cidade onde edificaram dois dos mais interessantes exemplares da arquitetura budista japonesa, o Chosunji e o Byodoin, designadamente este último, consagrado ao Buda Amida. Durante a era Heian (de 794 a 1185), com a capital em Kyoto, o budismo ganha mais peso político, na sequência da sua afirmação em Nara: não esqueçamos que o facto desta ter sido a primeira capital fixa do Japão, e a segunda, depois de Fujiwara, a ser desenhada segundo o modelo imperial Tang, não é apenas um símbolo da legitimação budista do imperador... Na verdade, se os reis de Yamato se reclamavam da linhagem divina de Amaterasu, o conceito político de império vem da China. Cabe-nos agora tentar perceber como se japonizou o budismo, como se politizou, como se sincretizou com o shintoísmo nacional.
O que acabo de referir terá servido, aos de ouvido interessado, para balizar o interesse das questões que, displicentemente, abordaremos de seguida: uma tem a ver com o estrangeirismo da nova religião e com a sua inculturação política, se assim me posso exprimir; outra diz respeito à rivalidade entre as seitas budistas, não tanto por questões de ordem doutrinal, sobretudo de interpretação e modo de praticar os ensinamentos do Buda, mas mais em função dos benefícios materiais e das portas de poder que diferentes fações da aristocracia e da família imperial a cada uma pudesse conceder e abrir; finalmente, concluiremos com esse quadro, persistente na vida da maioria dos japoneses, que serenamente conseguem ser simultaneamente shintoístas e budistas. A expressão "portas do poder" (kenmon) foi criada na teoria do kenmon taisei, ou sistema das portas do poder, de Kuroda Toshio (1926-1933),que analisa as três grandes eras do Japão medievo (Heian, Kamakura e Muromachi) pela perspetiva do poder partilhado por três zonas de influência: a nobreza da corte (koke ou kuge), a aristocracia guerreira (buke) e os templos e santuários (jisha,). Além de partilharem responsabilidades de governação, trocam entre si apoios e benesses. No caso particular do budismo, durante as três eras que já acima referi, tal cumplicidade dos templos budistas com algumas grandes famílias, entre as quais a imperial e a Fujiwara, no período Heian, ou a Ashikaga, com os zen, no Muromachi, é promíscua, e vamos dando exemplos. Nos períodos Nara e, já na idade moderna, Edo ou Tokugawa, ressalta mais a mútua obrigação entre o Estado e o Budismo: este, na sua organização e atividade, era controlado pelo outro que, em contrapartida, o financiava e protegia.
O budismo encontrou, no Japão, estranheza inicial (se a corte se dividiu, o povo, esse, nem sequer o entendeu logo), bem como conseguiu uma adoção posterior que tem manifestamente a ver com um projeto político, ou seja, o da afirmação do poder da casa imperial sobre os clãs que povoavam o país -- para o que pareceu útil a invocação da centralização praticada ou desejada por vizinhos chinos e coreanos, a título, digamos, de aula prática, posto que as teorias dos sábios chineses só a poucos seriam acessíveis... Deitaremos, depois, um olhar sobre como veio paulatinamente a desenhar-se o budismo japonês. A princípio, houve rivalidades cortesãs, e entre clãs: os Soga eram pró-budistas, os Nakatomi eram anti. Shotoku ergueu-se acima de todos e começou a obra, deixando marca. Mas morreu cedo e, vinte e três anos depois, os Nakatomi derrubavam os Soga, e fizeram-se as reformas Taika (646), reforçando o novo modelo de estado iniciado por Shotoku. Convertido às novas ideias, o clã Nakatomi transformar-se-á em Fujiwara, nome que, no ocaso do século VII, situava a primeira capital imperial de modelo Tang no Japão. Mas o povo nada percebia, nem da nova religião, nem da reforma política. Para a gente do campo, Buda (Butsu) era o nome de mais um kami, este estrangeiro, a juntar aos inúmeros espíritos e divindades que incorporavam o universo, e o animavam. Esta ocorrência iria ser aproveitada, pelos monges budistas, não para diferenciar as suas crenças das do shintoísmo popular, mas para proselitismo: afinal, Butsu e seus kami, quando devidamente invocados, também podiam acudir, socorrer, curar doenças, abençoar sementeiras e colheitas. E o surto de templos e mosteiros desempenhava, junto do povo, a função de visibilidade do budismo, e, pelas prédicas e celebrações que fomentava, a de instrução, catequização. Acabou por conseguir, por exemplo, que, em caso de aperto, tanto valesse recorrer a um santuário shinto como a um templo budista. Uma das características do budismo japonês será assim a importância de práticas mágicas e de ritos propiciatórios no seio de algumas das suas seitas, designadamente aquelas mais próximas das camadas populares. A nova fortaleza do estado centralizado e do poder imperial, mesmo se exercido pelos seus regentes, como os Fujiwara, a partir das reformas Taika, teve de assentar a sua implantação popular pela proliferação de kokubunji, ou templos budistas regionais, subsidiados pelo governo, por iniciativa do imperador Shomu, também patrocinador do Todaiji, onde se acolheu o grande Buda Vairocana, e se invocava sobretudo o Sutra da Luz de Ouro, pela proteção da nação. Esse templo-mosteiro simbolizava, ao mesmo tempo, a unidade do universo e o poder imperial, como tradicionalmente era acreditado, mas já numa perspetiva budista. Em Nara se inicia um longo período de "budistização" da casa imperial, que se continuaria na era Heian, na capital Kyoto, e, depois, pelos tempos fora, até à restauração Meiji, movimento que oporá o poder imperial ao shogunato e ao estabelecimento político vigente, e ressuscitará, exorbitando até o seu antigo esplendor e significado, os ritos e a proclamação da legitimidade shintoísta que, sem terem sido abandonados nem esquecidos, haviam permanecido na sombra, enquanto liturgia oficial.
Retomando o fio à meada dos grandes templos ou mosteiros históricos budistas a não esquecer numa visita ao Japão, passamos a Kyoto. E já que estamos com os poderosos Fujiwara, começaremos o nosso percurso de Heiankyo pelo Byodoin, o mais esplendoroso exemplar do que alguém chamou estilo Fujiwara, certamente o mais interessante e sugestivo templo do budismo dito da Terra Pura, consagrado ao Buda Amida. Vale a pena ir até lá só para contemplar, desde leste, a fachada do corpo principal do templo, que é o Pavilhão da Fénix: arquitetura elegante, leve, divinamente proporcionada, sugere-nos a ave mítica a pousar, de asas ainda abertas. Ela, que sempre renasce das próprias cinzas, símbolo alado da ressurreição, acolhe-nos. Ao centro do pavilhão encontra-se a sala preciosa, onde sobre um lótus se senta Amida. Visto de baixo para cima, o Buda dourado, em posição de meditação, parece elevar-se ao céu, pelo efeito da ascendente chama de ouro que o envolve e das apsaras que o rodeiam, em prece ou tocando músicas celestiais. Mas se, à hora certa, estivermos atentos e virmos chegar o raio solar que, penetrando por uma abertura circular, lhe iluminará o rosto, então teremos compreendido tudo... Ou quase!
Entretanto, vamos trepando a história, saltamos para Kamakura, já voltaremos a Kyoto. Aqui, em Heiankyo, afinal, permanecem os imperadores até à restauração Meiji. Mas os governos efetivos andarão por aí, o Japão periférico acorda, revela-se, talvez não assuste demais porque a corte imperial se entretém com o umbigo poético, artístico e maneirista... O bakufu (governo) de Kamakura é o primeiro caracteristicamente militar, surge, não só pela vitória do clã Minamoto sobre o Taira, na guerra Gempei, mas por razões mais profundas e extensas, pela necessidade de afirmação da classe militar, uma nova abertura de portões do poder; pelo sentimento de que o centro do Império se consumia em jogos e caprichos de corte, em modos supérfluos, sem consideração pela dureza da vida do povo, e do próprio exercício da autoridade do estado nas províncias: a governação tem de sair de Kyoto, e tem de ser entregue aos militares que, desde o século X, vêm servindo como administradores e polícias das províncias japonesas. Assim, Minamoto no Yoritomi será o primeiro Shogun, Condestável do Império e, simultaneamente, cabeça do bakufu, isto é, chefe do governo. Doravante, os shogun terão sempre presente a necessidade da sua legitimação pelo imperador, mas já não são cortesãos como os regentes Fujiwara, antes serão os senhores feudais, ou da guerra, que se impuserem, num Japão desunido, e que também irá conhecer guerras fratricidas. Mantendo-se a identidade nacional à volta, não já de um imperador budista chefe de estado, mas de um imperador praticante do budismo, ainda que carregando a linhagem shintoísta de Amaterasu. O segundo e o terceiro shoguns foram assassinados, o poder efetivo passou para as mãos da família da viúva de Yoritomi, os Hojo, que foram controlando uns shogun comandados, reservando para eles o título de regentes, em jeito de manter aparências para Kyoto ou, melhor, para recordar que, mesmo longe da residência do imperador, e nas mãos de um shogun, o poder se legitima sempre pelo elo que o liga ao celeste soberano e à sua capital. Em 1281, o regente Hojo Tokimune desbarata os invasores mongóis, graças aos kamikaze ou ventos dos deuses, tufão que destruiu a armada inimiga. Em 1333, o imperador Godaigo tenta um restabelecimento do seu poder efetivo, mas em 1336 impõe-se o shogunato dos Ashikaga, que durará até a chegada dos portugueses. É este que nos leva de volta a Kyoto, em visita aos pavilhões de prata e de oiro. Em Kamakura, onde tinha amigos que várias vezes visitei, é agradável estar, sobretudo para os hanami das cerejeiras em flor. Mas há pouco para ver, penso, quando é curta a estadia no Japão, mesmo o grande Buda é mais pequeno do que se abriga no Todaiji, em Nara.
Antes, porém, de visitar monumentos em Kyoto -- tantos deles são templos e mosteiros Zen! -- cabe dizer aqui umas palavras sobre a chegada dessa escola budista ao Japão e das suas relações com a classe bunke, ou os guerreiros samurai. Passa-se isso ainda na era Kamakura. Aliás, nesse período da história do Japão se desenham três orientações do budismo japonês, todas elas nascidas no seio da escola Tendai: a Jodo, ou da Terra Pura, a Zen, e a Nichiren. Esta chama-se pelo nome do seu fundador, monge profético, promotor da reforma do Estado pelo budismo, de modo a evitar guerras intestinas e assegurar o bem estar geral (razão por que teve apoio da pequena e média burguesia urbana e comerciante): o monge Nichiren acabou exilado na ilha de Sado, o budismo com o seu nome continuou como projeto político nacional, no século XX sendo mesmo nacionalista. É o mais nipónico de todos. A escola Jodo reage às mesmas incertezas e interrogações de um período histórico conturbado, mas não tem projeto político próprio, antes confia na misericórdia salvífica do Buda Amida, o que a torna atraente para as classes populares. O Zen, como mais alongadamente explico no meu Fomos em Busca do Japão, cria fortes laços com a emergente classe guerreira dos samurai, opõe-se ao budismo tradicional e ritual da aristocracia cortesã.
Camilo Martins de Oliveira