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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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JAPÃO: UM ITINERÁRIO DE MUITOS OLHARES

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3 (B). História política das religiões japonesas: poderes rivais e sincretismo religioso

 

   Quem quiser percorrer o caleidoscópio do Japão budista, encontrará em Kyoto quase tudo, ou um pouco de tudo: desde o Nishi Honganji, popularíssimo templo Jodo com que Tokugawa Yeasu embirrou, ao Toji, da seita Shingon. Mas imperdível mesmo -- e talvez merecendo um dia inteiro de percurso a pé -- é a zona leste de Kyoto, do Ginkakuji ao Kyomizudera, pela senda dos filósofos e o Maruyama Koen, sempre pelo sopé do Higashiyama.

   Outro dia bastará para os imperdíveis de Kyoto ocidental, mais o palácio imperial e o Nijojo. Destes dois falaremos noutro capítulo. Mas na zona ocidental de Kyoto, é incontornável a visita ao Ryoanji, templo zen, fundado em 1473, pelo daimyo Hosokawa Katsumoto, poderoso senhor, aliás antepassado de uma família que se converteria ao cristianismo, e daria ao Japão, já em finais do século XX, o seu único primeiro ministro católico. Aqui se encontra o célebre jardim desenhado por Soami e considerado a quintessência do jardim zen, o tal em que, num mar de gravilha, assentam quinze rochinhas, como ilhas, qua ninguém consegue contar de uma assentada: seja qual for o nosso ponto de vista, o máximo que contamos é catorze... Antes, vindos do centro da cidade, poderemos (devemos) passar pelo complexo de templos de Myoshinji, de 1373, onde se recolhem, quer o mais antigo sino de bronze fundido no Japão, em 698, quer o mais antigo sino cristão, fundido em Portugal, em 1576, e que serviu no campanário da igreja da Assunção, dos jesuítas, na Kyoto imperial do século nambam. Finalmente, é por ali que se encontra o pavilhão dourado, o Kinkakuji, impecavelmente reconstruído, em 1955, no mesmo local e em cópia exatíssima do original, datado de 1397, erigido pelo 3º shogun Ashikaga, para sua casa de retiro e, depois da sua morte e por sua ordem expressa, sagrado templo pelo seu filho Yoshimochi. O tal que um monge incendiou, no século passado, como conta Mishima no seu romance. Daqui, poderemos avançar para leste e começar a nossa visita de Kyoto oriental pelo Ginkakuji, o pavilhão de prata, ali edificado, em 1482, por outro shogun Ashikaga, Yoshimasa, o 5º da dinastia, neto de Yoshimitsu, que levantara o de ouro. Quis assim imitar o avô, já na fase final da glória dos Ashikaga, muito enfraquecidos pelas guerras civis que assolavam o Império. O sítio é aquático e frondoso, convida ao descanso, e há quem diga que Yoshimasa por lá passou uns bons tempos, com poesia, música, mulheres e saké. Seja como for, o shogun Ashikaga Yoshimasa, a quem os historiadores tendem a apontar responsabilidades no declínio da dinastia Ashikaga, foi certamente mecenas e patrono das artes zen, ao ponto de haver quem diga que, na era Muromachi, a arte se pôs ao serviço do budismo zen. A ideia de que "quanto menos, mais", que, afinal, despoja a intuição de artifícios -- e tal explica o êxito do espírito zen junto dos militares, como o gosto da pintura a tinta da china, ou da caligrafia como gesto concentrado e simples -- sente-se bem na arquitetura dos edifícios, como na sua decoração interior, e ainda nas artes ditas menores, como o arranjo de flores, a cerâmica, e muito mais: a cerimónia do chá, o teatro nô, as retenções ou reservas convencionais no comportamento convivial das pessoas. Diferentemente de muitos outros templos zen, que têm jardins secos, isto é, sem águas e, sobretudo, feitos de gravilha e pedras, as vilas-templos que são o Kinkakuji e o Ginkakuji erguem-se, tal como o Byodoin dos Fujiwara, no meio de grandes jardins, desenhados de forma a oferecerem ao passeante o agrado de árvores, sombras, flores, águas e rochas. Mas quero chamar a atenção, e vão perceber porquê, para os interiores do Pavilhão de Prata, de que estamos a falar: uma sala búdica, no piso superior, com janelas desenhadas em ponta de lança, ao estilo zen; o Togudo, anexo, era a capela privada do shogun, composta de uma salita de quatro tatamis e meio (tatami=1,83mx91cm), o dojinsai, exemplar mais antigo do gabinete de trabalho ou shoin, que havia nos mosteiros e em residências nobres. Aí, Murata Juko, mestre de chá de Yoshimasa, preparava o espesso chá verde, folhas esmagadas e cruas, agitadas em água quentíssima, mas sem infusão, bebida amarga que os monges primeiro ingeriam como medicamento, ou para os ajudar a longas horas de meditação. Murata, em reuniões de gente seleta convocada pelo shogun, em que tal chá era cerimoniosamente servido e bebido, explicava, com intenção estética, virtudes zen, como simplicidade, sobriedade e elegância, ou mesmo princípios propriamente estéticos, como a assimetria ou a importância da imperfeição para a beleza. Um pequeno defeito realça sempre a maior beleza do conjunto. Esta qualidade está bem presente na cerâmica rústica do Japão, por exemplo, nas xícaras ou tijelas em que se toma o chá na cerimónia respetiva, e que os convivas silenciosos longamente contemplam.  

   Deste ponto, isto é, do Ginkakuji, iremos caminhando para sul, percorrendo, primeiro, a senda da filosofia, 1200 metros ao longo de um ribeiro ladeado de sakura e de bordos... Assim chegaremos ao Nanzenji.

   É este o mais importante templo zen de Kyoto. No século XIII, levantara-se aqui uma residência de lazer para o imperador Kameyama, arderam os edifícios em guerras civis, os atuais datam do século XVI. Tudo por aqui merece visita, não só o templo e mosteiro principal e o enorme portão sanmon (com a vista que se alcança lá de cima), mas os outros templos, sobretudo o Nanzen-in, com as suas águas e jardins, e ainda a possibilidade de, de fora, podermos enxergar monges lá dentro, em meditação... Há, à volta alguns excelentes restaurantes de cozinha monástica, designadamente de yodofu, pratos de tofu fervido. Bem bons! Mais abaixo, nas proximidades do parque público de Maruyama Koen, dois templos, o Shoren-in, da seita Tendai, e o Chion-in, da Jodo, merecem um salto para ver as magníficas pinturas de escola de Kano que encerram. Continuando, atingiremos a Kyomizuzaka, a ladeira que nos conduz, por entre casas tradicionais de comércio, ao templo de Kyomizudera, cuja gigantesca estrutura de madeira foi erigida em 798, reconstruída em 1633. Só estando lá se sente o fascinante encanto do lugar, e se alcança a vista de Kyoto, mas sobretudo, no Outono, a explosão cromática dos momiji. Ao fim da visita, pode-se ir devagar, paulatinamente, andando até Gion, ver as gaikko ou gueixas que, pelas ruas do bairro antigo, vão indo para as casas de chá ou de pasto em que atuam. E jantar lá. 

 

Camilo Martins de Oliveira