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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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JAPÃO: UM ITINERÁRIO DE MUITOS OLHARES

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 4. A revelação de outro mundo: os nambam e o século cristão
 

   Tudo o que se tem vindo a contar do Japão, penso, ajudará a perceber o ambiente social, político e cultural que os missionários jesuítas e os mercadores portugueses vieram encontrar em meados do século XVI. Em Portugal, melhor dizendo, cá entre portugueses, concentramo-nos muito, demasiadamente, numa elegia elogiosa, encomiástica, saudosa e fadista, do nosso passado histórico, de encontros pioneiros, dos mundos que demos ao mundo, etc... etc... Reagimos, com indisfarçado ressentimento, ao que pensamos ser um apagão dos nossos pretéritos feitos na literatura e celebrações da Europa sobre a herança comum, de cada vez que alguém não os glorifica. Todavia, nem sempre nos interrogamos sobre o porquê de tanta, e tão boa, investigação historiográfica dos descobrimentos ultramarinos se dever a estrangeiros... Lembro, pensando no Extremo Oriente e no Japão, Charles Boxer e Michael Cooper, ambos súbditos de Sua Majestade Britânica, além de muitos outros exemplos. Já hoje, as coisas vão mudando, os nossos historiadores vão saindo do nosso acanhamento, até consultamos outras fontes, as do lado de lá, para percebermos que ideia, afinal, outras gentes tinham de nós. Como sentiram os japoneses de quinhentos/seiscentos essa inesperada chegada de homens de pele branca, indumentária estranha, armas de fogo, portadores de mercadorias, animais, costumes desconhecidos, acompanhados de criados e escravos de cor escura, todos, em fila, formando procissões em que capitão-general, oficiais, clérigos, mercadores e servos ocupavam posições atribuídas, desempenhavam funções determinadas, caminhavam com ordem?

   O primeiro registo de uma reação aos recém chegados portugueses encontra-se na crónica japonesa Yaita-ki, que reporta um comentário dum intérprete chinês, que se prestou a essa função, aquando da primeira reunião de portugueses com gente de Tanegashima: Estes homens são mercadores de Seinanban [barbária do sudoeste]. Entendem, até certo ponto, a diferença entre Superior e Inferior, mas não sei se eles têm propriamente um sistema de etiqueta cerimonial. Comem com os dedos, em vez de pauzinhos, como nós fazemos. Mostram os seus sentimentos sem qualquer autocontrolo. Não conhecem o significado dos caracteres escritos. São gente que passa a vida a deambular por aqui e ali. Não têm morada certa e trocam as coisas que têm pelas que não têm, mas com tudo isso são gente inofensiva. Esta observação é mais compreensível se atendermos ao facto de que os primeiros portugueses a arribar em Tanegashima não eram fidalgos nem missionários, mas simplesmente mercadores ambulantes e aventureiros, que iam fazendo pela vida, em busca de fortuna por longínquas paragens. Além disso, no Japão coevo, vingava o regime de uma ordem social rígida, inspirada pelo confucianismo, com regras protocolares rigorosas, tudo, ainda por cima, apoiado pelo desejo de paz ordeira e segura, depois de muitos anos de guerras feudais. Na consciência moral nipónica, como explico alhures, as obrigações ou deveres sociais, como, por exemplo, a solidariedade, o respeito e a obediência aos superiores, constituem aquilo a que chamam giri, e o comentário do intérprete chino tem a ver com isso. Por isso mesmo, quando chegaram capitães generais e oficiais, fidalgos portugueses, e os missionários jesuítas, todos tiveram grande cuidado com as aparências e prestígio do seu vestuário e comportamento, o que lhes granjeou admiração e reverência dos japoneses.

   Mas o contacto com os portugueses também se celebrou pelo lado ninjo da consciência japonesa, impulsionador de afetos como de criação artística, chamemos-lhe o reino do coração: por dentro de um samurai, com suas armas, ou dum daimyo, com o seu leque símbolo de poder, encontravam-se seres humanos acolhedores e simpáticos, que gostavam de convidar os estrangeiros para suas casas, a comerem, beberem e dormirem, e ainda se pelavam por ser convidados para os navios portugueses, para mais uns ágapes. Espicaçados pela curiosidade, até escravos negros, que serviam os portugueses, eles chegavam a convidar, para melhor os conhecerem. E pareciam felizes com tudo isso, a julgar pela facilidade com que começaram a imitar os nanban no traje, na alimentação e até nas rezas... Ou pela rapidez com que dezenas de milhares de japoneses se iam convertendo ao cristianismo. Claro que a prosperidade trazida pelo comércio externo que os portugueses asseguravam ajudou à festa e ao desejo de terem com eles as melhores relações. No meu Fomos em Busca do Japão encontram-se algumas páginas com muito interessantes, e divertidas, descrições de cenas que ilustram este relacionamento. Lembro ainda que ali falo também de questões relacionadas com a inculturação do cristianismo, os problemas que suscitou, o destino que teve, bem como da introdução da medicina ocidental, designadamente por obra do jesuíta Luís de Almeida, cristão novo, dos biombos namban e de um pequeno museu, pertencente à família Kitamura, em Osaka, onde, além de memorabilia cristãs, se encontram alguns dos mais interessantes byobu do género. Local a visitar.

   Mas há mais: o momento da chegada dos portugueses coincide, não só, com o movimento de unificação política do Japão, conduzido por Oda Nobunaga, Hideyoshi Toyotomi, Tokugawa Yeasu, mas com o período áureo da arte japonesa, bem como da edificação de grandes castelos, como Himeji, em condições de se defenderem melhor das armas de fogo, e de as utilizar com maior resguardo, e de palácios fortificados, dentro das cidades, como Edo e a própria Kyoto, onde se levantou o Nijojo, símbolo do poder shogunal, próximo do palácio imperial, este, aliás, destruído e apenas existente na sua reconstrução de 1855...

   O castelo de Himeji é, pela grandeza como pela conservação, tal como por ser modelar, imperdível. A nossa saudade, ou simplesmente lembrança, talvez preferisse a visita ao de Osaka, edificado por Toyotomi Hideyoshi, e que o padre Luís Froes tão cuidadosamente descreveu. Também seria visita mais cómoda, situa-se no centro da cidade. Mas trata-se de uma reconstrução do pós-guerra... Tal como o castelo de Nagoya e o Nijojo (este também imperdível), o de Osaka é um hirajiro, ou seja, um castelo construído em planície. Mas enquanto os outros dois, também edificados em cidades, e sobretudo como símbolos de poder e autoridade, nunca foram atacados, o de Osaka esteve no centro da disputa do filho de Hideyoshi com Tokugawa Yeasu, que o derrotou. Himeji, levantado logo no início do século XVII, representa bem as fortalezas construídas fora dos centros urbanos pelo daimyos sobreviventes às Guerras Onin (1482-1558), no fim do shogunato Ashikaga e princípio do movimento de unificação do Japão e centralização do poder iniciado por Oda Nobunaga. Levantado como fortificação feudal, ele é, todavia, uma afirmação do poder do primum inter pares, o shogun Tokugawa. Quando os senhores feudais, depois de conseguirem territórios mais vastos, viam as guerras entre eles cessarem, a pouco e pouco se iam tornando mais representantes e garantes da autoridade central do que reizinhos ou senhores da guerra. Assim, nessas terras se foram então erguendo castelos imponentes, mais como sinais da força do poder do que como bases militares. Sugiro a leitura do capítulo O Nijo-jo, do Fomos em Busca do Japão, não só pelo que agora tratamos, mas também pelos exemplos da tal unidade da natureza com a vida dos homens de que falei atrás.

   O encontro dos portugueses com o Japão dá-se num período crítico da história nipónica, quando o Império do Sol Nascente vai saindo da Idade Média e entrando na Moderna, não só pela consolidação da unidade nacional e pela concomitante centralização do poder político, mas também pelo renascimento das artes, como já não se via desde a era Heian. No momento em que o Japão se reencontra consigo, se renova e deslumbra, chegam uns estrangeiros de longe, professando e confessando uma religião estranha à própria cultura nipónica, falando uma língua incompreensível, que se escreve com caracteres desconhecidos e não figurativos, portadores de uns engenhos que reproduzem em muitas cópias os textos batidos em chumbos e já não manuscritos... Esses homens são tão estranhos como o seu vestuário, alimentação e bebidas, o modo como cumprimentam e falam, os produtos e animais que trazem. Os biombos nanban são retratos fiéis dessa nova realidade e da estranheza admiradora que provoca, e ainda dão asas à imaginação de como seriam as terras de onde vêm, como podemos hoje ainda ver nos painéis que representam a partida dos kurofune, dessas naus enormes que vão ancorando nos portos do sul do Japão. Das armas de fogo à medicina, da astronomia à cartografia, da imprensa a tantos objetos e usos do quotidiano, os nanban jin trazem muitas novidades. E estas caem bem nessa época de ouro da arquitetura e outra artes japonesas, que dá pelo apelido Momoyama. Pessoalmente, sem querer desvalorizar, antes pelo contrário, a designação do período Azuchi-Momoyama (1568-1600), que tem precisamente a ver com a reunificação do Japão, por Oda Nobunaga e Toyotomi Hideyoshi, logo antes de Tokugawa Yeasu, acho que, para efeitos de sentimento e avaliação das artes, ele se pode iniciar nas duas últimas décadas da era Muromachi (ou no fim do shogunato Ashikaga) e prolongar-se até ao fim definitivo do século cristão, ou seja 1640... mais ou menos! Comecemos então um percurso pelas artes dessa era.

   Muito embora se diga que esse século Momoyama artístico, de meados do XVI a meados do XVII, seja o da arte para os senhores, os poderosos -- os conceitos estéticos que a regem chegam da era Muromachi, impregnados de cultura zen, valorizando, com "raffinement", a rusticidade, a simplicidade, a pobreza engenhosa. Na cerimónia do chá, por exemplo, o rigor da simplicidade de utensílios e ritos, já ensinada aos Ashikaga pelo mestre Murata Juko (1453-1503), é retomado pelo mestre de chá de Toyotomi Hideyoshi, o famoso Sen no Rikyu, sem prejuízo de algumas inovações, entre elas os gestos retirados da liturgia católica em uso nas igrejas portuguesas dos jesuítas. Mas a influência dos portugueses nas artes e na arquitetura da era Momoyama foi mais extensa e profunda. Desde logo, porque a Nau do Trato, oferecendo regularmente novas oportunidades de comércio aos japoneses, promoveu o desenvolvimento de uma classe burguesa de comerciantes, cuja  fortuna podia pagar trabalhos aos artistas e artífices, estando, por exemplo, bem documentados os objetos de laca e metais preciosos, e de outros materiais, de clara inspiração cristã ou lusíada, tal como vestuário e acessórios, tudo isso a que se chamou a moda nanban. Mas deixo a palavra a Murase Mieko, japonesa, professora de história da arte na Columbia University, em Nova Iorque: Um acontecimento histórico singular deveria desempenhar um papel direto e crucial na evolução artística da era Momoyama: a chegada dos Portugueses ao Japão... ...Os Japoneses deram mostras de grande curiosidade relativamente a eles, interessando-se pelo seu porte, pelo seu modo de vida e pelas mercadorias que negociavam... ...Inúmeros biombos foram pintados para comemorar a chegada dos Portugueses ao porto de Nagasaki... …Um número mais reduzido de imagens e pinturas cristãs realizadas no Japão, imitando estilos ocidentais, constituem um parêntese na história da arte japonesa... ...Mas os pintores japoneses também copiaram pinturas europeias profanas, representando ocidentais em vestuário tradicional, mas sobre pano de fundo exótico. E eu posso acrescentar, que, com os portugueses, aprenderam eles a desenhar e pintar mapas, e a identificar, pela pintura, regiões e gentes de longínquos continentes... E, dando como exemplo, precisamente, o castelo de Himeji, a professora Murase reconhece a inesperada contribuição dos Portugueses para a arquitetura militar do Japão -- como já vimos, por força da introdução das armas de fogo e a consequente necessidade de reforçar, por desenho e materiais utilizados, as muralhas das praças fortes, e rodeá-las de fossos.

   Himeji é exemplo dessa contribuição dos portugueses. Inicialmente erigido ainda por Toyotomi Hideyoshi, creio que em 1581, foi finalmente construído pelos Tokugawa, terminado em 1608. Apesar dos éditos anticristãos do primeiro -- aliás nunca rigorosamente aplicados -- e de algumas "apostasias" de daimyo, como Omura Sumitada, que fora distinto apoio dos nossos missionários, o cristianismo e a Igreja japonesa conheceram tempos felizes no início do shogunato Tokugawa que, todavia, os perseguiria mais tarde. O jesuíta português João Rodrigues, o Tçuzu ou intérprete, ainda por volta de 1606, era estimado e prestigiado na corte shogunal. Mas já fora expulso, ele também, quando, em 1635/36, se edificou, em Nikko, a noroeste de Edo (hoje Tokyo), o mausoléu do primeiro shogun da dinastia Tokugawa, outra visita imperdível. Curiosamente, em 1873, na afirmação da restauração Meiji, ali se ergueram também os mausoléus de Minatomo Yorimoto, o 1º shogun, e de Toyotomi Hideyoshi que, sem ter recebido o título de condestável, foi o generalíssimo que transmitiu a Tokugawa Yeasu, o Japão unificado pelo movimento que, antes dele, o seu chefe, Oda Nobunaga, iniciara.

 

Camilo Martins de Oliveira