CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA
Minha Princesa de mim:
Não poderia amar outra que não vós.
Não, Senhora, não o poderia fazer.
Outra meu peito não poderia encher,
mesmo que Vénus descesse até nós.
Graciosos, doces, vossos olhos são.
Num só relance podem desfazer-me
e logo apenas noutro refazer-me:
em dois golpes, morte e vida me dão.
Inda que cinco mil anos vivesse,
nenhuma outra faria que eu pudesse,
como de vós, enamorado ser.
Pois teria de renovar-me as veias,
que estas estão de vosso amor bem cheias:
mais outro nenhum pode lá caber.
Traduzo, Princesa, de Ronsard (1524-1585), este soneto, publicado em 1552, no seu Amours. Dizem que o poeta francês o terá dedicado a uma dama florentina, famosa pela beleza e pela castidade: Je ne sçaurois aimer autre que vous. / Non, Dame, je ne sçaurois le faire... Conta Richard Osborne, nas suas notas à edição, pela EMI, em 1959, do registo da Capriccio - de Richard Strauss, dirigida por Wolfgang Sawallisch, com a Philarmonia Orchestra e um leque notável de vozes, entre outras, as da Schwarzkopf, do Fischer-Dieskau e do Gedda - conta, então, Osborne que o mesmo soneto, peça importante do libreto escrito para aquela ópera (a 15ª e última de Richard Strauss) por Clemens Krauss e o próprio compositor, foi, a pedido daquele, traduzido para alemão por Hans Swarowsky, para servir de soneto composto pelo poeta Olivier, personagem de Capriccio, que, naquela peça de conversação para música (chamou-lhe o compositor Ein Konversationsstück für Musik in Einem Akt) , o dedica à protagonista, a Condessa Madeleine. A letra de Ronsard-Olivier e o tema de Strauss-Flamand (Flamand sendo o nome dado ao músico que, na ópera emparceira com o poeta Olivier), serão, quase ao cair do pano, retomados pela Condessa e essa melodia a acompanhará, mesmo no termo, quando o mordomo lhe diz apenas que está servida a ceia. Antes do anúncio, porém, esse criado interrogará com o olhar o espelho em que a Condessa se despedira da própria imagem, sem entender, ou por não ter ouvido, o que ela ao seu reflexo dissera, e te vou traduzir. Começava assim: Ihre Liebe sglägt mir entgegen zart gewogen auf Versen und Klängen... Os seus amores em mim se enlaçam, em doce tecer de versos e sons. Deverei rasgar tecido tão frágil? Não estarei eu mesma nele já tecida? A quem dar a palma? A Flamand, alma grande com tão lindos olhos? Ou a Olivier, poderoso espírito de apaixonado homem? E agora, minha Madalena, que te diz o coração? És amada mas não te podes dar, agradava-te seres fraca - quiseste brincar com o amor, e acabaste a arder, não sabes como safar-te! Se escolheres um, perdes o outro... Pois não se perde sempre que se ganha? Há ironia no teu olhar, mas quero que me respondas, não gosto desse olhar trocista. Calas-te? Madalena, Madalena, queres queimar-te em duas chamas? E tu, ó espelho de Madalena enamorada, poderás tu aconselhar-me, ajudar-me a encontrar o epílogo da ópera dos meus dois amores? Será possível um fim que não seja banal?
A indecisa luta de Madalena entre dois amores, dois homens, dois encantos (a poesia e a música) não terminará, é afinal dilema antigo, esse mesmo que Stefan Zweig, amigo de Richard Strauss, descobrira noutro libreto, de Giovanni Battista Casti Prima la musica, poi le parole, e que foi a primeira inspiração para esta ópera. Para Richard Strauss, a sua Capriccio é acima de tudo um diálogo do espírito sobre a natureza dual do teatro cantado. Todavia, parece que amor há só um, já que o soneto de Ronsard, cujo autor literário, na ópera, é o poeta Olivier, é integralmente recitado duas vezes (pelo irmão da Condessa, primeiro; pelo seu próprio autor, depois, com compreensível ênfase). E duas vezes cantado também, com melodia composta por Flamand: por este mesmo, primeiro; e pela Condessa, depois, antes de interrogar ao espelho, como acima leste, sobre o epílogo da lide dos seus dois amores. O mesmo soneto posto na mesma melodia, nessa música que acompanhará a Condessa, ao cair do pano, quando ela se encaminha para a sala onde está servida a ceia que tomará sozinha...
Tenho para mim que Strauss também procura ilustrar a capacidade da música ser tão discreta como poderosamente expressiva: antes da união fatal da melodia de Flamand à poesia do soneto de Olivier, já logo na abertura da ópera todos escutam em silêncio um sexteto para cordas, que o compositor dedicara à Condessa, e que revela esse poder que a música tem de ser, quer íntima, quer eloquente. Olivier e Flamand, no decurso da execução dessa peça inicial, contemplavam ambos Madeleine, e são as primeiras vozes que se ouvem, terminada aquela, em diálogo:
Flamand - Encantadora, hoje e sempre!
Olivier - Também tu?
F - Cerrou os olhos, está muito emocionada...
O. - O seu olhar ilumina-se, ao escutar os meus versos, brilha mais...
F.- Tu também?
O. - Sim, sim!
F.- Assim, cá estamos nós...
O. - Enamorados inimigos...
F. - Rivais camaradas...
O. - Versos ou sons?
F.- Cabe-lhe, a ela, decidir.
O.- Prima le parole, dopo la musica!
F.- Prima la musica, dopo le parole!
Esta amigável altercação não é musicada. Mas o sexteto inicial já dissera o que a música, sem palavras, sabe dizer...
E no coração de Madeleine, em interrogação ao espelho, nasce a resposta, o acordo final, pois que onde há amor(es) o desamor não cabe: Vergebliches, Müh´n, die beiden zu trennen... Inútil esforço é tentar separá-los: palavras e tons, num só jacto, geram novas belezas. Mistério dessa hora, cada arte se redime pela outra! Ocorre-me a lembrança das capelas imperfeitas da Batalha. Talvez nos comova mais o esforço dos arcos incompletos, do que a imaginável perfeição. Mas só pela imperfeição podemos amar a perfeição, e se completam as artes. O amor é a necessidade apetecível de completar, de unir. Muitas vezes repito essa frase lapidar de Georges Bataille: L´érotisme c´est l´affirmation de la vie jusque dans la mort. Não penso então em Eros como filho de Afrodite, mas antes no mito órfico da criação do mundo. Cito a Professora Marília Futre Pinheiro: E assim, de forma misteriosa, desse tenebroso espaço de vazio infinito, desse Ovo cósmico, primordial, gerado no ventre imenso e oco da Noite, nasceu o mais belo de todos os deuses: o bissexuado Eros, o deus do Amor, de asas douradas, a quem alguns chamam Fanes ("aquele que revela" ou "aquele que brilha"), porque deu a conhecer (tornou claro, brilhante como a luz) e trouxe à luz do dia aquilo que até ali estivera escondido nas entranhas da escuridão: as primeiras gerações divinas e o universo no seu todo. Eros representa, assim, não apenas o princípio criador que assegura a continuidade das espécies, mas ainda o espírito unificador do cosmo. E, pela sua capacidade de nos dizerem o indizível, de nos darem, em seus frutos, o sabor do mistério, as artes nos recriam e unificam o mundo. Capelas imperfeitas, abrem-nos à desejável aventura...
Camilo Maria
Camilo Martins de Oliveira