CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA
Minha Princesa de mim:
Não conheço Vanda Cabrito, apenas li, num jornal português, que é aluna da Universidade Europeia e que declarou: Senti que o mundo perdeu as suas barreiras e os estrangeiros deixaram de ser estrangeiros e passaram a ser vizinhos. Achei bem dito, e confesso que, pelos tempos que correm, me soube bem ouvir uma jovem afirmá-lo. Sabes como penso que o nosso mundo já terá chegado a um ponto de globalização irreversível, que só nos conduzirá a melhor situação se formos capazes de entender os modos de convivência necessários à paz e ao progresso aberto a todos. Caso contrário, corremos o risco de barbaramente em conjunto cairmos num barranco de cegos.
Vivemos já assustados por vendavais de morte, que nos vão varrendo, desde a Promenade des Anglais, em Nice, às águas do Mediterrâneo e a tantas cidades da Síria e do Iraque. E não só. Há guerra, terrorismo e outros atentados - mais ou menos generalizados, tantas vezes promovidos ou consentidos, até em nome da "higiene" ou por simples preferências egoístas - há um surto de xenofobia que, em certos casos, como nos das potências emergentes, ou saudosas de soberbas antigas, que nada auguram de tranquilizador para um mundo em que todos já somos omnipresentes e ubíquos.
Vem isto a talho de fouce por ter reencontrado hoje - logo depois de ter lido a frase de Vanda Cabrito - uma referência ao "meu" Stefan Zweig. Passo a contar-te. Le Monde des Livres, suplemento semanal, saiu hoje com uma edição especial intitulada Lectures pour temps troublés, que assim justifica:
«Le Monde» solicitou a escritores, artistas e homens de ciência que lhe dissessem que autores os ajudam a «aguentarem-se» num período tantas vezes percebido como sendo difícil de compreender e que é ameaçador. De acordo com eles, que livros poderiam dar um sentido àquilo por que passamos, transmitir-nos força, esperança ou alegria?
Uma das respostas é de Roland Gori, psicanalista e escritor, autor, entre outros livros, de De quoi la psycanalyse est-elle le nom? e de L´Individu ingouvernable. Com Stefan Chedri, fundou o movimento Appel des appels, «coletivo nacional para resistir à destruição voluntária e sistemática de tudo o que tece os laços sociais»... E fala-nos de Stefan Zweig, tão cruelmente lúcido. Recenseia um livro que o autor austríaco publicou em 1936 (repara bem na data), cujo título, na versão francesa de Alzir Hella, é Conscience contre violence. Começo por te traduzir o primeiro parágrafo da resenha de Roland Gori:
No momento em que, no claro-escuro das crises, renascem os monstros dos fanatismos cruéis, dos nacionalismos cínicos, dos recuos identitários friorentos, é preciso reler Zweig! Todo Zweig, o escritor das paixões, o Europeu das Luzes, o cidadão do mundo, o judeu apátrida, o apaixonado pela diversidade brasileira, única "terra de aventura", num mundo caótico que por tempo demasiado alinhou a classificação dos povos pelo seu poderio industrial, financeiro e militar. É preciso reler o seu elogio de um Brasil, um tanto ou quanto imaginário, transformado em modelo de comunidade humana em que a cultura nasce da mistura de raças, da fusão dos particularismos religiosos, étnicos e históricos. É preciso reler Zweig, os seus apelos aos Europeus, a sua «luta pela fraternidade espiritual», a única que poderá «curar» o Velho Continente da «doença mortal» dos nacionalismos nascidos da deslocação dos mundos submetidos aos imperialismos mercantis, à fragmentação dos povos hipnotizados por ideologias fanáticas.
Fala depois do livro, cujo título francês (Conscience contre Violence) traduz parcialmente a segunda parte do título original alemão: Castellio gegen Calvin, oder, Ein Gewissen gegen die Gewalt ("uma consciência contra a violência"). A edição inglesa lê The Right to Heresy - Castellio against Calvin. A portuguesa, da Livraria Civilização, apenas Castélio contra Calvino. Deixo-tos todos, porque todos juntos dizem do que o livro trata: da oposição de um saboiano, Sebastio Castellio (1515-1563), humanista amigo de Erasmo, e que também o foi de Calvino (ambos tinham sido discípulos de Cordier) com quem rompeu, precisamente em razão de pretender, contra o ditador da reforma protestante em Genebra, que a heresia é também um direito, e não é lícito matar um hereje: Queimar um homem não se chama "defender uma doutrina", mas "cometer um homicídio". Contra a violência de João Calvino e Guilherme Farel (padre revolucionário e terrorista) - que, como escreveu Voltaire mais tarde, perpetraram o primeiro assassínio religioso da Reforma - e perante a execução de Michel Servet, além de muitas outras perseguições ideológicas e religiosas, Castellio não se calou. Por isso Zweig lhe chama soldado desconhecido da grande guerra de libertação do género humano.
Eis o que todos nós deveríamos ser. Hoje também, mas num mundo que já não é o de Castellio nem Erasmo, nem sequer o de Stefan Zweig. Este enquadrava, e bem, a figura independente e tolerante do católico Erasmo na Europa dividida pelos movimentos da Reforma e da Contra Reforma - um homem que escreveu em latim, língua comum da cristandade europeia ocidental - como aquele que foi, de facto, de todos os escritores e autores ocidentais, o primeiro europeu consciente, o primeiro "combatente pacifista", o defensor mais eloquente do ideal humanitário, social e espiritual […] Erasmo via na intolerância o mal hereditário da nossa sociedade. Tinha a convicção de que seria possível pôr fim aos conflitos que dividem os homens e os povos, sem violência, por mútuas concessões, porque eles dependem todos do domínio humano; estava persuadido de que quase todas as questões poderiam regular-se por via transacional, se os condutores e excitadores não viessem constantemente deitar azeite ao lume [...] Pôr harmoniosamente de acordo os contrastes do espírito humano - tais foram a missão e o sentido da vida de Erasmo. Possuía, para empregar a expressão de Goethe, que se parecia com ele na igual aversão aos extremos, "uma natureza comunicativa" [in Erasmo de Roterdão, de Zweig, na versão portuguesa de Alice Ogando, Livraria Civilização, Porto, 1950].
Como já algures te disse, Princesa de mim, no seu comovente Die Welt von Gestern - Erinnerungen eines Europäers, mais do que brevemente nomear Erasmo, Zweig quer nele incarnar-se, agora num tempo de entre duas grandes guerras, em que ele mesmo se sente já "um vencido da vida", tal como o humanista de Roterdão, parte inteira de uma elite europeia que, afinal, nada pode fazer. Logo no prefácio desse livro de saudades do mundo de antes de 1914 e de angústias face ao que os anos 30 entretanto tinham trazido, a carregar o horizonte, escreve, a abrir: Nunca atribuí tanta importância à minha pessoa que me sentisse inclinado a contar aos outros a história da minha vida. Muito mais teve de acontecer, infinitamente muito mais do que aquilo que geralmente cabe a uma geração - ocorrências, catástrofes, provações - até eu ganhar coragem de iniciar um livro que tem como personagem principal, ou melhor, como tema central, o meu próprio eu.
Adiante, noutros passos, vai confessando:
A minha atitude natural em todas as situações de perigo foi sempre a de evitá-las e não foi só nessa ocasião que tive de aceitar como justa a acusação de ser indeciso, tão frequentemente feita também, noutro século, ao meu venerado mestre Erasmo de Roterdão...
...Nas minhas novelas é sempre quem sucumbe ao destino que me fascina; nas biografias, é a figura de quem tem razão, não no espaço real do êxito, mas única e exclusivamente num sentido moral: Erasmo e não Lutero, Maria Stuart e não Isabel, Castellio e não Calvino [...] eu andava a ler as provas do meu livro sobre Erasmo, onde tentava apresentar um retrato espiritual do humanista que, tendo embora compreendido mais claramente o absurdo do seu tempo do que os profissionais que querem mudar o mundo, por uma fatalidade trágica, não fora capaz de, com todo o seu bom senso, lhe barrar o caminho. Quando tivesse concluído essa apresentação encapotada da minha própria pessoa... [tradução de Gabriela Fragoso, em O Mundo de Ontem - recordações de um europeu, Assírio e Alvim, Lisboa, 2005].
Falo-te destes exemplos de outros tempos e circunstâncias, Princesa, lembrado sobretudo das barbaridades cometidas durante e depois das guerras de Espanha e 2ª Mundial. E de muitas outras. Mas quero sobretudo chamar-te a atenção para o esforço doloroso da consciência moral: refletirmos é pensarmos sobre o real e o possível, decidirmos é pensarsentir e escolher entre desviar caminho ou agir como o samaritano.
Em próxima carta voltarei, com a ajuda de pensadores nossos contemporâneos, ao tema da expressão, tão acertada e profética, da Vanda Cabrito: já não são estrangeiros, são nossos vizinhos. Mas, nesta ainda, deixo-te um pequeno texto de Véronique Nahoum-Grappe, antropóloga francesa, filha do célebre Edgar Morin (judeu sefardita, cujo nome de nascença era Edgar Nahoum) discípula de Emmanuel Le Roy Ladurie, celebrado professor de História, e da antropóloga Françoise Héritier, que sucedeu a Claude Lévy-Strauss no Collège de France, onde hoje também já é professora emérita:
Quando circunscrevemos o tema dos refugiados à crise atual, tornando-o em sintoma de doença, esquecemos que a história humana é feita de tais migrações. Os Estados Unidos são um país de imigração fundado sobre o massacre de populações indígenas. A Europa invadiu todos os continentes, cuja demografia e economia mudou com o trato industrial das populações africanas. Como podemos nós hoje dizer aos migrantes que atravessam mares e fronteiras para escapar a condições de vida insustentáveis: "voltem para casa"? Distinguir a boa migração política da má migração económica não faz sentido. Migrar, a partir de países como a Síria, é antes do mais salvar a pele. Os franceses mais hostis aos refugiados fugiriam do mesmo modo, se estivessem na miséria e debaixo de bombas. O medo e a luta pela sobrevivência são forças poderosas, que põem os humanos em pé de igualdade.
Camilo Maria
Camilo Martins de Oliveira