UM ESTRANHO ENIGMA - capítulo VII
Olhando para Palmira, estremunhado, e vendo-se calçado, passou-lhe pela ideia o que fizera na véspera, não sabendo já se o sonhara se o vivera de facto. Vendo-se descalço, pouco lhe tinha restado senão desencantar um sapato em algum lado, circunstância improvável, mesmo apesar de, nos estendais suportados por paus altos, as vizinhas terem o costume de deixar os ténis dos putos a secar ao sol. Tomado pelo desespero, entrou no prédio de Kalu, que tinha a porta aberta, e subiu a escada, dando um murro na porta ao chegar ao segundo andar. Surpreendido a meio do programa da tarde, que via religiosamente, ouvindo especialistas em criminologia, vida social, ou doenças dos pés com uma atenção difícil de explicar: chegando a ligar do telemóvel para números de valor acrescentado tal e qual uma idosa com colesterol alto, Kalu abriu-lhe a porta. “Sócio, comé?” “Orientas-me uns ténis, mano? — explico-te depois.”
Saídos do quarto, onde se calçara, ao som das palmas da plateia alegre do Nós às Três, e esquecendo-se por momentos da sirene do carro da polícia, que se ouvia além das persianas corridas, não ocorreu a Jaime que seria importante desfazer-se do sapato que deixara no quarto do amigo. Estava estoirado e definitivamente comprometido, agora que envolvera Kalu no seu álibi de improviso. Na sala, à meia-luz, corria uma brisa de meio da tarde, ajudada por uma ventoinha antiga, que parecia soltar ainda mais calor, e levantava ao rodar duas tiras de tule lilás a ela presas. Cuidadosamente decorada por bibelôs sem valor, os dois não pareciam estar sozinhos na sala, mas antes vigiados, em primeiro plano, pela colecção de pequenos cães de porcelana, dispostos em círculo numa prateleira no armário em que a televisão da avó de Kalu estava incrustada: um exército de dissidentes, a que faltava, olhando-os de perto, as pontas de uma orelha, ou uma das patas. A toda a volta, sorria-lhes uma galeria de pequenas figuras, longinquamente parecidas a Kalu, em poses de festa e passeio, vestidas ora de noivas, contra o fundo turquesa acetinado, e já roído pela luz, de um estúdio fotográfico de bairro, ora apenas em roupas leves de praia, numa viagem memorável a Badajoz, emoldurada sobre um naperon de croché numa prateleira acima da televisão. Aquela gente morta, e apatetadamente feliz, saberia onde o encontrar, assemelhando-se por instantes a uma parada de detectives-fantasma, estranhamente apaziguadores.
Do ponto de vista das escassas relíquias da avó de Kalu, acumuladas com zelo e meia dúzia de trocos ao longo de décadas, a rua estava agora entre parêntesis, parecendo-lhe o mesmo que as brincadeiras com os amigos de que se despedia ao fim do dia, nas férias de verão, quando Vitória, sua madrinha, o chamava para jantar, tinha então nove anos. Na televisão, comentava-se um incêndio em Vila Pouca de Aguiar, lendo-se em rodapé que Joselito fora transferido para o Valência. Resolvido o assunto dos ténis, Kalu já pouco parecia dar pela sua presença, não se lembrando sequer de lhe perguntar porque tinha tanta pressa. Quem o lamentaria tivesse ele ardido no incêndio ou se fosse preso? O pessoal do café? O Sr. Arnaldo, do lugar, onde fiava minis? De que lhe valia a urgência em safar-se daquilo que não tinha feito, senão para confirmar que estava sozinho, o que apenas disfarçava a cada novo mortal, dominando o bairro como apenas o dominaria quem nada tem a perder? E então sentou-se junto a Kalu, perguntando-lhe se sabia onde ficava Vila Pouca de Aguiar. “Portugal é bué grande”, “um gajo aqui fechado é que não pensa nisso.” Mas quem era Kalu? Estaria a dormir de olhos abertos? Haviam passado menos que poucos minutos, e o seu silêncio diante das pernas longas da agente Palmira começava a enrascá-lo.
UM ESTRANHO ENIGMA | Folhetim de Verão CNC 2016
Ilustração © Nuno Saraiva [Direitos reservados]
Apoio