Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

UM ESTRANHO ENIGMA - capítulo VIII

 

 

 

Recapitulemos: Duas morenas, gémeas, um jovem de skate, seu nome: Jaime. Não se lhe sabe o apelido. É um Jaime. Qualquer um. Pobre. Vive num Bairro – no Bairro, lugar indemonstrável, impraticável. Que Bairro? No meio disto tudo, personagens: uma das morenas gémeas, heroinómana. A outra, polícia? Para além de Jaime, personagens de circunstância: Fulgêncio Lima, inspetor; Mamã Rosa, dona do lugarejo – cubículo onde Jaime mora -; Kalu e Nélson, amigos ou conhecidos de Jaime, o último daqueles envolvido com a irmã polícia da morena defunta, da que morreu – ou não morreu – de overdose. E há a mulher alta, aquela que viu Jaime circundando o prédio onde morava a heroinómana-gémea e que se chama Palmira, também ela da PJ («Santos! Diga à agente Palmira que chegue aqui!»), disse o inspetor Lima aquando do interrogatório a Jaime, já aqui suspeito de ter ateado fogo ao prédio onde morava a primeira das gémeas. Tudo somado: Jaime ou é culpado ou é inocente, mas para efeitos de irrealismo total, diremos que nada do que tu, leitor, estás lendo aqui se passou exatamente assim. Na verdade, a questão fundamental não é saber por que razão se ateou fogo ao prédio da dita gémea, nem saber - como sabemos agora - que ela sobreviveu. Jaime, apesar de ter (ingenuamente, diga-se) lançado chamas ao prédio depois de a ter visto quase morta no chão do apartamento, fez o que mandam os manuais: apagar todas as provas que o pudessem colocar no tempo e espaço impróprios para um crime do próprio. Jaime não queria que o associassem a essa que, morta, lhe reaparecia, de coxa grossa e apetecível, nos braços do Nelson. A questão, caro leitor, é perceber – entender, escrutinar, analisar, escalpelizar – um facto que terá passado desapercebido a quem, neste emaranhado policial, não associou a t-shirt de Jaime ao fogo. Light my fire, toda a gente sabe disso, é música dos Doors, do seu primeiro álbum, de 1967, Verão do amor. Vietname, sangue, contestação às políticas de Johnson, operação «Rolling Thunder», bombas incendiárias nos campos de arroz vietnamitas; De Gaulle apupado em França; por cá, que portugueses somos, lá se disse «Para Angola, depressa e em força!», nas fracas e assobiadas palavras de chefe Sal e Azar. E é essa a questão: Jaime era, no Bairro, conhecido por ter, na sua família, casos estranhos, Gente fascinada pelo fogo, qualquer fogo. Light my fire, letra de Robbie Krieger, o guitarrista de flamenco da banda de Morrison, tinha escrito a letra. Também ele se viu envolvido num caso assim, similar ao de Jaime, em 1969, por ocasião da ida da banda ao Wiskey-a-go-go, bar de São Francisco, para uma última atuação. O facto foi simples: Krieger, procurando quem pudesse dar-lhe a dose exata para poder fazer o solo de guitarra a par das teclas de Manzareck naqueles imensos minutos de orquestração musical, tinha ido ao apartamento onde morava Tzela Curtis. Uma escultural preta, fêmea, de coxa definida, roupas coladas ao corpo alongado e leve, mas robusto e feito para recessos de amor e sexo à maneira holyywoodesca. Tzela aperta-lhe o garrote, as veias verdes vibram, o pó entrava e Krieger, enlevado, tocou como nunca nessa noite quente de 1969, mesmo de esgotado de tanta saliva gasta, em jeito de agradecimento a Tzela, percorridos que foram seios e púbis, axilas, coxa e braços, pés e seios e púbis, de falo mais cego que ereto. Jaime sabia dessa história. Light my fire. Naquele dia, que razão profunda tinha movido Jaime a ir ter com essa morena? Aquela morena que escapou por pouco de morrer de overdose? A envolvente imaginação de Jaime, jovem romântico, conhecido no Bairro por ouvir Doors e imitar a voz de Morrison e saber tudo sobre Krieger, Manzareck e Densmore, para além do ícone, o poeta James Douglas. Ele mesmo, Jaime, não desprezava o ter um nome iniciado pela letra J. Assim tinha conquistado algumas brancas granfinas das avenidas novas, algumas cabo-verdianas de usufruto fácil, entre morna e chorinho, assim teria de conquistar Elisa – o nome da gémea – essa afamada morena de veias verdes salientes e que, aos olhos de Jaime, trazia qualquer coisa do Summer of Love. Naquele dia, como tinha sido combinado, Jaime foi ter com Elisa (Elisa, língua de fogo, diziam lá no Bairro), ouvindo na sua banda sonora interior não só Light my fire, mas Strange Days. Strange Day, esse para Jaime. Tocou no apartamento de Elisa. Entrou. Recapitulemos: Jaime pisou sangue, as solas ficaram molhadas de morte, continuou a avançar. A morena igual às outras, que o levara misteriosamente até ali, estava à sua frente, a cara aberta num sorriso celestial, como se o universo fosse uma grande piada cujo final ainda está para soltar um Big Bang, então fungou, puxou as calças, olhou para as solas, olhou para ela, observando a estranha calma de um morto. Como é que um morto pode estar calmo, numa situação daquelas? Uma pessoa perde a vida e exibe placidez, até esboça um sorriso, que ofensa para os vivos, nós temos de ser ansiosos, sem isso não fazemos piruetas nem parafusos nem trepamos paredes, e ali estava ela com cara de quem não tinha acontecido nada de especial. Trocaram palavras duas ou três vezes, Jaime e ela, olhares também, mas nada mais do que isso, havia morenas mais bonitas e, perdoando a redundância, mais vivas. E agora pensava que a sola dos sapatos, as suas pegadas o incriminavam, que qualquer detetive seguiria aquele trilho. Um trilho de fogo: não, Elisa não era uma morena normal. Se havia morenas mais bonitas – vivas, claro, porque Jaime, olhando-a, entendeu que ela era já figura jazente no momento em que, no chão da casa, tinha, semi-nua, dado o caldo com que iria encarnar a persona de Tzela Curtis – o certo é que nenhuma, mas nenhuma, tinha aquela fama: «língua de fogo». E «fogo» é a palavra exata, a palavra densa, a palavra extrema para sabermos o porquê profundo de Jaime estar onde não devia estar. Poema de O’Neill («estou onde não devia estar») e cujo o verso lhe rebentava agora na cabeça, misturado com o refrão de Morrison: Come on baby light my fire. Esse o problema: Jaime sabia de Doors, tinha lido, aqui e ali, alguma poesia, estava onde não deveria estar. Mas o fogo – sempre o fogo – conduzia-o e Elisa, a negra, tinha-o conduzido. Guerra interior, romantismo, ingenuidade, Vietname e tudo somado: recapitulemos.

 

 

UM ESTRANHO ENIGMA | Folhetim de Verão CNC 2016

Ilustração © Nuno Saraiva [Direitos reservados] 

 

Apoio