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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

  

 

 

   Minha Princesa de mim:

 

   Pensossinto que a minha atração pela poesia de Saint-John Perse, despertada nos anos 1971-2, em Paris, se ficou de início a dever a vários fatores circunstanciais, alguns muito subjetivos: por exemplo, o ter sabido que o apartamento parisiense donde os nazis levaram todos os documentos e escritos pessoais do poeta, em 1940, depois dele se ter escapado para Inglaterra, donde seguiria para o seu exílio nos EUA, se situava na rua de Camoens. Curiosamente, Alexis Leger, patriota francês, não se considerava, apesar de ter acabado os seus dias no Midi que tanto amou, um homem do Mediterrâneo, menos ainda da cultura greco-latina. A sua pátria do coração era o Atlântico, e o mar oceano percorre infinitas páginas da sua obra, e da sua vida... Ele mesmo diz, a abrir o seu Amers (Amargos...), no Et vous, Mers (E vós, Mares...), publicado em 1957:

E vós, Mares, que ledes em sonhos mais vastos, ireis quedar-vos à noite nas tribunas da Cidade, entre a pedra pública e as parras de bronze? / Mais larga, ó multidão, a nossa audiência sobre essa vertente de uma idade sem declínio: o Mar, imenso e verde como uma alvorada a oriente dos homens, / o Mar em festa sobre os degraus como ode de pedra: vigília e festa às nossas fronteiras, murmúrio e festa à altura de homens - o Mar ele mesmo nossa vigília, como promulgação divina...

 

Por mim, nada mais tenho a dizer-te, senão que a invocação do Mar é, em Saint-John Perse, metáfora do cabimento infinito do homem...

Mas trago-te outro poema:

 

                                Cantado pela que lá esteve

 

               Amor, ó meu amor, imensa foi a noite, imensa

                 a nossa vigília onde tanto foi ser consumido.

               Mulher vos sou, e de grande sentido, nas trevas

                 do coração de homem.

               A noite de Verão alumia-se nas nossas persianas cerradas; a uva

                 tinta azulece nos campos; a alcaparreira da beira

                 das estradas mostra o rosado da sua carne; e o cheiro

                 do dia desperta nas vossas árvores resinosas.

 

               Mulher vos sou, ó meu amor, nos silêncios

                 do coração de homem.

               A terra, ao despertar, é só estremecimento de insetos

                 sob as folhas: agulhas e dardos debaixo das folhas todas...

               E eu escuto, ó meu amor, as coisas todas a correrem

                 para os seus fins. A corujinha de Palas faz-se ouvir

                 no cipreste; Ceres com mãos ternas nos abre

                 os frutos da romãzeira e as nozes de Quercy; a toupeira

                 branca constrói o ninho nas faxinas de uma árvore grande;

                 e os grilos peregrinos roem o chão até ao túmulo

                 de Abraão.

 

               Mulher vos sou, e em grande sonho, e em todo o espaço

                 do coração de homem:

               moradia aberta ao eterno, tenda erguida à vossa porta,

                 e boas vindas dadas em redor a todas as promessas

                 de maravilhas.

               Os atrelados do céu descem as colinas; os caçadores

                 de bodes quebraram as nossas cercas; e sobre a areia

                 da alameda ouço gritar os eixos de ouro

                 do deus que passa a nossa cancela... Ó meu amor de tão

                 grande sonho, quantos ofícios se celebraram no limiar das nossas

                 portas, quantos pés descalços correndo sobre as nossas lajes

                 e sobre as nossas telhas!...

 

               Grandes reis deitados nos vossos estojos de madeira,

                 eis aqui a nossa oferenda aos vossos manes rebeldes:

               refluxo da vida em todas as fossas, homens de pé sobre

                 todas as lajes, e a vida retomando todas as coisas debaixo

                 das suas asas!

               Os vossos povos dizimados tiram-se do nada; as vossas rainhas

                 apunhaladas fazem-se rolas de trovoada; na Suábia

                 estiveram os últimos cavaleiros teutónicos; e os homens de violência

                 calçam esporas para as conquistas da ciência.

                 Aos panfletos da história se junta a abelha do deserto,

                 e as solidões do Leste povoam-se de lendas...

                 A Morte com máscara de alvaiade lava as mãos nas nossas fontes.

 

               Mulher vos sou, ó meu amor, em todas as festas de

                memória. Escuta, escuta, ó meu amor,

               como soa um grande amor no refluxo da vida.

                 Todas as coisas correm para a vida como correios de império.

               As filhas de viúva na cidade penteiam as pálpebras;

                 as bestas brancas do Cáucaso são pagas em dinares;

                 os velhos artesãos de laca da China têm as mãos rubras sobre

                 os seus juncos de madeira preta; e as grandes barcas da

                 Holanda rescendem a cravinho. Levai, levai, ó

                 cameleiros, as vossas lãs de alto preço aos bairros de

                 pisoeiros. E eis chegado o tempo dos grandes sismos

                 do Ocidente, quando as igrejas, com os pórticos

                 todos a escancarem-se sobre os largos e todos os retábulos

                 se incendiando em fundo de coral vermelho, queimam os seus círios

                 do Oriente na cara do mundo... Para as Grandes Índias

                 do Oeste partem os homens de aventura.

 

               Ó meu amor do sonho maior, meu coração aberto

                  ao eterno, abrindo-se a vossa alma ao império,

                  assim todas as coisas fora do sonho, todas as coisas

                  pelo mundo nos encham de graça pelo caminho!

               A Morte com máscara de alvaiade mostra-se nas festas

                 dos Negros, a Morte em vestido de farinha teria trocado

                 de dialeto?... Ah! todas as coisas de memória,

                 ah! todas as coisas que soubemos, e todas as coisas

                 que fomos, tudo o que fora do sonho congrega

                 o tempo de uma noite de homem, que disso seja feito antes

                 do dia pilhagem e festa e fogo de brasa para a cinza

                 da noite! - mas o leite que de manhã um cavaleiro

                 tártaro tira do flanco da sua besta, é nos vossos lábios, ó meu

                 amor, que dele guardo memória.

 

   Foi este poema publicado, pela primeira vez, na NRF de 1 de Janeiro de 1969, mas só o conheci em 1972, e não acabei então a tradução que começara, mas hoje termino, para meu conforto. Alguns de nós, talvez todos, têm, cada um, a sua mitologia própria. A de Saint-John Perse terá raízes talvez mais célticas do que greco-latinas, mas o poeta foi construindo-a por dentro, como um sonho que abraça o mundo inteiro, e incansavelmente vai renovando na terra a vida dos homens. Esta, tal como a memória e a história, é sempre telúrica.

 

   Antes e durante qualquer tradução, vou lendo e relendo, vou comendo palavras, digerindo um texto. Comungo-o. Assim me desperto, no silêncio do coração de homem, entre memórias antigas, sentimentos guardados no escuro. Namorando este canto da que esteve lá, esta Cantiga de Amigo, fui acordando lembranças do Cântico dos Cânticos, esse eco bíblico de antiquíssimos hinos nupciais:

 

Vem, ó meu amor, / vamos para o campo! / Passaremos a noite nas aldeias, / iremos à vinha de manhã. / Veremos se a videira tem rebentos, / se as parreiras florescem, / se estão em flor as romãzeiras. / Então te farei dom de meus amores. / As mandrágoras exalam seu perfume, / à nossa porta estão os melhores frutos. / Novos ou velhos, /  para ti os guardei, ó meu amor!

 

   Quiçá Saint-John Perse tenha cantado a fidelidade do amor na infinita criação da terra... Poderia certamente ter subscrito ainda estoutra estrofe da bem-amada, no Cântico dos Cânticos:

 

Pousa-me como um selo sobre o teu coração, / como um selo no teu braço. / Porque o amor é forte como a Morte, / a paixão inflexível como o Shéol. / Tem feições que são feições de fogo, / como labareda de Yahvé. / As grandes águas não poderão apagar o amor, / nem submergi-lo os rios. / Quem oferecesse todas as riquezas da sua casa / para comprar o amor, / só desprezo recolheria.

 

   Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira