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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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UM ESTRANHO ENIGMA - capítulo IX

 

 

JAIME, JIM E O GOLPE DO BES

 

I

Jaime nunca gostara de ser interrogado, encostado à parede. Mentir era uma forma de fuga, de meticulosa evasão usando as palavras como mola capaz de o projetar para além da nuvem densa da mais profunda suspeita. Sabiam sempre mais sobre ele do que seria capaz de imaginar. Lima sabia tudo a seu respeito. Ele era uma peça passiva e esquiva do seu jogo, nada mais. Quando lhe disseram que a “Judite” queria falar com ele, Jaime percebeu que o cerco se apertara muito para além do que o silêncio lhe permitia dissimular. À sua maneira era um artista sem palco e sem esperança, um filho do bairro armado em débil disfarce de si mesmo. Em boa verdade já nem sabia como se chorava. Se soubesse, inventava uma trama qualquer e carpiria mágoas por uma perda recente e irreparável. Qualquer uma lhe serviria na perfeição. Mas o choro nunca fora janela entreaberta para um seu voo defensivo.

 

II

Ele era daquele tempo e de muitos outros. Pertencia ao mundo das gémeas e a um outro que era só seu e no qual se guardava, disfarçado, como se ali houvesse um cofre inviolável. Perdia perdão a si mesmo por tudo aquilo que deixara de fazer como se alguém quisesse perder tempo a atribuir-lhe culpas do que quer que fosse.

O que mais desejava era estar longe, longíssimo, sabe-se lá onde, talvez no quarto de hotel onde Jim naquele dia terrível se despedira da música e da vida. Muitas vezes imaginou que ainda o poderiam responsabilizar por aquela morte que lhe tirou anos de vida. Lima, o inspetor ainda poderia insinuar que ele estava escondido num armário e que fora buscar a dose fatal, como se fosse o instrumento de uma ardilosa cabala para eliminar o cantor que tudo abalava, a começar pela enganadora tranquilidade dos resignados.

Ele nunca o dissera, mas sabia que Jim, se tivesse alguma convicção futebolística, só podia ser do Benfica, porque tinha cabeça e porte de águia desafiadora e sempre triunfante. O Benfica dava-lhe alegrias mas fazia-o pensar em tudo o que poderia ter sido se porventura tivesse conseguido escolher outro caminho e desenhar na areia molhada da praia ao amanhecer um outro rumo, um outro destino.

Assim, era um merdas e disso não conseguia livrar-se. Nada sabia sobre a rapariga que o incêndio não quisera poupar. Ela dava-se com gente que ele não conhecia nem se atrevia a tentar conhecer, porque há universos que não se misturam, exatamente como o de Jim com as tribunas de glória de um sistema que odiava e que jurara amachucá-lo até à morte, até ao derradeiro colapso que nenhuma canção, mesmo sofrida e dolorosa conseguiria descrever.

 

III

Estava atento às palavras do polícia e sobretudo aos seus silêncios. Os silêncios eram a oficina onde oleava as perguntas que lhe faziam tremer as pernas e lhe secavam a garganta, fosse qual fosse a cerveja gelada que lhe dessem para beber. E ali não havia cerveja nem água turva pela fadiga noturna dos canos. Ali só havia o seu medo ancestral e uma vontade inadiável de o verem amarrado a um enredo de que não era nem queria ser ator.

Se pudesse, se fosse capaz, deixava-se morrer como Jim e talvez alguém depois alguém lamentasse com arrastada lamúria: “Que pena, até nem era mau rapaz. Deu-lhe para isto como lhe podia ter dado ganhar um balúrdio no totoloto e mudar drasticamente de vida.”

Quanto mais o inspetor o apertava mais ele se lembrava do tempo em que era apanhado a jogar à bola nas traseiras da esquadra e passava, como castigo, duas ou três horas no banco reservado aos proxenetas e aos drogados. Ele não era nada disso mas podia ser muito mais, porque tudo na vida lhe saíra errado e esquinado. Nascera estupidamente sem sorte.

O pai de Jim era um oficial americano importante, um dos mandões, com um filho armado em grande lagarto do deserto a desafiar os deuses da erva e da chuva, o dele um desgraçado que voltara de Angola à espera de uma segunda chance e acabara por morrer vítima de trombose no quarto onde se refugiava a pensar num golpe militar que devolvesse o país ao que fora antes, terra sem alma e sem sonho onde um gajo até era capaz de imaginar que Deus, se existisse, lhe faria o jeito de o colocar no comboio certo para a felicidade.

 

IV

A Jaime, em vez de Vietname, caíra-lhe o bairro em sorte. Ele ali teria de ser tudo, de soldado raso a capitão aventureiro. Com essa patente e esse destino nem a avó de Kalu havia de desencantar meios que lhe permitissem sobreviver. Morria de medo de se sentir sozinho. A solidão era sempre um gume afiado que lhe atravessava a garganta e não o deixava respirar, sobretudo se estava a dormir e se imaginava Jim de corpo inteiro, com pais e mães a insultarem-no e a atingirem-no com a fruta podre do seu desprezo e e enquistado ódio.

Uma vez levaram-no a uma consulta de psiquiatria e ele confessou que, n verdade, era Jim e que nunca fora nem quisera ser outra coisa, para não trair um destino que lhe quisera dar a oportunidade de se imaginar melhor do que era. Tinha medo. Não havia nada que injetasse ou inalasse que lhe desse outro alento e energia. Adormecia Jaime e acordava Jim, com toda a gente em redor carpindo a dor da sua perda.

Houve tempos em que uma das gémeas lhe abrira as portas para entrar numa telenovela.
Foi a uma audição e não devem ter gostado do seu timbre de voz ou do olhar embaciado com que olhava para o mar através de um estúpida janela entreaberta. Mandaram-no voltar na semana seguinte, mas dessa vez queriam que fizesse ajudante de um mafioso que vendia joias, armas e droga pesada. Não fora talhado para papéis assim. Bem lhe dissera a avó de Kalu que todos na vida somos para o que nascemos e não para os papéis secundários que alguém nos dá para nos manter entretidos e sempre prontos para pegar de caras o destino em qualquer Campo Pequeno da puta das nossas vidas.

 

V

Como podia um fracassado candidato a ator-tapa-buracos meter-se na aventura da magoar ou matar alguém só para endireitar o barco escangalhado de uma vida sem rumo? Nem o Arnaldo que fiava minis tinha agora cacau bastante para o ajudar a saltar a vedação alta que o separava da grande planície onde podia correr rumo a lado nenhum, sombra de si mesmo, entontecido pela solidão e pela pegajosa tristeza de uma existência amarrada às cordas.

A mulher muito alta que lhe apareceu na frente, chamada por Lima, tinha o recorte estranho e indefinível de uma personagem de pesadelo, daqueles em que Jim se tornava Jaime e cantava no meio do fumo da casa de banho até lhe minguarem as forças e cair de borco quase com a cabeça enfiada na água tépida.

Jaime pisou sangue mas era o sangue inventado que corre nas bermas dos filmes menores em que a vítima é muito mais quem mata do que quem morre. Tudo até ali lhe correra mal. Até umas parcas massas que conseguiu arrecadar foram para comprar ações do BES que o deixaram ainda mais entalado do que já alguma estivera. Depois vieram ter com ele para ajudar a organizar manifestações em Lisboa e no Porto. E houve até alguém que, agarrando-o com força por um braço, lhe fez esta proposta, mais bizarra que um enredo em que Jim morresse para logo de seguida ressuscitar: “Se te pagarmos bem, podes ir a Cascais, àquela zona das vivendas, para as bandas da Boca do Inferno, e despachas o Salgado, que é amigo de muita gente, até do Presidente da República, mas que não escapa à sede de vingança dos desgraçados desta vida?”

Era só o que lhe faltava, depois de ter sangue debaixo das solas, agora queriam que se tornasse justiceiro, mesmo numa área de investigação que não era da competência do Lima, que nele era capaz de enxergar todas as culpas, incluindo as da passividade mais absoluta e provocadora perante a absoluta adversidade da vida. Deixassem-no em paz, ou apenas Jim mortificado pela sua estrutural incapacidade de ser outra coisa para além do imenso desaire de si próprio.

Estava cansado, com a boca seca, exausto e a mulher alta não lhe saía do campo de visão. Tinha ar, bem vistas as coisas, de gerente de uma velha casa de putas para a zona do Intendente. Agora só lhe faltava que ela viesse fazer-lhe perguntas sobre o que estava a fazer num carro alugado, berrantemente azul, nas imediações da casa de Ricardo Salgado com uma pistola de ar comprimido com uma ridícula mira telescópica. Uma das gémeas foi-lhe levar uma cerveja e perguntou-lhe num sussurro se já conseguira ver o banqueiro barricado atrás de uma tela italiana do século XIX representando Veneza turva e distante num dia de tempestade.

 

VI

O grande sonho de Jaime era encontrar-se com Jim e poder contar-lhe a épica da sua vida medíocre no meio de polícias de série B, de gémeas aberrantemente desiguais e de campanhas para o extermínio de banqueiros desonestos que tão mal haviam feito a um país sem rei nem roque que fizera do martírio da austeridade uma ida a Fátima sem retorno para a tão desejada salvação da alma.

Em nenhuma série daquelas em que embrutecia até de madrugada conseguira Jaime vislumbrar uma história tão ridícula e perversa. Com ele todos eram culpados, muito mais do que suspeitos, muito mais do que personagens caricaturais em busca de uma metafísica salvação. Cena em que ele entrasse e trouxesse consigo o elenco menor de outros malfadados enredos já tinha a sentença lavrada. E depois podia vir o inspetor Lima e a mulher desajeitadamente alta que ele se limitaria apenas, para apaziguamento da sua alma, a confirmar o que todos suspeitavam ser a verdade.

 

VII

O inspetor Lima era um homem da velha guarda, embora fosse matéria sobre a qual não gostasse nada de soltar a língua. Estivera em 1971 no Festival de Vilaer de Mouros e assistira à atuação de Elton John, que conseguira ver dentro de um camarim muito mal-amanhado a beijar o autor das letras das suas canções, um tal Bernie Taupin, que, segundo parece nada tinha a ver com a sua paixão por futebol. Eram outros tempos. Havia a guerra em África e quem por cá e desse mal logo ia bater com os costados em Angola ou em Moçambique. Jaime não conheceu esse tempo e esse país. O pai estava em Angola e nunca acreditou que o desfecho militar o obrigasse a desandar para Lisboa onde nunca estivera antes. A guerra era assunto que não o molestava. Sempre gostara mais dos filmes sobre a Segunda Guerra Mundial em que o John Wayne dava as ordens certas para “entalar” o Hitler e o empurrar para Berlim, onde acabaria os seus malditos dias.

O Jaime agora tinha, com peso de chumbo, sobre os ombros a suspeita de andar a querer cobrar à força o dinheiro pilhado pelos aldrabões do BES, que ele nunca vira de perto e muito menos ao alcance de uma pequena arma vingativa.

 

VIII

- Jaime, acorda, que hoje é um dia especial. Estou a pensar ficar a viver aqui em Paris. Escrevo umas canções, dou umas entrevistas, publico uns livros e faço tudo voltar à estaca zero. Por isso é importante que venhas comigo àquela audição. O homem gosta de mim e dos “Doors”. Tu bem podes ajudá-lo a tomar a decisão certa. Se eu ficar a ganhar tu também ganhas.

Jim levantou-se com dificuldade da banheira, enxugou-se, acendeu um cigarro, vestiu uns “jeans”, uma velha “T-shirt”, bebeu apressadamente um café e preparou-se para sair do quarto. Jaime quis acompanhá-lo mas as pernas recusaram-se a obedecer-lhe. Sempre sonhara com aquele momento mágico e agora que estava a vivê-lo era a realidade que o bania e o mantinha irremediavelmente distante. O inspetor Lima entrou no quarto, como se sempre ali tivesse estado, ordenou a Jaime que levantasse os braços, disse-lhe que passara a noite a interrogar as gémeas e por fim revelou que o caso que o ligava à antiga Administração do BES já estava sob o seu controle e sem segredos. Tirou um cigarro da cigarreira e disse a Jaime, com a naturalidade de quem entra com altaneira segurança num filme: “Please light my fire”. 

 

 

 

UM ESTRANHO ENIGMA | Folhetim de Verão CNC 2016

Ilustração © Nuno Saraiva [Direitos reservados] 

 

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