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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

 

   Minha Princesa de mim:

 

   Começo esta carta a penitenciar-me: a impagável cena da parelha Tintin-Haddock quebrando bilhas de barro ao nosso Oliveira da Figueira aparece no Coke en Stock, não no Tintin au Pays de l´Or Noir, como, erradamente, na altura lembrei. Peço-te desculpa do deslize de memória e, sobretudo, da minha preguiça em levantar-me do assento onde te escrevia para subir ao 3º piso cá de casa, onde guardo as minhas bandas desenhadas. Creio (lá estou eu outra vez a supor, confiante na minha memória desgastada) que foi Voltaire quem disse que "a mentira é detestável, por ser uma inexatidão". Deixa-me, com esta, o filósofo Arouet na dúvida de saber se será mesmo caso de sine qua non, isto é, se a condição necessária e suficiente da mentira será só a inexatidão. No caso vertente, foi só inexatidão e não mentira, não pretendi induzir-te em erro. Corrigiu-me um amigo, irmão do que, adiante, falo. Lera a carta no blogue do CNC, onde, pelo visto, tu publicas as que te escrevo. Todas?

 

   Feita a devida vénia, passo a falar-te de um livro que comecei a ler e não larguei: The Return of the Prodigal Son, do padre católico holandês Henri Nouwen (1932-1996), de que te falarei mais longamente, uma extraordinária meditação sobre o quadro de Rembrandt van Rijn, conservado no Hermitage, em S. Petersburgo. Foi-me dado pelo frei Eugénio de Paiva Boléo, que conheci oficial de marinha e reencontrei cinquenta anos depois do jantar de despedida que partilhámos na velha cervejaria Portugália, à Almirante Reis, em Julho de 1966, na véspera dele se tornar frade dominicano... 


   Mas deixa-me agora recordar um passo de François Mauriac - de que nunca o meu coração se separou - no seu La Fin de la Nuit, romance de 1935, que persegue o subterrâneo caminho da consciência de Thérèse Desqueyroux, nome da protagonista e título do primeiro que li desse autor católico francês. Ao fim de uma longa e dilacerante noite espiritual, em que Thérèse, que escapou à justiça dos tribunais - mas ficou prisioneira da sua consciência perplexa - pelo adultério cometido e pela tentativa de envenenamento do marido, algo se acende: Sob a camada espessa dos nossos atos, a nossa alma de criança permanece imutável; a alma escapa ao tempo.

 

   Nesse sentido, surpreendemo-nos na intimidade de nós, desse quem com cuja permanência nos identificamos e não queremos que morra. É o fiel da nossa balança, o centro da nossa existência. Chamamos-lhe alma ou anima, porque, sem sabermos o que é - nem ciência alguma a explicou ou sequer descreveu - sentimo-la como o que nos dá vida. Tanto, que, para uns será imortal a alma humana, outros falarão da alma do mundo, princípio único da vida diversa de tudo e todos... Mas ocorreu-me este trecho de Mauriac por nos falar de a nossa alma de criança, como se de essência nossa se tratasse, imutável ao longo da vida, incorruptível debaixo do peso dos nossos feitos. Como segredo onde habita a misericórdia de Deus. Assim, a peregrinação de Henri Nowen pelo Regresso do Filho Pródigo de Rembrandt é, de facto, um caminho de retorno à casa paterna. Mas o livro é tão rico e estimulante de demandas de memórias, intenções e entregas, que se torna difícil, quiçá pretensioso e desinteressante, fazer-lhe uma resenha ou um resumo. Para te dar uma ideia do que quero dizer, pensa só que o itinerário de Henri Nouwen, não é apenas o do filho pródigo, pois que também se descobre no irmão mais velho deste, no tal bem comportado. E no próprio pai, também visto como o próprio Rembrandt, no fim da vida, pobre e quase cego. Lembra-me muito algo que já várias vezes te disse: perdoar é, também e sempre, ser perdoado. A misericórdia de Deus é o regresso do Pai à sua humanidade, a festa por quem retorna é sobretudo a alegria de quem acolhe. Mistério central do cristianismo. Aliás, a Nouwen não escapa o pormenor das mãos do pai que abraça o pródigo: a esquerda é masculina, a direita é mão de mulher, de mãe. Deus é pai e mãe, é a casa onde nascemos - assim o podemos imaginar, e recordo que três dos últimos papas viram bem como tal imagem, servindo o nosso anseio de lar, não belisca o conceito de Deus inefável que, não sendo nem homem nem mulher, é, no seu amor, pai e mãe.

 

   Traduzo-te, hoje, apenas passos do 3º capítulo (The Younger Son´s Return) da parte I do livro (The Younger Son). O que mais me ocorra ficará para outras cartas. Se tiveres uma reprodução do quadro aí à mão, põe-na à tua frente. Ajuda.

 

   O jovem abraçado e abençoado pelo pai é um pobre, muito pobre, homem. Saiu de casa com muito orgulho e dinheiro, decidido a viver a sua própria vida, longe do pai e da sua comunidade. Regressa sem nada: sem dinheiro, sem saúde, sem honra, sem amor próprio, sem reputação... tudo foi desbaratado. Rembrandt não deixa dúvidas sobre a sua condição. Tem a cabeça rapada. Já não tem o cabelo comprido e ondulado que Rembrandt a si mesmo pintara, enquanto altivo, desafiador, filho pródigo num bordel. A cabeça é a de um preso cujo nome foi substituído por um número. Quando o cabelo de um homem é rapado, seja na prisão ou na tropa, num ritual obscuro ou num campo de concentração, ele é despojado de uma das marcas da sua individualidade. As roupas que Rembrandt lhe põe são roupas interiores, que mal lhe cobrem o corpo emagrecido. O pai e o homem alto que observa a cena vestem largos mantos vermelhos, que lhes conferem estatuto e dignidade. O filho ajoelhado não tem manto. O vestido interior, amarelo acastanhado, rasgado, mal lhe cobre o corpo exausto, desgastado, de que toda a força se foi embora. As solas dos pés contam a história de uma longa e humilhante jornada. O pé esquerdo, fora da sandália gasta, está ferido. O direito, só parcialmente calçado por uma sandália rasgada, também fala de sofrimento e miséria. Eis um homem despojado de tudo... menos de uma coisa, a sua espada. O único remanescente sinal de dignidade é a breve espada pendurada à cintura, rótulo da sua nobreza. Mesmo no meio da degradação, ele se agarrou à verdade de ser ainda filho de seu pai. Se assim não fosse teria vendido a valiosa espada, símbolo da sua filiação. A espada está ali para me mostrar que, apesar dele ter voltado falando como mendigo e excluído, não se esqueceu de que ainda era filho de seu pai. Foi essa recordada e apreciada filiação que o persuadiu a vir de volta. E chegamos então ao parágrafo - intitulado Claiming Childhood - que me evocou o trecho de Mauriac:

 

   Fosse o que fosse que ele tivesse perdido, dinheiro, amigos, reputação, amor-próprio, alegria interior e paz - uma dessa coisas ou todas elas - ainda assim ele permanecia o filho de seu pai. E por isso diz para consigo: "Quantos dos assalariados de meu pai têm todo o pão que quiserem e até mais, e eu para aqui a morrer de fome! Vou partir, vou ter com meu pai e dizer-lhe: Pai, pequei contra o céu e para contigo; já não mereço ser chamado teu filho; trata-me como a um dos teus assalariados!". Com tais palavras no coração, foi capaz de dar a volta, deixar aquele lugar e regressar a casa. O significado do retorno do filho mais novo está sucintamente expresso nas palavras: "Pai, eu já não mereço que me chamem teu filho...". Por um lado, o filho mais novo percebe que perdeu a dignidade da sua filiação, mas ao mesmo tempo esse sentido de dignidade perdida também lhe dá consciência de ser o filho que tinha uma dignidade para perder...

 

   O abraço do pai e do filho junto dele ajoelhado sela o regresso à casa. Vou recolher à casa onde nasci, / por teus dedos, de sombra edificada - verso de David Mourão Ferreira, que Amália canta, e a que voltarei em próxima carta... E disse o papa João Paulo II, em audiência de 8 de Setembro de 1999, falando, precisamente, sobre a parábola do filho pródigo, contada pelo evangelho de S. Lucas, e quiçá lembrado do quadro de Rembrandt, ou ainda do texto de Henri Nouwen, cuja primeira edição foi em 1992, das mãos do pai: As suas mãos sustêm, estreitam, dão vigor e, ao mesmo tempo, confortam, consolam, acariciam. São mãos de pai e de mãe, ao mesmo tempo. Tão poderoso de ternura, tal abraço surge iluminado no centro da pintura. Isaías (49, 15) pergunta, sobre Yahvé que consola o seu povo: Pode uma mulher esquecer o seu pequenino, não ter piedade do filho das suas entranhas?... ou ainda (66,13): Como mãe que consola, também eu vos consolarei! E canta o salmo (131, 2): Tenho a minha alma em paz e silêncio, como menino ao colo de sua mãe; / como menino, assim está a minha alma em mim. Assim possamos nós sentirmo-nos todos na hora do recolhimento, como a Traviatta que pressente a nova luz e Thérèse Desqueiroux que, depois de dizer que espera o fim da vida e lhe perguntarem "quer dizer o fim da noite?", responde:

Oui, mon enfant: la fin de la vie, la fin de la nuit.

 

   

   Camilo Maria

 

 

Camilo Martins de Oliveira

 

 

A LÍNGUA PORTUGUESA NO MUNDO

 

XIV - LÍNGUA PORTUGUESA E NOVAS TECNOLOGIAS

 

1. Se a língua portuguesa tem o seu lugar entre as mais faladas, tal constatação não constitui, por si só, contentamento suficiente. “Língua que não se informatize, morre”, proclamava, em 1986, o Manifesto Europeu para Salvaguarda do Património Linguístico da Europa. Em rigor, uma língua não morre se não se informatizar, tornar-se-á, por certo, sem serventia adequada para o desenvolvimento, excluindo-se do pelotão da frente dos grandes idiomas. Continuando o português a informatizar-se, com realizações informáticas (com o software em português) e o envolvimento em projetos em busca de tradução automática, rumo a um maior desenvolvimento informático futuro, não será por omissão, como língua informática, que deixará de ser um idioma de vanguarda.

 

Estando o português excluído do grupo de idiomas conhecido por “línguas atrapalhantes”, sendo tido como uma boa língua para literatura, é também um dado adquirido que não atrapalha o raciocínio e a imaginação científica, uma vez amigo das ciências. Tendo o vocabulário científico e técnico como inerente a ideia de que para a modernização tem de haver um idioma que crie, amplie e atualize permanentemente um vocabulário dessa natureza, há interesse na criação de uma base sólida para construção de um vocabulário científico e técnico em português padronizando, quanto possível, a terminologia científica e técnica usada nos países de expressão portuguesa ou, se inadequado, registar as suas variações terminológicas. Trata-se de matéria em que um acordo ortográfico sobre tal vocabulário (específico) é desejável, a merecer ser consensual. Outro setor onde a nossa língua tem potencialidades de sucesso crescente é o do audiovisual, a começar pelo número de falantes, sendo usual exemplificar-se o êxito das telenovelas e algumas séries do Brasil.

 

2. Outros desafios se colocam, numa época em que o imediato e o mutável tomam o lugar do estável, do mediato e do permanente, emergindo novos discursos, via intervenção tecnológica, em que literacias e iliteracias já não são o que eram. Há uma banalização das mensagens instantâneas, de preferência entre jovens, trocando mensagens sms, curtas e a baixo custo, possibilitando diálogos concisos e diferidos, por vezes carregados “k” e “y”, palavras formadas pela justaposição de uma ou mais sílabas de outras palavras tidas como ininteligíveis, acentuando o banimento da língua para um mero meio expedito de interação entre pessoas e de satisfação de necessidades imediatas e funcionais. O correio eletrónico, as conversações nos blogues e nos “chat”, o uso permanente e massificado dos telemóveis e dos sms, de frases curtas, sincopadas, com abreviaturas generalizadas e recurso a ideogramas, criam e recriam, em brevidade e celeridade, simplificações na construção de frases. Esta diminuição do recurso à língua escrita, por um lado, e a crescente projeção, por outro, da língua falada na escrita, numa função ostensiva e fática de comunicação, fazem surgir novas realidades que implicam uma revisão e atualização da política da língua. O que se reflete em formas de aprendizagem contextual, com apelo à aquisição de modo quase instantâneo do que se quer aprender, por contraste com a anterior acumulação preventiva de saber. Há uma expansão dos blogues e blogosfera, tidos como fenómenos inovadores de produção literária, sem esquecer as comunidades em linha (on-line), embriões de novas dinâmicas de interação alargada.

 

Ao mesmo tempo, toda e qualquer língua está aberta a alterações, como aquando da interferência de línguas alheias e o uso e difusão de neologismos relacionados com a internet. Embora possam ser vistos como um fator de vitalidade, carecem de uma intervenção linguística que permita a sua integração harmoniosa na língua importadora. Uma entrada massificada de palavras importadas (estrangeirismos e empréstimos), pode conduzir à descaraterização do idioma de acolhimento, levar a que o idioma que importa indiferenciadamente deixe de ser usado em contextos de comunicação técnica e científica, com perda do seu estatuto de língua de ciência, técnica e de cultura. O que torna necessária uma política de planificação que permita, promova e salvaguarde que uma língua de comunicação quotidiana e de aprendizagem, transite para uma de comunicação técnica e científica, apetrechada para qualquer situação comunicativa.

 

3. Simultaneamente, com a globalização surge a internet, com os seus fluxos imaterializados e universalização planetária, onde o fator língua é e será um instrumento imprescindível para o seu uso, divulgação, operacionalidade e rentabilidade, pelo que não surpreende que essa mundialização tenda a operar em blocos linguísticos, em especial via línguas dinâmicas, como a portuguesa (língua internauta). Se a internet propicia e é um instrumento da globalização, se o aumento do poder das mentes humanas, através das máquinas (internet, etc) é extraordinário, também é um meio de exclusão. A primeira, é não estar na internet. A segunda, é que a diferença cultural potencia a diferença social, em que os mais cultos aprendem a uma maior velocidade (na net) que os menos cultos.

 

Por fim, a facilidade, instantaneidade e a universalização das comunicações, banalizaram o falar por telemóvel e a permuta de diálogos, ideias e informações por meios eletrónicos, reduzindo as distâncias com reflexos nos idiomas, fixando e definindo, cada vez mais, o modo como se fala. Há quem defenda, como Nicholas Ostler, que a comunicação do século XXI se baseará cada vez mais na tecnologia (máquinas de tradução e interpretação automática) e não tanto no conhecimento de uma língua franca.

 

Se há que saber interpretar a declaração “Língua que não se informatize, morre”, também há que fazê-lo ao afirmar-se que se é verdade que “com a internet não se come”, não é menos verdade que “sem a internet não se come”.          

 

19 de setembro de 2016
Joaquim Miguel De Morgado Patrício

 

                                                                                                                                              

                                                            

Enamoramento e Amor

Francesco Alberoni


O enamoramento, como estado nascente, é uma exploração do possível a partir do impossível, é uma tentativa que o imaginário faz de se impor ao existente. O comportamento do outro é decifrado a esta luz, para conhecer o que é e o que será, e, antes de o ver nos malmequeres.

 «Oui, dit Jean qui voulait dire quelque chose de tout à fait différent.»

                                              Milan Kundera, Le livre du rire et de l’oubli.

Uma outra dimensão de um estado nascente é a da verdade e da autenticidade. A verdade faz-nos libertos quando o «em ti» indica a vida real.

 

Teresa Bracinha Vieira

O TEATRO GIL VICENTE DE CASCAIS

  

 

MODELO DO AMBIENTE CÉNICO-ARQUITETÓNICO DO SÉCULO XIX

 

O Centro Nacional de Cultura realizou um “Passeio de Domingo” a Cascais, que incluiu alguns dos mais notáveis exemplos de património histórico e arquitetónico de expressão cultural e religiosa, designadamente a Igreja da Assunção, a Fortaleza de Nossa Senhora da Luz, o Palácio da Cidadela, o Museu Condes de Castro Guimarães e o Teatro Gil Vicente. Dirigiu o conjunto da visita Anísio Franco, com quem partilhei a abordagem sobre o Teatro.

Ora, importa situar a construção do Teatro Gil Vicente no contexto global da Cascais histórica tendo em vista, no que respeita especificamente ao Teatro, alguns fatores que até hoje, o singularizam no contexto do património teatral português, perspetivado na abrangência da expressão: edifício e atividade cénica e cultural.

Trata-se, antes de mais, de um dos poucos “sobreviventes” em plena atividade daquilo a que chamo a geração dos teatros que, um pouco por todo o país, foram sendo contruídos na sequência da inauguração do Teatro de D. Maria II em Lisboa, no ano de 1843. Não restam muitos, como aliás aqui temos visto: e no caso presente, há que assinalar a conservação da arquitetura teatral da época e a respetiva rentabilidade cénica a artística.

Este Gil Vicente de Cascais data de 1869: Sousa Bastos, no “Diccionário do Theatro Português” (1909) evoca a inauguração, em 15 de agosto daquele ano, com um drama, “O Ermitão da Cabana” e uma comédia, “Matheus do Braço de Ferro”: programa habitual na época! E mais diz que que o Teatro foi construído por iniciativa algo inesperada de um capitão da marinha mercante e armador, de seu nome Manuel Rodrigues de Lima, no espaço urbano em que teria existido um pequeno teatro adaptado de um armazém.

Os trabalhos foram dirigidos por José Vicente Costa “carpinteiro de Caparide”, assim mesmo: e mais, acrescenta Sousa Bastos “o cenário (das peças da estreia) consta de três salas ricas, uma pobre, jardim, praça e mar, deve ser magnífico, pois foi ainda pintado por Rambois e Cinatti”, efetivamente grandes nomes da cena portuguesa da época.

Curiosamente, Sousa Bastos ainda esclarece que o Teatro já servia de sede da “Associação Humanitária Recreativa Cascaense com 4 secções: bombeiros voluntários, filarmónica, grupo dramático e sócios contribuintes”… Ora, passado mais de um século, manteve-se a ligação institucional aos Bombeiros de Cascais, entidade com a designação, a partir de 1942 de Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários de Cascais.

Por seu lado, Ferreira de Andrade recorda que “pelo Gil Vicente passaram as maiores figuras do teatro de então”, citando grandes nomes da época: Vale, Beatriz Rente, Mercedes Blasco, Pereira da Silva… (cfr. “Cascais Vila da Corte” e “Monografia de Cascais”, ed. Câmara Municipal de Cascais). E ao mesmo tempo, o Gil Vicente acolhia récitas de amadores, animadas até pelo Rei D. Luís, que era espectador habitual: ”gostava de assistir aos espetáculos no Gil Vicente”, diz-nos Maria José Pinto Barreira de Sousa, que reproduz um longa conversa do Rei em 1878, recordando alguns desses espetáculos. No estudo referido são evocadas sucessivas temporadas de teatro até finais do século XIX. (cfr. “Cascais - 1900”, ed. INAPA, 2003)

Por meu lado, assinalei designadamente uma récita de 1895, dirigida por Manuel Gustavo Bordalo Pinheiro e, em 1915, um facto pouco conhecido: a estreia de uma revista composta e cantada pelo então jovem Pedro de Freitas Branco (1896-1963) que tanto marcaria, como maestro, a história da música portuguesa. (cfr. “Teatros de Portugal”, ed. INAPA, 2006, pág. 36)

Mas é altura de passarmos a anos mais recentes.
Em 1965 Carlos Avilez inicia, no Teatro Gil Vicente, a atividade do Teatro Experimental de Cascais. E lá se conservou, na direção desta companhia referencial, até 1977. Note-se bem a expressão: “referencial” foi efetivamente o TEC que, ao longo de dezenas de anos, procedeu (e ainda procede, noutro teatro) a uma renovação da cultura e do meio teatral português, ao nível de repertório, ao nível de elencos e até do relacionamento do público com o teatro.

Importa ter presente que as versões/encenações de Carlos Avilez no TEC assumiram sempre uma expressão de modernidade, mesmo quando se trata de autores clássicos ou românticos, nacionais ou estrangeiros. Recordem-se alguns, entre tantos mais: Gil Vicente, António José da Silva, António Ribeiro Chiado, André Brun, Paço d’Arcos, Bernardo Santareno, Alice Vieira, Norberto Ávila, Shakespeare, Frederico Garcia Lorca, John Osborne, Arrabal, Jean Tardieu, Samuel Beckett, Jean Genet, Bertold Brecht e tantos mais…

Efetivamente, como noutro lado escrevi, o grande momento histórico do Gil Vicente de Cascais decorre nos anos 60 e 70 do século passado, com o Teatro Experimental de Cascais mas também com os Cursos Musicais de Verão da Costa do Sol. O TEC marca de facto uma época, formara um público e dezenas de artistas e, mais ainda, renovara um repertório e cria uma certa mentalidade - até hoje.

 

DUARTE IVO CRUZ

  

 

 

LONDON LETTERS

 

Mr Corbyn goes to Liverpool, 2016-17

 

Há ali uma espécie de inocência e há ali algo de diabólico. Entre a suavidade do seu amado líder, Mr Nice Guy, o maquiavelismo do chanceler sombra, Mr Bad Guy, e a ferocidade dos divididos regimentos, o trabalhismo britânico está em triste encruzilhada ideológica.

RH Jeremy ‘Red’ Corbyn vence, pela segunda vez no espaço de um ano, a liderança do Labour Party. Está tanto mais forte quanto a causa debilitada. — Chérie! Sans tentation, il n'y a point de victoire. A Prime Minister RH Theresa May está sob fogo dos… Cameroonists. As adagas giram ainda em torno da Brexit inside story. Já o Number 10 recebe Herr Martin Schultz, com o EU Parliament President a ajudar à consolidação do público adeus. — Well! A fox is not taken twice in the same snare. Na White House Race é a contagem decrescente para o muito esperado primeiro dos três debates entre Mrs Hillary Clinton e Mr Donald Trump. Meanwhile, o US President deixa legado oratório na United Nations General Assembly. Britain censura Russia pelo fracasso do último cessar fogo na Syria, em eco de war crimes. A Countess Sophie of Wessex chega a Buckingham Palace, com fanfarra, família e flores, após épicos 800 km em bicicleta desde Holyroodhouse para apoio filantrópico aos 60th Duke of Edinburgh's Awards. Os Young Royals visitam Elizabethean Canada. A University of Oxford é classificada como a melhor universidade do mundo, o que posso pessoalmente corroborar.

Mainly dry and breezy weather at London. Vamos dizê-los um a um para dar o tom. A Labour Party Conference abre com a decisiva vitória do brave new old leader: RH Jeremy Corbyn arrecada 61,8% dos votos (+2% que antes) dos membros, afiliados, simpatizantes e apoiantes registados no sufrágio do comando, face a 38,2% de RH Owen Smith MP, o rival por cá conhecido como “Owen Who?” Uma imediata sondagem da Sky News entre a militância conclui que 59% declara que o partido “can’t win” as legislativas de 2020 com o atual rumo (incluindo 93% de assumidos corbynistas) e 45% espera até não mais ver um governo trabalhista no seu tempo de vida. Uma outra internal polling realizada pela Survation/LabourList revela hoje que a HM Most Loyal Opposition perde terreno para os Tories desde a derrota eleitoral de 2015, em oito de nove temáticas políticas. O amigável analista conclui que os resultados “puts Labour on course for worst election defeat since 1935.” Finalmente: Contas feitas à despesa pública no fecho do dia dedicado à economia na arena de Liverpool somam “£250billion” em infraestruturas e aumentos salariais. Os jornais de amanhã dirão do detalhe da magic money tree, a par da equívoca política de defesa no pipe dream.

Também intranquilas andam certas franjas conservadoras. Com o ex Chancellor George Osborne MP a posicionar-se em todas as oportunidades para eventual coroação futura, hipótese sempre contrariada pela ausência da guerra e da fome por si profetizadas para o voto Leave EU, Westminster sorri com os segredos de polichinelo que levam à demissão do PM David Cameron dados à estampa pelo seu Director of Politics and Communications. O ora Sir Craig Oliver é o autor de Unleashing Demons: The Inside Story of Brexit, um diário sobre o euroreferendo visto de Downing Street. Os aperitivos do livro, um entre vários que se anunciam sobre a decisão, espalham-se pela Sunday Press. Especialmente visados pelo antigo spin doctor são os Brexitters, de RH Boris Johnson a RH Michael Gove, apimentadamente desnudados por desertarem do 10, mas também a atual Premier. Aponta-se o dedo a RH Theresa May por alegada “Brexit blame,” nomeadamente pela recusa em maior envolvimento na campanha. Se a senhora faz dois discursos a favor do Remain, sublinha-se que o antecessor lhe faz sucessivos apelos “to come off the fence.” A tática do “a fight alone” é tão exótica quanto foi o Project Fear. Ainda assim, fica registo de Mrs T ser no Cam Govt “an enemy agent” (ou “Submarine May”) e de a então Home Secretary considerar o célebre travão negociado com Brussels para controlar a circulação de pessoas como a “emergency fake” (e não emergency brake na emigração).



Entre estórias de sacos de tarecos, pois, importa ressalvar que tanto Larry como Gladstone e Palmerston continuam no bom exercício de funções em Whitehall como the high mouse officers. Dois outros Top Cats prestam desempenho histórico esta noite. A horas de duelo presidencial, as TVs &co aquecem as emissões com debates e reportagens sobre os dois candidatos restantes na batalha pelo poder da superpotência ocidental. A nota dominante cá e lá é… a imprevisibilidade. Hillary v Donald falarão para uma plateia global, mas as suas atenções incidem nos estados chave da US Election como os indefinidos Pennsylvania, Maine, Ohio ou Florida. Daí que peculiares propostas políticas como “the wall” e “the Muslim emigration ban” soem envoltas no “bringing jobs back to America” e a par da ameaça terrorista do Isis. — Well! Let us bear in mind what Master Will says about the tune through the attentive mind of Lorenzo in The Merchant of Venice: — The man that hath no music in himself, / Nor is not moved with concord of sweet sounds, / Is fit for treasons, stratagems, and spoils. / The motions of his spirit are dull as night, / And his affections dark as Erebus. / Let no such man be trusted. Mark the music.

 

St James, 26th September 2016

Very sincerely yours,

V.

A VIDA DOS LIVROS


     De 26 de setembro a 2 de outubro de 2016

  

 

Alice Vieira é justamente uma das mais celebradas escritoras dedicadas aos mais jovens, sendo uma autora completa, que divide a sua criatividade pela poesia, romance e ensaio. Ao tratar com cuidado e criatividade temas diversos, desde as narrativas tradicionais ao quotidiano, passando pela invocação histórica – como em «Este Rei que Eu Escolhi», em que a aclamação de D. João I é ocasião para lembrar um acontecimento histórico e apelar à responsabilidade cidadã – torna a leitura e a literatura algo de próximo e apetecível. 

 

 

ESCREVER PARA O MOMENTO PRESENTE

Alice Vieira faz da literatura um ato de prazer e de recordação. Lê-la nos diferentes registos, que usa com arte, significa encarar a plasticidade das palavras como um modo de nos permitir uma melhor compreensão da vida. É, de facto, da vida que Alice Vieira trata – e tal nota-se especialmente na escrita multifacetada que pratica. Partindo do quotidiano ou das histórias tracionais, na linha de Adolfo Coelho e Teófilo Braga, procura ligar o sentido cívico e pedagógico. Compreende, assim, que a melhor tradição popular da narrativa visa educar, instruir, lembrar, alertar, suscitar, dar atenção, prevenir, intervir e participar. É preciso compreendermos a origem desse veio de criatividade. Trata-se de preparar a iniciação à vida vivida, com todas as prevenções necessárias. E se o conto popular causa tantas vezes perplexidade, tal deve-se à obrigação pedagógica. É preciso que o tema seja suficientemente impressivo para que os seus destinatários o compreendam. Mas Alice Vieira escreve para os leitores de agora e por isso apresenta os temas e as situações de acordo com o momento atual. Não se trata de fazer recordação histórica, mas compreender o público dos dias de hoje – interessando-o e motivando-o. Quando lemos Esopo ou Fedro, Charles Perrault ou os irmãos Grimm, percebemos que se trata de pegar na tradição para alertar as crianças e os jovens, que se iniciam no mundo, contra todos os perigos que a natureza e os homens nos reservam. E Alice Vieira compreende-o bem ao aproximar as narrativas das preocupações do momento presente… Sem iludir ou escamotear a realidade, a autora dá um sentido positivo às lições que pretende transmitir. E que sentido é esse? O da compreensão de que a literatura, no seu todo, deve constituir-se num espaço com várias entradas, em que o fantástico se une ao real, o maravilhoso ao incerto, o fácil ao difícil… Estou a ouvir o meu avô Mateus, a dizer-nos, num ritmo cadenciado, a lengalenga tradicional - «Corre corre cabacinha / Não vi velha nem velhinha / Nem velhinha nem velhão / Corre corre cabação»… O lobo, o urso e o leão não se entendiam, admirados com o inesperado que se estava a passar… E assim, naquelas três ameaças resumiam-se os males que nos podem ameaçar, enquanto a esperteza da velhinha salvava o que havia a salvar… E, de um modo despretensioso, de quem quase nem se dava conta, podíamos entender que tudo estava em ter respostas inteligentes e em apanhar desprevenidos o lobo, o urso e o leão – considerados símbolos das ameaças do mundo… E foi esse relato antigo que encontrei sem uma ruga no texto de Alice Vieira…

 

A IMPORTÂNCIA DA LITERATURA JUVENIL

Trata-se de assumir a magia serena de uma história edificante, em que a inteligência pode vencer a irracionalidade. A literatura infantil e juvenil tem um papel decisivo na formação das pessoas e das sociedades. Não se trata, porém, de fazer um compartimento fechado ou à parte, mas de utilizar um modo especial de sensibilizar a comunidade para os seus temas fundamentais. A maior parte dos textos da literatura juvenil destinou-se originalmente a todos. As narrativas tradicionais ensinam todos, e apela a que se faça uma transmissão eficaz das mensagens às gerações futuras. Lembramo-nos da fórmula clássica – histórias contadas às crianças e lembradas ao povo… E quando nos dirigimos às crianças recordamos a sociedade no seu conjunto: se os mais jovens são alvo preferencial da pedagogia, todos os outros são os que estão cientes de que o saber não ocupa lugar e de que o aprender é a chave do avanço histórico. Daí a dificuldade do género literário, uma vez que o público jovem é exigente e curioso – e Alice Vieira bem o compreende, praticando com cuidado a regra da identificação, tomando o lugar de um dos seus leitores – com uma escrita que é de facto para todos. E se falo de identificação é para salientar o mimetismo da aprendizagem que se estabelece entre a escritora e os seus jovens leitores. Um mimetismo que tem a ver com os temas, com a forma de os apresentar, com a clareza, com a proximidade e com a escolha das palavras. Há uma especial afetuosidade que perpassa nesta escrita e que a torna acolhedora e um meio de incentivo à leitura – tornando o sentido pedagógico eficaz, mas também exigente, pelo rigor na construção das frases e da narrativa. A obra fala por si. Do jornalismo à poesia, passando pelo romance, presenciamos um culto e um domínio seguro da língua portuguesa – que, naturalmente, se projeta no género em que mais se celebriza. Recebeu, por isso, os Prémios Gulbenkian pelo conjunto da sua obra e por «Este Rei que eu Escolhi». O êxito junto dos mais jovens é corolário de uma exemplar escolha de temas e pela mestria inequívoca na escrita.

 

O INCENTIVO À LEITURA

A melhor homenagem que podemos fazer a Alice Vieira é salientar o seu papel fundamental no incentivo à leitura, na melhor tradição de grandes escritores que escreveram para crianças e para todos, usando temas relevantes – desde a História às tradições, dos contos tradicionais à relação amigável com a natureza, desde a solidariedade à responsabilidade cívica. No fundo, incentivar a leitura é dar à cultura uma força criadora especial. É pôr em contacto as diferentes gerações. É ligar os vários momentos de uma história viva. É considerar a aprendizagem como o fator do desenvolvimento por excelência. É fazer dialogar os poetas e os escritores das diferentes gerações. É ir ao encontro do povo e da sua extraordinária capacidade para tornar vivos os valores fundamentais, como a dignidade humana. Alice Vieira faz da literatura um ato de prazer e de recordação.

 

Guilherme d’Oliveira Martins

Oiça aqui as minhas sugestões - Ensaio Geral, Rádio Renascença

 

 

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

 

   Minha Princesa de mim:

 

   Por muitos anos - nem me lembro  quantos! - íntima-impulsivamente me punha a ouvir as Canções às crianças mortas, os cinco Kindertotenlieder do Gustav Mahler. Friedrich Rückert (1788-1866), poeta romântico alemão, terá escrito 428 poemas de saudade e dor - pensossinto que bem sofridos - em 1836, quando lhe morreram dois filhos. A sua publicação foi póstuma... Hoje em dia, ninguém sabe quem Rückert foi, e dos seus poemas resta a lembrança das canções em que se converteram, sobretudo os que Mahler pôs em música: cinco Kindertotenlieder e mais cinco outras canções. Mas o compositor não tinha ainda filhos mortos, nem casado estava, quando compôs essas canções às crianças mortas. Há quem pretenda que seria pela morte de seu irmão Ernst, eu antes creio que terá sido por um forte pensarsentir o íntimo dos poemas de Rückert. O que ora te digo, Princesa de mim, é autenticamente muito subjetivo, tem muito a ver com o tal impulso que tantas vezes me levou a pôr a tocar discos de, primeiro, 78, e, mais tarde, 33 rotações...para escutar os Kindertotenlieder! De há uns anos para cá, limitado aos CD´s, alterno entre a versão Bruno Walter/Kathleen Ferrier (1952) e a de Leonard Bernstein/Thomas Hampson (1986), entre dois grandes maestros e uma contralto contra um barítono. Comovo-me sempre, são certamente tocantes os intérpretes, é fortemente cardíaca a música... E, todavia, quando encontrei - nem sei como, nem exatamente quando nem onde - a poesia de Rückert, traduzi um kindertotenlied que nenhum Mahler musicou. Teria 15 ou 16 anos? E porque o fiz então, e guardei essa tradução em letra de adolescente quase a deixar de ser romântico? Não sei. Sei só que a reencontrei agora, perdida na papelada que vou arrumando ou rasgando, em vésperas de retiro definitivo para o campo...

   Antes de a transcrever, quero todavia dizer-te que a reli a uma luz diferente, tal como diferentemente me soou o coração dos kindertotenlieder, que hoje novamente escutei. Talvez por ontem ter recebido de um velho amigo, que eu não via há 50 anos, era ele ainda 1º tenente da marinha de guerra e fuzileiro naval - quando, hoje, é padre e frade dominicano - um crucifixo trabalhado por monjas dominicanas contemplativas, em que o Cristo não está de braços esticados e pregados, mas é salvador e abraça um filho pródigo à sua frente ajoelhado. Eis quando, na morte, momento certo ou visão perseguidora, a vida vence. Olho essa cruz de misericórdia, pousada na palma da minha mão e recito, com coração novo, as quadras de Rückert que traduzi (há sessenta anos?):

 

Du bist ein Shatten am Tage                               

Und in der Nacht ein Licht;                                  

Du lebst in meiner Klage
Und stirbst in Herzen nicht.

 Wo ich mein Zelt aufschlage,                               

Da wohnst du bei mir dicht;                                 

Du bist mein Schaten am Tage  
Und in der Nacht mein licht.

            

Wo ich auch nach dir frage,                                                             

Find dich vor dir Bericht,                                      

Du lebst in meiner Klage                                       

Und stirbst im Herzen nicht.                                 


Du bist ein Schatten am Tage   
Und in der Nacht ein Licht;                                  

Du lebst in meiner Klage 
Und stibst im Herzen nicht.    

 

Sombra és de dia

e luz na escuridão;

vives na minha agonia

não me morres no coração.

 

Onde for minha a moradia,

aí me habitas o coração:

és minha sombra de dia

minha luz na escuridão.

 

Quando de ti inquiria,                                

tinha esta revelação:

vives na minha agonia

não me morres no coração.

 

És uma sombra de dia

uma luz na escuridão;

vives na minha agonia

não me morres no coração.

         

 

          

   Se a saudade é presença na ausência, se - como tão lindamente cantava Maria Teresa de Noronha - a saudade é como a luz / que o sol já morto deixou: / é presença, embora cruz, / na alma de quem ficou! /, é autenticamente saudoso este poema do alemão Rückert. E, neste crucifixo que descansa na palma da minha mão, em que o Cristo é um pai que se abraça a um filho pródigo, cujo rosto se esconde no peito paterno, vejo e sinto uma imensa saudade, a nossa peregrina saudade de Deus. Não o vemos, muitos de nós nem acreditam que Ele seja possível.  Ele é, no nosso dia, uma sombra, adivinhamos apenas o seu rosto nos rostos humanos, à nossa volta. Assim Ele se fez carne e habitou entre nós. E sentimo-lo na nossa noite, é - ou talvez seja - a luz que brilha no escuro coração da nossa saudade.

   Sempre penseissenti o cristianismo como vivência minha, nossa, da humanidade de Deus: a paixão de Cristo é o sofrimento de todos nós, ensina-nos que nunca estamos sós, que é de todos a mesma dor de cada um, e a comunhão na esperança que nos ilumina. Somos todos oferta, por Cristo, com Cristo, em Cristo. As mães e os pais que perderam filhos sentiram, como ninguém mais, o peso do absurdo, essa força da gravidade que nos abate por terra e nos quer isolar e fechar. Só o sopro da graça poderá levantá-los do chão. Quiçá como nesse lied, em que o poema de Friedrich Rückert começa assim: Oft denk´ich, sie sind nur ausgegangen!, "Muitas vezes penso que eles apenas saíram!" Dele fez Gustav Mahler o quarto dos seus cinco Kindertotenlieder, cuja melodia tão bem canta uma misteriosa desilusão da dor, esse amanhecer da consolação, o conforto da comunhão dos santos. Traduzo-o agora, prosaicamente: os sentimentos espontâneos são, afinal, muito íntimos, dispensam grandiloquências...

 

             Muitas vezes penso que eles apenas saíram!

             Em breve voltarão para casa!

             Está um belo dia, não te inquietes,

             eles foram só dar um grande passeio...

 

             Pois é, eles apenas saíram,

             e vão voltar para casa agora.

             Não te inquietes, está lindo o dia!

             Eles só foram passear até às colinas.

 

             Eles apenas saíram à nossa frente,

             já não quererão voltar para casa!

             Vamos ter com eles lá acima, à luz do sol!

             Está um dia lindo no alto das colinas!

 

   E como que a pedir, Ele também, perdão, o Pai se debruça e acolhe, em humano abraço, o regresso dos filhos pródigos.

 

Camilo Maria                      

 

Camilo Martins de Oliveira

A FORÇA DO ATO CRIADOR

 

 

Acerca das Pontes do Porto – D. Maria Pia, D. Luís e Arrábida.

 

Só no início do séc. XIX (em 1806) foi construída a primeira ponte que liga a cidade do Porto a Vila Nova de Gaia e que atravessa o rio Douro. Era constituída por 20 barcas ligadas por cabos de aço e por isso designada por Ponte das Barcas. O aumento do tráfego e a grande actividade comercial que caracterizava o Porto, fez com que a Ponte das Barcas fosse substituída pela Ponte Pênsil, em 1843, a primeira ponte metálica construída em território português.

 

Em Portugal, a revolução industrial arrancou mais tarde do que em outros países da Europa (como em Inglaterra e na Alemanha). Mas entre as décadas de 1850 e 1880, Fontes Pereira de Melo propôs-se a criar riqueza para consolidar o regime constitucional e a transformar o país de modo a integrá-lo numa Europa que passava por uma época de grande prosperidade. Com a abertura de estradas e ao introduzir o caminho-de-ferro, Fontes Pereira de Melo permitiu a ligação entre povoações num país cujo principal meio de locomoção ainda era a mula. O primeiro troço de via-férrea em Portugal foi inaugurado em 1856 e ligava Lisboa ao Carregado. Nas décadas seguintes o Estado promoveu, em associação com empresas privadas, a expansão de uma considerável rede de transportes – só entre 1856 e 1890 foram lançados 1689 Km de linha férrea. Na década de 1880, empreendimentos grandiosos como a ponte ferroviária D. Maria Pia e ponte rodoviária D. Luís I representavam um esforço acrescido e importante por parte do Estado na promoção de uma certa ideia de prosperidade. Ao promover melhoramentos materiais, fazer circular com mais facilidade bens, capitais e pessoas e ligando Portugal com o resto da Europa (a construção da linha de caminho de ferro permitiu que Paris ficasse de Lisboa somente a dois dias de distância) aspirava-se a aumentar a matéria colectável e assim habilitar os poderes públicos a poder acorrer às despesas necessárias.

 

De facto, a utilização do ferro fundido, muito divulgado na Era Industrial aquando da expansão das linhas de caminho-de-ferro, trouxe aos projetistas a possibilidade de construir pontes com soluções inovadoras no que diz respeito à geografia do terreno e a sua vasta aplicação (em estações, mercados, salas de espectáculo, armazéns, elevadores, garagens, quiosques, lavadouros, fábricas, etc.) deveu-se à facilidade do seu manejamento, à rapidez da sua montagem e à economia de meios. Sendo assim a Ponte D. Maria Pia (1876-77),da autoria de Théophile Seyrig, na altura colaborador da empresa do engenheiro francês Gustave Eiffel (que se instalou em Barcelos entre 1875 e 1877, para poder seguir o curso das obras da ponte de mais de perto), apresenta um modelo pioneiro de uma ponte construída em tempo recorde, em ferro fundido com um grande vão. Esta ponte somente ferroviária era na altura da sua construção, a que apresentava o maior vão da Europa. Foi também a primeira ponte ferroviária a atravessar o rio Douro e a ligar as Fontaínhas a Vila Nova de Gaia. É constituída por um arco biarticulado que, através de pilares em treliça, suporta o tabuleiro ferroviário. A ponte foi inaugurada em 4 de Novembro de 1877 e contou com a presença do casal real D. Luís I e D. Maria Pia. Após 114 anos de funcionamento, a Ponte D. Maria Pia foi desactivada. Era dotada de uma só linha e só uma composição com uma carga limitada podia passar de cada vez, a uma velocidade máxima de 20 Km/h. E assim em 1991, a Ponte de S. João foi construída para passar a servir a Linha do Norte.

 

Na segunda metade do séc. XIX o comércio progredia no Porto, o tráfego para Gaia e para Lisboa aumentava e por isso a necessidade de uma ligação rodoviária ainda mais eficaz, levou ao desmantelamento da Ponte Pênsil para no mesmo local se construir a Ponte D. Luís I, inaugurada em 1886. A Ponte D. Luís I é uma ponte rodoviária e é a ponte mais antiga do Porto ainda em funcionamento. Tornou-se um dos símbolos da cidade pela sua estruturação em dois tabuleiros metálicos (um inferior e outro superior), sustentados por um grande arco de ferro e cinco pilares. Os dois tabuleiros, originalmente serviam como ligação rodoviária entre as zonas baixa e alta de Vila Nova de Gaia e do Porto. Durante décadas a ponte ligou o norte e o sul do país. O projecto da Ponte D. Luís foi também executado pelo engenheiro belga Théophile Seyrig. Em 1879, fora aberto um concurso para a construção de uma ponte metálica que substituísse a Ponte Pênsil. Diversas propostas e concorrentes apresentaram-se a concurso e o projecto da empresa de Gustave Eiffel foi rejeitado porque só contemplava um tabuleiro ao nível da Ribeira. Foi assim vencedora a proposta da empresa belga Société de Willebroeck, com o então projecto do engenheiro Théophile Seyrig, autor da concepção e chefe da equipa de projecto da Ponte D. Maria Pia. Em 1881, inicia-se a construção da Ponte D. Luís I e à inauguração do tabuleiro superior, em 1886 sucedeu a abertura do tabuleiro inferior em 1888. Nos dias de hoje, o tabuleiro superior serve uma das linhas do metro do Porto e o tabuleiro inferior serve ainda para peões e veículos automóveis.

 

Por sua vez, a Ponte da Arrábida, da autoria do engenheiro Edgar Cardoso, foi a segunda ponte rodoviária a ser construída sobre o Douro, e que liga também o Porto a Vila Nova de Gaia. Inaugurada em 1963 veio dar resposta a um aumento significativo do fluxo de circulação rodoviária na ponte D. Luís I, sobretudo causado pelo acentuado crescimento demográfico que se registava na área metropolitana do Porto. A necessidade de uma travessia alternativa tomou forma por iniciativa da Junta Autónoma das Estradas, que em 1952, adjudicou a elaboração de um anteprojecto, para uma ponte entre a zona da Arrábida e o nó do Candal, ao engenheiro Edgar Cardoso. O projecto foi aprovado em 1955 e a sua construção iniciou-se em 1957. Aquando da sua inauguração, em 1963, a ponte registava o maior arco construído em betão armado do mundo. O arco sustenta uma plataforma com um comprimento total de 615m, apresenta um vão de 270m e 52m de flecha e é constituído por duas costelas ocas paralelas de 8m de largura, ligadas entre si por contraventamentos longitudinal e transversal. Originalmente, apresentava duas faixas de rodagem e duas faixas laterais para peões e ciclistas. A ponte dispõe de quatro elevadores para peões, para permitir a travessia pedonal entre as duas margens. Nas torres dos elevadores podem observar-se quatro esculturas ornamentais da autoria de Barata Feyo e de Gustavo Bastos. A ponte faz parte da auto-estrada que faz a ligação entre o norte e sul de Portugal.

 

 Ana Ruepp

 

 

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

Minha Princesa de mim:

 

  Le Monde des Religions publicou recentemente (setembro/outubro de 2016) um número sobre o véu e a sua história. É aí que recolho os testemunhos femininos que para ti traduzo.

  1. Nawal (pseudónimo) tem 29 anos, medrou num subúrbio de Paris, no seio de família muçulmana, numerosa e modesta, até ter conseguido obter o grau de mestre em recursos humanos: Quanto a mim, penso que o ser humano tem essa incrível capacidade de velar o rosto, literalmente. A vida é angustiante, porque constitui um mistério que ninguém consegue ainda determinar, nem cientistas, nem pessoas muito piedosas. Tenho a impressão de que pomos o véu para nos protegermos do olhar dos homens, para não lhes chocar a sensibilidade. Isso cria-me um problema. Se o homem se incomoda com o que é belo -  um rosto, um cabelo -, não cabe à mulher submeter-se a ele, esforçar-se por algo de que não é, de modo algum, responsável. Gostaria que as muçulmanas veladas se informassem sobre a dificuldade de se ser uma mulher não velada nos países religiosos, onde não têm liberdade de escolha. Nos países ocidentais, a dominação masculina também é muito pronunciada. Conquistar-se um lugar, enquanto mulher, no meio laboral e na sociedade, dá muito trabalho. Combatemos corajosamente para impor a nossa independência económica e social. Penso que usar véu não será a melhor estratégia para uma vida feliz, livre e autónoma. Antes servirá de travão. Velar-se é velar a cara. Todavia, gostaria tanto que a religião muçulmana brilhasse novamente. Só se ouve falar do seu lado sombrio. Embora cada comunidade religiosa tenha o seu, é claro que, nestas últimas décadas, foi o islão que confortou mais angústias.

  2. Nour, de 23 anos, exerce serviço cívico na associação Coexister: Uso o véu desde há dez anos. Para mim ele faz parte das obrigações religiosas que competem a uma mulher muçulmana a partir da puberdade. No colégio, punha-o depois das aulas. Isso não chocou ninguém à minha volta: vivia em Barbès, um bairro parisiense onde reside uma maioria de emigrantes de origem magrebina e africana. Não pensava em todo o alcance desse símbolo religioso, sobretudo nas suas dimensões antropológicas e sociais. Não senti olhares hostis até ir para a faculdade, no bairro de Saint-Michel, onde pude encontrar pessoas de meios muito diferentes. Espiritualmente, o véu é uma lembrança do divino. Para mim, tem um significado muito semelhante ao do kippa [solidéu judaico]: há um Deus por cima do véu e um ser humano por baixo. Socialmente, o véu é claramente um meio de identificação dos membros da comunidade, mas é também um sinal de modéstia. Insere-se no enquadramento geral do pudor no islão, capítulo muito importante. Mas não se trata apenas de cobrir o corpo, é preciso também adotar um comportamento pudico, uma certa direiteza. O princípio consiste em ser-se modesta relativamente ao que nos gratificou, sejam bens materiais, um físico vantajoso, ou mesmo um estatuto social. O mesmo se pede aos homens, mas noutros aspetos: por exemplo, não têm o direito de trazer ouro, seda, tecidos preciosos, vestes extravagantes, o que mostraria orgulho. Hoje, poderíamos falar antes de um Rolex [risos].

 

   Duas jovens muçulmanas, ambas crescidas e educadas (com formação universitária) em França. Uma explica porque não usa véu. A outra porque o traz. Ambas serenas, com inteligência atenta e fina sensibilidade. Deram-me que pensar e sentir, Princesa, duas mulheres novas que me encheram de respeito. Há questões que não podem e não devem ser tratadas, nem com leviandade, nem com rigidez, menos ainda com brutalidade. Como diz a Nawal, a vida humana é um mistério, que nem cientistas nem pessoas muito piedosas conseguiram ainda desvendar. Só por isso é infinitamente respeitável, e é sagrado o íntimo de cada um de nós. Termino esta carta com os testemunhos de duas freiras católicas, com os quais, ambas as jovens muçulmanas, cada qual a seu modo, com mais ou menos acordo, serão certamente capazes de comungar, na capacidade de discernimento e liberdade. E no desejo de afirmação e audiência. 

  3. A irmã Maria Rosangela é a superiora geral italiana do Instituto das Irmãs da Imaculada, em Génova: Para mim, o véu tem este significado simbólico: reservar para alguém a nossa própria beleza e pessoa. No caso das religiosas católicas é um sinal de pertença a Deus. Além disso, o véu identificou a vontade de certas religiosas de serem, por opção exclusiva de vida, lembranças vivas da presença de Deus entre as pessoas. Num mundo em que se procuram sinais, creio que é importante, também no domínio religioso, ter algo que nos qualifique, que ajude os outros a identificar-nos imediatamente. No quotidiano, o meu véu recorda-me o meu compromisso: o que represento ao trazê-lo deve corresponder à realidade de que dou testemunho. Todas as manhãs isso me ajuda a lembrar-me de quem sou. O véu que trago é bastante invasor, quer pela forma, quer pelo tamanho! Graças a ele, pude acolher confidências de pessoas, que à partida eu não conhecia de todo, e que confiaram em mim. Também fui provocada e contestada, marginalizada. Hoje em dia, ser religiosa católica e mostrá-lo, pode irritar certas pessoas. Mas, por vezes, o véu permite-me entrar em contacto com pessoas que, ultrapassando os seus preconceitos, conseguem ter conversas enriquecedoras. Sem esse sinal claro de pertença a Deus, dificilmente teria beneficiado desse género de encontros.

  4. A irmã Fabíola Gusmão é timorense, carmelita na congregação das Irmãs da Virgem Maria do Monte Carmelo: O véu faz parte do que chamamos hábito, é um todo. Revestindo-o, as pessoas querem mostrar a relação esponsal – nupcial - entre Cristo e a sua Igreja. Significa que nos submetemos ao amor, à ternura atenta de Cristo. Mas submissão não é escravidão! Para toda a família carmelita, a cor do nosso hábito, e véu, significa a terra. Quer isso dizer que vimos da terra, do pó, e que em pó nos tornaremos. Entre as carmelitas, umas trazem véu, outras não. Mas em Timor Leste, como na Indonésia ou nas Filipinas, queremos usar hábito. Na Ásia temos mesmo "orgulho" em mostrar a que congregação pertencemos! Divertimo-nos a adivinhar se as religiosas são missionárias, carmelitas ou outras! O nosso véu é também um sinal de pobreza: trazemos sempre o mesmo, durante anos. Não há necessidade de andar à moda, nem de nos maquilharmos! [risos]. Na Indonésia, onde vivi alguns anos, a maioria da população é muçulmana, parte da qual fundamentalista. Pertencer visivelmente à Igreja Católica não ajuda. Em 2006, aquando do sismo na ilha de Java, religiosas da minha congregação deslocaram-se para irem lá socorrer as populações. Mas tiveram de renunciar a trazer hábito. Fizeram-no também por respeito. Se os muçulmanos tocam nos nossos hábitos, consideram isso "impuro". Respeitamos isso. Depois, vivi na Irlanda, onde era diferente, o véu não se notava. Penso que o véu desempenha funções de barreira, quer no sentido positivo, quer negativo. Para mi, é como uma vozinha e lembrar-me: "Atenção! Porta-te bem!" É uma maneira de me impor limites, de me impedir de ir a certos sítios. Enfim, penso que hoje ainda temos necessidade de sinais visuais, de mostrar que há pessoas que continuam a consagrar a Deus as suas vidas!
 

   Também estas religiosas refletiram sobre identidades, identificações e convivência. Também com elas o laicismo francês - que hoje insiste em ser intolerante e totalitário -  tem muito para aprender. Não há entendimento possível sem reconhecimento das diferenças e respeito pela identidade delas. Repito Je ne suis pas Charlie!, pois não creio que tal jornal seja propriamente um fator de compreensão mútua ou um mensageiro de paz. E prefiro mil vezes - sinto-me bem mais confortado - a vista de mulheres e homens exibindo os sinais das suas fés ou das suas opções à perseguição seja de quem for, só por querer, sem malfazer, mostrar o que é.

 

Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira

A Denúncia do Simulacro

  


(in Jornal Euronotícias 29.01.01) 

A todos deveria ser garantido o direito ao Ser e à sua transmissão por vida ou por morte.

Eis uma tarefa que não deveria carecer de afirmação e que, contudo, tem a função de se opor à fácil digestão de tudo o que nos rodeia, enquanto ordem do dia. Ao longo da História, sempre a desengonçada praga de seres fictícios infetou as fontes de energia dos humanos que reivindicavam em silêncio ou não, a capacidade de se surpreenderem e interrogarem face à profundidade dos mundos. Hoje, impõe-se a obnubilação a quem se aventure, insistindo-se em designar o que não deve ser olhado, interditando a espessura do mundo e dos seres. Acredito não ser desprovido de sentido, os inúmeros elucidários de como elaborar documentos sem interesse geral ou particular, bem como a forma que devem revestir as procurações de mando, os requerimentos não especificados mas que se destinem a averbar o foro do Ser, não esquecendo todas as necessidades de consultar as formalidades após falecimentos e demais assuntos.

A tentativa de fratura da pedra filosofal a tudo obriga.

Acresce que há que reduzir ao mínimo custo de manutenção, este estado de coisas, já que a tarefa da uniformização da sensibilidade existente, teve o seu preço ainda que realizasse e concretizasse o titanismo estereotipado. Assim, glorificam-se como símbolos da dignidade os excelsos na arte de ludibriar.

Universidades, laboratórios, empresas e famílias, muitas delas, formam hoje uma casta de avanços infinitesimais que elevam o “saber” que produzem a um estranho nevoeiro capaz, muitas vezes, de ensombrar o Conhecimento que desde Aristóteles constituiu o saber humano. Incapazes de ver para além do estreito círculo de pequenos achados inúteis, gentes liliputianas, pululam ligadas a redes de troca do esquecer do Ser, exalando ácidos suores que impedem os Homens de clonar a esperança.

Agrava-se a vida em penar, a quem quer que tente perceber o mundo interior da absurdidade para que se deixe de doar parcelas de equívoco que simulam o Todo: de ato mais totalitário, desconheço melhor exemplo.

 Esquecem ou desconhecem, os radares deste absurdo exército, quais os diferentes pontos de escuta e a qualidade dos mesmos, razão pela qual e por via de escassas dúvidas, esta teia, nos seus interstícios, tem por objetivo agredir cegamente a própria identidade dos seres, retirando-lhes as raízes, sem as quais o mendigar é certo e donde a liberdade se encontra excluída. Aguçada a insânia face ao sucesso do mercado, torna-se urgente reagir aos protagonistas destes tempos e destes horizontes.

Ninguém desejará sobreviver preso ao mundo que lhe resta, ao qual se lhe pode subsumir o nome de “écran-circo-simulado-de contrato-social.”

Não se descuide, todavia, que o Homem solitário, sofrido e lúcido, não é mero espectador do irrisório mas trágico espetáculo que não traz à cena. Este Homem solitário é em Si um universo separado do destino do restante universo a que se opõe. Este Homem solitário acredita que o Estado se mantém também graças ao medo.

Este Homem solitário é avassalador face à máquina central: enfrenta-a para dar resposta à sua própria exigência; cumpre sem preço e sem dono o seu próprio íntimo. Este Homem solitário é atento à comunidade e aos desígnios com que a desejam confundir, sobretudo quando por subtis trejeitos se vai entendendo ser um “robot” mais valioso do que uma multidão tão cedo desta vida descontente.

 

Vive-se o plexo da anulação das vidas, da desflorestação das ideias, desdenhando-se os dias anteriores e posteriores à transgressão, ainda que esta, por saberes indizíveis, condenada a não ter preço como a poesia. É o desejo de nenhuma insurreição enfim possível! Que o cimento oculte o brilho! Não descuido, devo dizer, que também faz parte integrante de um processo que inculca a meta-mercadoria, a supressão da magia da infância em cada um de nós, exatamente aquela que leva o espírito ao desassossego do porquê, aquela cujo propósito era distinguir sabores e dá-los a experimentar...

Resta a palavra e a atitude; a denúncia do simulacro.

Creio que sempre germinará uma força sagrada face aos que só dispõem de aparência de vida; face aos diminutos por excelência que para si demarcam os limites do universo e, quando já se não olha em volta, quando não se medem consequências ou, em cegueiras de poder incontidas, se não cuide que os seres enfrentam riscos insanáveis, doenças irremediáveis, ouro esverdinhado, então que alguém lembre:

 

“Vai, voa, Sonho pernicioso (...) E o Sonho partiu após estas palavras”.  


ILÍADA

Teresa Bracinha Vieira

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