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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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UM ESTRANHO ENIGMA - capítulo X

 

 

Saltou de leve e rolou sobre o ombro para absorver o momento. Duas rodas, aumento da passada, balanço, corrida e subida da parede até onde dizia “Luana I love you: Jaime pôs a sola do ténis em cheio no coração sprayado a vermelho vivo no cimento. Tomou o balanço necessário para uma última pirueta no ar, parou no ar para olhar o mundo de cabeça ao contrário e quando aterrou, puxando o cós das calças e ajustando os fundilhos, mal poderia imaginar que aquela que lhe passaria pela cabeça lhe fulminaria o futuro de forma irreversível virando-lhe a vida para um outro avesso. 

 

De t-shirt a gritar “Light my Fire”, de ténis agora sem sangue pisado e sem skate por baixo, pensou naquela, aquela! de quem nem sabia o nome mas que se chamava Elisa e que personificara Tsela Curtis, aquela que era morena e que afinal eram duas, aquela que ele salvou da sua overdose com um fogo posto enquanto ela-enquanto-outra-mas-polícia namorava o seu amigo Nelson no Bar do Bill, o seu falhado alibi. Pagaria o acto heróico involuntário (e nada “à la Doors”) com uma pena de 7 anos.  

 

Hoje era o seu último dia de liberdade e sem saber muito bem o que fazer, Jaime sai da boca do metro no Marquês de Pombal, sem skate, sem olhar as ruas como uma geometria de curvas apetitosas para percorrer sem norte nem sul, sem cima nem baixo, e sobe agora o parque Eduardo VII como quem até aprecia andar com os dois pés calçados no chão, sem rodas por baixo. Jaime sobe o parque arrastando os pés pelo chão. Apenas a cabeça faz loops incansáveis no ar interrogando-se por que raio tinha de se ter lembrado dela naquele preciso momento, e porquê ela, e logo ela! Jaime percorria os olhos pelas estantes da 86ª feira do livro de Lisboa da direita para a esquerda, da esquerda para a direita nunca se atrevendo a olhar o céu pensando nos 15€ que tinha no bolso e que prometera gastar antes das 18h, hora em que tinha de se apresentar na penitenciária de Lisboa na Rua Marquês da Fronteira. Jaime tinha lido algures que a maioria dos filósofos e dos escritores tinham escrito as suas melhores obras em regimes de clausura, forçada ou não. Tinha de encarar esta injustiça como uma oportunidade. Era o que ouvia dizer ao mais popular dos políticos e ao mais Zen dos mestres. Uma pessoa perde a casa, perde o emprego, perde a família, perde a liberdade, perde mesmo o norte mas deve encarar tudo isso como uma oportunidade. 

 

Jaime pisara sangue mas era o sangue inventado que corre nas bermas dos filmes menores em que a vítima é muito mais quem mata do que quem morre que lhe acenava com possíveis finais felizes para este capítulo da sua vida. Pára logo ali na primeira banquinha e lê um título sobre o qual já ouvira falar. O mistério da boca do inferno. Pessoa e Crowley. De Crowley já ouvira falar porque assinava sempre com um 93/93, o mesmo número insubstituível de um qualquer jogador de basebol famoso que Jaime admirava e exibia numa t-shirt quando não vestia a dos Doors; e de Pessoa todos já tinham ouvido falar, então não era dele o do fogo que arde sem ver?, é ferida que arde e não se sente?… Oh não?…este fogo era de Camões, mas Pessoa também ardia por dentro, pensava Jaime, tal como a Elisa, tal como ele, o Jaime, tal como o Jim, o Morrison, mas também o francês do filme com o travelling mais longo sobre Paris que por acaso também atravessava a cidade lá para os lados de Père Lachaise. E ele mesmo, Jaime, que também era Jim, que também era Jules, não desprezava o facto de ter um nome iniciado pela letra J. Antes pelo contrário. Decidiu fazer jus à letra e ao legado muito Cahiers du Cinéma e ali mesmo decidiu que tinha três horas para se apaixonar antes de entrar na penitenciária e cumprir a sua pena. Jaime correu para o Bar do Bill, Nelson ainda lá estava, ou lá estava ele outra vez, com a gémea, a outra, a Palmira, a da coxa tatuada e com um sinal por entre as tatuagens. Jaime pisara sangue, as solas ficaram molhadas de morte, mas continuou a avançar. Até ao fim. Assim é que terminavam os filmes na vida real. Com um fim mesmo fim. Nelson olhou o amigo com surpresa, Palmira com horror, o Bill com ar de quem já tinha lido aquela história em qualquer lado, são muitas as gerações que passaram e se perderam por ali, ao seu balcão, mas Jaime não tem tempo a perder com primeiras ou últimas impressões, tem de cumprir o filme da sua vida, com a banda sonora ideal e tudo para depois a poder escrever depois de morto. Sim porque a prisão é uma morte temporária, olha que frase à maneira, pensou o Jaime já a desenhar o primeiro capítulo na sua cabeça, e Jaime não tem mesmo tempo a perder, agarra-se a Palmira e beija-a como se não houvesse amanhã e diz-lhe que foi tudo por causa dela, Percebes? Ela acena que sim mas é mentira, lá está, todos queremos ter o papel principal nas nossas vidas e se possível na de mais alguém, e ele pega-lhe na mão, acena a Nelson e diz-lhe: Vê! Entram os dois num carro dos anos 30, 40? (quanto tempo passa para Jules e Jim no filme das suas vidas?) e ele carrega a fundo no acelerador como se fosse a Jeanne, e não o Jaime, enquanto Palmira percebe de imediato que é Catherine, ou não fosse este o momento alto de um grande filme. À sua frente abre-se um abismo e eles são por um breve meio segundo, Jules e Catherine (ou seria o Jim quem conduzia?), Thelma e Louise, Butch Cassidy e Sundance Kid. Antes morrer que ser cativo. Antes matar o amor que não ser amado, e poder, depois de morto exibir a tal placidez, esboçar quiçá um sorriso, uma última ofensa para os vivos!, nós ali, depois de mortos, todos com cara de quem sabe que na vida nada acontece de especial.

 

São 8 euros e meio. Diz o vendedor da banca quando Jaime se preparava para levar o livro sem pagar.  

Desculpe-me. Consentiu Jaime, pousando o livro. Não precisava de mais um crime, não precisava de aumentar a pena nem ter um capítulo a mais no seu opus magnum. Subiu o resto do Eduardo VII sem olhar para qualquer livro. Comprou uma fartura. Pareceu-lhe uma boa ideia. No cimo do parque Eduardo VII olhou para trás para ver a cidade como nunca a tinha notado. Virou-lhe costas e pensou que gostava de ir ao cinema antes de se fechar numa cela. Mas a próxima sessão já começava tarde demais. 

 

 

. : : FIM : : .

 

 

UM ESTRANHO ENIGMA | Folhetim de Verão CNC 2016

Ilustração © Nuno Saraiva [Direitos reservados] 

 

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