CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA
Minha Princesa de mim:
Dizes-me que, em cartas recentes, ao chegar-me tanto a factos concretos e relatos circunscritos, também eu me imiscuo em política... Respondo que talvez sim, é difícil fugir de falar de acontecimentos, pessoas e narrativas que, de um modo geral, se diz que são políticos. Mas penso que talvez não, no sentido em que não assumo uma perspetiva partidária, facciosa, nem sequer simplesmente anrogular, não tenho nem tomo qualquer ponto de vista que me limite ou segmente uma visão global. Procuro uma visão tão abrangente quanto possível, distanciada de tomadas de posição preliminares, privilegio um olhar antropológico, um esforço para entender psicologias e culturas, espíritos e circunstâncias. Mais, muito mais do que afirmar, interrogo. Interrogo a análise e a interpretação de outros, e a minha também. Nem sempre conseguimos entender tudo, nem sequer reunir informação mínima, a necessária para desvanecer cortinas de nevoeiro que apenas nos deixam adivinhar vagas sombras da realidade.
Dou-te um exemplo recente: quantos de nós poderemos total e infalivelmente reconhecer e apontar os fatores, agentes e responsabilidades da presente situação na Turquia? Ou de qualquer outra que nos seja presente? E será que podemos tentar reconstituir o clima, ou as circunstâncias históricas, em que essa situação foi surgindo e evoluindo, mesmo que ganhemos a serenidade necessária ao indispensável distanciamento dos nossos preconceitos, inclusive das nossas mais queridas memórias históricas? - o que quiçá será mais fácil para um estranho do que para um "nacional".
Na trincheira do campo de batalha, em que se agachava, em 1917, escreveu o historiador Jules Isaac (cf. Un historien dans la Grande Guerre, Paris, Armand Collin, 2004): Desconfiemos, pois, das nossas recordações históricas: longe de nos ajudarem a compreender, elas enganam-nos, despistam-nos, expõem-nos a manobras falsas...
Não tenho, nem formação disciplinar, nem informação suficiente, para te ajudar a inteirares-te da situação atual da Turquia. Posso tão somente lembrar-te de que ela, apesar de toda a sua complexidade popular e pululante, do drama vivido por seres humanos, nossos irmãos - que talvez só desejem uma vida menos complicada e discutida, mas mais fraterna e feliz - pode desenhar-se num quadro de referências históricas, ideológicas, políticas e religiosas, concordantes ou concorrentes umas, contraditórias ou exclusivas outras: o presidente Erdogan reclama-se hoje da herança kemalista (de Mustafá Kemal, mais conhecido por Ataturk), porque os princípios definidos, entre 1927 e 1934, pelo fundador (Ataturk ou Pai dos Turcos) da República que substituiu, em 1923, o Império Otomano, o podem ajudar a alicerçar uma legitimidade, num país dividido entre islão e laicidade, entre lembranças imperiais e exigências republicanas. São eles «as seis setas»: laicidade, nacionalismo, estatismo, republicanismo, populismo e revolução. Mas tal não torna Erdogan num autêntico kemalista, ele que sempre defendeu uma reislamização da Turquia e, nesse particular, até será mais islamista do que o seu adversário de eleição, o imã Fethullah Gülen, exilado nos EUA.
Este, líder religioso de um movimento que se foi profundamente infiltrando no aparelho do Estado, desde as forças armadas à justiça, ao ensino e à administração pública, tal como em empresas e suas associações, a ponto de o compararem à Opus Dei, procurava, diz-se, defender o diálogo inter-religioso, herança espiritual do sufismo, o que faz dele um nacionalista turco mais preocupado com a liderança do islão sunita, do que propriamente com a confusão desta com a saudosa preponderância otomana. Talvez bata aqui o ponto da sua divergência potencial e atual com Erdogan. Não sei.
O poder político deste, reforçado pelo proclamado falhanço de uma conspiração contra si, aponta ao outro a motora responsabilidade da mesma, e não está sozinho: parece que mais de metade do povo turco assim pensa, tal como certos intelectuais, personalidades políticas, como Murad Akincilar, o qual, tal como Gülen e Erdogan, também teve de sofrer prisão por razões de Estado. E os próprios kemalistas, republicanos e laicos, apoiam a tese do AKP, partido do governo de Erdogan, de inspiração islâmica conservadora.
Porquê, quando, afinal, como julgou o politólogo Soli Özel, a Turquia enfrenta hoje, depois da derrocada da República laica, a primeira batalha da República religiosa? Não sei. Tudo isto tem ar de alianças de maior ou menor verdade e conveniência... Com todos à espreita. Ou, talvez, espreitados por um certo olhar teimoso do passado... Não sei, repito, nem posso adivinhar, qual a verdade íntima da proposta de diálogo inter-religioso do hoca efendi (venerável mestre) Fethulah Gülen. Mas posso imaginar a possibilidade de um passo de islamitas convictos em direção aos infiéis. Sobretudo se o cotejar com esta declaração do editorialista Abdurrahman Dilipak, do jornal oficioso Yeni Akit: Se a organização [a de Gülen] tivesse tido êxito, ele teria sido acolhido como triunfador. Todo o mundo sabe que, por detrás dessa organização, estão os EUA, a NATO, o Reino Unido, a França, o Vaticano, Israel, a União Europeia e as lojas maçónicas...
Tudo a conspirar contra Erdogan? Talvez, embora me pareça mistura de gente a mais. Não sei. Mas lembro-me de que a República implantada em 1923 trouxe para Ankara a capital do Estado, desde que Istambul, a Sublime Porta, não só deixara de ser o ponto de encontro, central, de um Império tão euro-asiático como o bizantino, como se situava longe da Anatólia, donde foram então evacuadas as populações gregas... Ankara, pelo contrário, fora o refúgio dos republicanos, a capital de Ataturk. A República turca configurava-se em modelo diferente do Império otomano, com a imposição das reformas kemalistas que, em carta antiga, te contei.
Mas verificamos hoje que oito décadas não apagaram da memória afetiva e eletiva de um povo o apego à grandeza passada do sultanato, ou califado, otomano. Aliás, o Império teve, durante séculos, um olhar sobranceiro para a cristandade e o ocidente. Só quando começou a sofrer algumas derrotas, pensou o turco que algumas reformas seriam necessárias para poder concorrer, mas logo desde o século XVII os próprios sultões reformistas tiveram de enfrentar a oposição do radicalismo religioso conservador, sobretudo o seu ódio a tudo - a todos - o que não se coadunasse ao preconceito tradicional da superioridade da religião e do povo eleitos.
E ocorrem-me agora dois pensamentos que guardei. Um de Raymond Aron, outro do meu querido Georges Bernanos. Escreveu Aron em Évidences (Dezembro de 1955):
O fenómeno decisivo são os ódios abstratos, o ódio de qualquer coisa que não conhecemos, e sobre o qual projetamos todas as reservas de ódio que os homens parecem trazer no fundo deles mesmos..
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De Les Grands Cimetières sous la Lune, esse magnífico protesto contra a guerra de Espanha, que Bernanos escreveu em 1938 - e que tantas vezes noutras cartas te citei - traduzo:
O medo, o medo autêntico, é um delírio furioso. De todas as loucuras de que somos capazes, ele é, certamente, o mais cruel. Nada se compara ao seu impulso, nada pode aguentar o seu choque. A cólera, que se parece com ele, não passa de um estado passageiro, uma súbita dissipação das forças da alma. E, além disso, é cega. O medo, pelo contrário, desde que lhe ultrapassemos a primeira angústia, forma, com o ódio, um dos componentes mais estáveis da nossa psicologia. Até me pergunto se o ódio e o medo, espécies tão próximas uma da outra, não terão chegado ao último estádio da sua evolução recíproca, e se não se confundirão, amanhã, num sentimento novo, ainda desconhecido.
Há vozes proféticas, Princesa de mim, acredita. E não as recordo, nem só, nem sobretudo, por me lembrar da Turquia republicana, de otomanos impérios e sonhos, de sultões ou imãs... Pensossinto, mais do que por mim, no poder do medo que vai afligindo o mundo. Mais do que o ressentimento na história, tema de Marc Ferro, de que também já te falei, pesa sobre nós todos um fantasma que se chama "prestígio do passado", que cristaliza afetos e aversões, e nos paralisa ao ponto de nos impedir a invenção do futuro. O projeto de Ataturk, a revolução kemalista, também nos ensina que pouco ou nada se consegue pela força, por decreto e imposição. Nada de novo acontece sem essa libertação que começa pela cultura do espírito. Tudo o mais é confusão.
Camilo Maria
Camilo Martins de Oliveira