A LÍNGUA PORTUGUESA NO MUNDO
XIII - COMO LÍNGUA DE CULTURA E PLURICULTURAL
1. Se a palavra falada é um fenómeno natural, inato e instintivo, e a palavra escrita um fenómeno cultural, de estudo, instrução e saber, em que o carácter mais acessível e fácil da língua falada, por confronto com o de maior dificuldade da escrita, nos levam a concluir que não há aprendizagem de leitura sem aquisição prévia de uma língua oral, então o homem natural pode viver sem ler nem escrever, ao invés do instruído. Daqui decorre a natureza momentânea da palavra falada, ao inverso da escrita, que se propõe vencer o tempo e o espaço, através da imprensa e do livro.
Mas não chega a língua ser falada e escrita, para ser estratégica, vanguardista e global, nem ser dona de uma grande literatura, havendo que associar-lhe a sua difusão natural, aprendizagem e plasticidade (Fernando Pessoa, “A Língua Portuguesa”), a que acresce que as línguas de comunicação mais ampla também prosperam porque são úteis e estão associadas a uma ideia de prestígio, sendo línguas de cultura em contínua e permanente atualização, desde a aprendizagem clássica às novas tecnologias.
No que toca ao português, como idioma de cultura e pluricultural, que conquistou milhões de falantes através da difusão ultramarina, em que fomos pioneiros e imitados por espanhóis, ingleses, franceses e holandeses, contribuíram para o seu conhecimento e reconhecimento como língua de cultura, dando-a a conhecer e interagindo com línguas de outros povos, obras como: “Crónica da Guiné” (1463), de Gomes Eanes de Azurara, “Carta a El-Rei Dom Manuel sobre o Achamento do Brasil” (1500), de Pero Vaz de Caminha, “Esmeraldo de Situ Orbis” (1506), de Duarte Pacheco Pereira, “Suma Oriental” (1515), de Tomé Pires, “Grammatica de Lingoagem Portuguesa” (1536), de Fernão de Oliveira, “Carta de Marear” (1537), de Pedro Nunes, “Grammatica da Língua Portuguesa” (1540) e “Décadas da Ásia” (1552, 1553, 1563 e 1615), de João de Barros, “Colóquio dos Simples e Drogas da Índia”(1563), de Garcia da Orta, “História de Japan” (1590), do jesuíta português Luís Frois, “Vocabulário da Lingoa de Japan” (primeiro dicionário japonês-português, editado em 1603), “Da Arte da Língoa de Japan” (1608), “Da Arte Breve da Língoa de Japan” (1620), do jesuíta João Rodrigues, as cartas sobre o “Novo Descobrimento do Gram Cathayo, ou Reinos do Tibet” (1624 e 1626), do padre António de Andrade, tido como o primeiro europeu a visitar o Tibete, além das obras clássicas de Camões (“Os Lusíadas”, 1572, 1.ª edição) e Fernão Mendes Pinto (“Peregrinação”, publicada em 1614). Refiram-se ainda os escritos sobre medicina portuguesa introduzidos no Japão, nomeadamente de cirurgia, por Luís de Almeida e Cristóvão Ferreira.
2. Também só numa língua de cultura se podem estudar disciplinas como a Filosofia, Física, Química, História Natural, médicas, jurídicas. Embora aos milhares as línguas existentes, são tidas como de cultura pouco mais de meia centena, onde se incluem as compostas por um vocabulário de aproximadamente 400 000 palavras, com tradição gráfica, literária e de ciência, com potencial de transição de uma sociedade industrial para uma era pós-industrial, entre elas o nosso idioma. Por sugestivo, transcrevemos estas palavras do brasileiro António Houaiss:
“Uma língua de cultura moderna é uma soma de aprendizado ágrafo mais o aprendizado gráfico. O ágrafo - em qualquer parte da Terra - fala: Não há quem não fale, no campo da normalidade: ele internaliza entre mil e quinhentas regras gramaticais, a que obedece sem saber, e maneja entre 2 500 a 3 500 palavras - mas o faz sem frequentar escolas, sem ter professores que o corrijam, sem jamais ter sido aluno”. E acrescenta: “O literato faz tudo o que faz o ágrafo, com algo mais, algo, aliás, muito mais: vai à escola (organizada em rede), aprende de professores (que constituem a mais numerosa categoria profissional) e se faz aluno ou estudante (…). Com isso, sua eficiência produtiva aumenta espantosamente. Há quem ache que esse processo é alienador - pois se podem fazer coisas belíssimas espontaneamente. Só que espontaneamente ainda não se aprendeu a fazer química, física, biologia, matemática, filosofia, botânica, zoologia, medicina e mais trinta mil coisas que são necessárias ao ser humano atual” (“Revista do Património Histórico e Artístico Nacional”, Brasil, N.º Especial, 1990).
3. Alguns dos idiomas mais falados delimitam a sua distribuição geográfica e de falantes nativos a uma área territorial (mandarim, russo, japonês, italiano, alemão), ao contrário do português, espalhado geográfica e territorialmente por espaços descontínuos, intercontinentais e transnacionais, por si uma mais-valia, afirmando-se também como língua pluricultural.
Para este reconhecimento pluricultural (e cultural), muito contribuíram, e contribuem, além de nomes e testemunhos de escrita já aludidos, outros mais, na literatura, escultura, música, pintura, arquitetura, ciência, desporto, outros saberes e artes em geral, por esse mundo lusófono e lusófilo, não só através do prestígio, interno e externo, dos seus contributos diretos, via escrita ou canto oral, mas também pelo eco e repercussão, quanto à origem, dos seus atores. Nomes como Henrique - O Navegador, Gil Eanes, Bartolomeu Dias, Vasco da Gama, Pedro Álvares Cabral, Fernão de Magalhães, Fernão Lopes, Gil Vicente, Vieira, Herculano, Garrett, Camilo, Antero, Eça, Oliveira Martins, Pascoais, Pessoa, Régio, Torga, Eugénio de Andrade, Sophia, Saramago, Herberto Helder, António Lobo Antunes, Agustina, Gonçalo M. Tavares, Machado de Assis, Olavo Bilac, Manuel Bandeira, Jorge Amado, Cecília Meireles, Drummond de Andrade, Guimarães Rosa, Jorge Amado, Clarice Lispector, João Cabral de Melo Neto, Ferreira Gular, Paulo Coelho, Germano de Almeida, Pepetela, Luandino, Agualusa, Ondjaki, Mia Couto, Craveirinha; vozes e cantores como Luísa Todi, Tomás Alcaide, Amália, Zeca Afonso, Dulce Pontes, Teresa Salgueiro (e os Madre Deus), Carlos do Carmo, Mariza, Ana Moura, Carmen Miranda, Chico Buarque, Bethânia, Gal Costa, Caetano Veloso, João Gilberto, Jorge Ben, Gilberto Gil, Elis Regina, Martinho da Vila, Cesária Évora, contribuições musicais e poéticas de Carlos Paredes, Vinícius de Moraes, Dorival Caymmi, Tom Jobim, Toquinho, o samba; a arte de Nuno Gonçalves, Amadeo, Vieira da Silva, Paula Rego, Joana Vasconcelos, Portinari, Malangatana; o contributo desportivo de Pelé, Eusébio, Ronaldo, Cristiano Ronaldo, Mourinho, Carlos Lopes, Rosa Mota, Fernanda Ribeiro, Nelson Évora, Ayrton Senna, Anderson Silva, bem como, noutras áreas, Carlos Seixas, Marcos Portugal, Heitor Villa-Lobos, Gago Coutinho, Sacadura Cabral, Santos Dumont, Oscar Niemeyer, Gilberto Freyre, Egas Moniz, Agostinho da Silva, Eduardo Lourenço, Manoel de Oliveira, Siza Vieira, Paulo Freire, Sérgio Buarque de Holanda, Darcy Ribeiro, António Damásio e Maria João Pires, entre tantos outros, são seus exemplos. Sem esquecer, na vizinha Galiza, Rosalia de Castro e Castelao. E a bondade humana dos portugueses Aristides de Sousa Mendes, Carlos Sampaio Garrido, padre Joaquim Carreira, José Brito Mendes e brasileiros Luís Martins de Sousa Dantas e Aracy de Carvalho Guimarães Rosa. Todos dignificando e universalizando uma língua de várias culturas e uma cultura de várias línguas.
Outrora, pelos novos feitos e literatura de viagens, essa faceta cultural repercutiu-se em obras intemporais, como na “Utopia”, de Thomas More, onde é ficcionado um Rafael Hitlodeu, um marinheiro português que chegou, por mares nunca antes navegados, a uma ilha inexistente e do bom governo. Na atualidade, por exemplo, há uma só referência, na área lusófona, a Pessoa, em “O Cânone Ocidental”, de Harold Bloom (Temas e Debates, Círculo de Leitores, 1.º edição, 2011), alargada para quatro génios do nosso idioma, em “Génio”, sobre os 100 autores mais criativos da história da literatura, do mesmo autor (e editora, 1.ª ed., 2014): Camões, Pessoa, Eça de Queirós e Machado de Assis. Havendo uma marginalização injustificável na obra “Cultura”, de Dietrich Schwanitz (Dom Quixote, 2009, 12.º ed.), obra imprescindível, para alguns, o que a torna, a ser assim, mais incompreensível.
Nesta sequência, não obstante não poder ser omitida a presença fecunda do português na cultura mundial, em conjunto com o espaço intercontinental e transcontinental que ocupa, surpreende também, até agora, que não lhe tenha correspondido a aceitação que merece, sendo estranho que apenas tão poucos lusófonos tenham sido galardoados, por exemplo, com o prémio Nobel.
4. Todavia, no plano teórico e prático, a promoção e difusão da língua portuguesa a nível global, pode ser feita de modo unilateral pelos Estados, assegurando condições para a construção e consolidação da unidade nacional interna, o que é insuficiente para a criação e manutenção de um espaço alargado de língua cultural e pluricultural partilhada como património comum, pelo que uma estratégia unilateral ou bilateral dificilmente assumirá a eficácia associada a uma ação multilateral.
Nesta perspetiva e de acordo com a nova ordem internacional, a defesa dos interesses nacionais e de blocos formados pela partilha de interesses comuns pode ser, em larga medida, alcançada de modo mais célere e eficiente através da adoção de estratégias comuns, articuladas e orientadas por objetivos geridos e partilhados em plataformas constituídas por países com a mesma língua oficial, do que por via de políticas isolacionistas (objetivo ligado ao argumento de globalização).
Como língua cultural e pluricultural, com particular apetência para a comunicação, tem de estar permanentemente aberta e adequada à expressão de outros domínios, por ser também uma língua de ciência, de técnica e informatizada.
06 de setembro de 2016
Joaquim Miguel De Morgado Patrício