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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

 

   Minha Princesa de mim:

 

   Creio que é em Tintin au Pays de l´Or Noir que o nosso herói e o seu inseparável Capitaine Haddock escaqueiram as existências, em armazém, das bilhas de barro que o amigo Oliveira da Figueira ia vendendo às mulheres do sítio, para irem buscar água ao poço. Tal razia não se deveu a qualquer ataque de fúria ou mesquinha vindicta contra o simpático português que, aliás, prestável como sempre, apenas pusera as bilhas ao dispor dos dois amigos, para que, durante a noite, se fossem treinando a levá-las à cabeça... Na verdade, perseguidos pela polícia local, apenas poderiam deixar a cidade que os prendia, partindo de um poço nos limites dela, onde os aguardaria auxílio e transporte. Mas para tanto, teriam de lá chegar incógnitos, vestidos de niqab, uma espécie de burka negra, em que só os olhos se desvendam, levando à cabeça as tais bilhas com que as mulheres iam ao poço abastecer-se. Já o arguto Hergé, nos anos 50, percebia que niqab e burka podem muito bem servir de excelentes disfarces. Por isso mesmo compreendo e concordo que o porte de tal indumentária seja proibido, por exemplo, na União Europeia. Por razões de segurança, não por fobias outras, muito menos por excesso de zelo laicizante.

 

    Quanto ao chamado burkini, neologismo derivado de burka e bikini, é termo inventado pelo ocidental comércio para promover um novo artigo, novidade achada para um potencial mercado que "marketingadamente" os tais comerciantes vão criando. O efeito maior que isso me faz é dar-me riso, não vejo aí qualquer desafio civilizacional - menos ainda um choque -nem manifestação propriamente religiosa. Que umas senhoras queiram banhar-se, em cálidas águas de Verão, envergando calças justas compridas, camisa de manga até aos punhos, xaile e véu longo, parece-me, quanto muito, uma bizarra noção de conforto corporal… mas o desejo é delas, não me diz respeito! Todos nós também já vimos fotos dos nossos pais e avós, gozando as carícias do mar em elegantes estâncias de veraneio europeias, vestidos da cabeça aos pés. Eu mesmo ainda me recordo de que, já em tempos da minha mocidade, o cabo de mar verificava, nas nossas praias, se os próprios homens traziam o peito coberto, e também a extensão do pudor dos fatos de banho femininos. Na própria Câmara Corporativa, uma espécie de câmara alta da Assembleia Nacional do Estado Novo, se discutiram medidas ideais para o vestuário dos banhistas!

 

   Se, desde essa altura, nem o rigor das leis, nem alguma censura social - e religiosa! (lembras-te, Princesa, dos "guardas" que, às portas das igrejas de Lisboa, vigiavam e corrigiam a abertura dos decotes e o comprimento das mangas dos vestidos das senhoras, no Verão, à entrada da missa?) - impediram que, a médio e longo prazo, os veraneantes se fossem progressivamente despindo, quem me garante que, hoje em dia, as banhistas em burkini, muçulmanas ou não, não façam como as meninas finas do Chiado que, invejosas do penteado da violeteira, foram deixando crescer tranças pretas? No caso atualmente presente, digo, deixando decrescer tecidos e vestes?

 

   Mas talvez eu esteja enganado, quiçá venha a acontecer o inverso: antes teremos a visão aterradora de praias europeias pejadas de mulheres veraneantes vestidas, da cabeça aos pés, com pudicos trajes de banho expressamente desenhados pelos nossos "diores" e quejandos... Imagino então uma autoridade política francesa, por exemplo, um governante sóbrio e de austeros costumes, o qual, vendo-as assim, sucintas, tão pouco nuas, vai suspirando, à beira mar, como o nosso queirosiano conde de Steinbroken: C´est très grave, c´est excessivement grave!  E nas cortes hodiernas, um deputado bem republicano, radical e laico, parafraseará, sem conscientemente o saber, outra talentosa personagem do Eça (...os que, nas escolas, com mão ímpia, querem substituir a cruz pelo trapézio!...) exclamando: "Ai daqueles que, com mão ímpia, querem substituir o topless pelo burkini!". Terá razão: é que não se admite mesmo, Princesa de mim, tão insidioso ataque aos pilares morais da democrática república!

 

   Bem sei que a questão deve ser tratada de modo mais severo do que o jeito jocoso desta feita. E procurarei fazê-lo na minha próxima carta.

 

     Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira