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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

  

 

  

   Minha Princesa de mim:

 

   Continuando o que te dizia na minha carta anterior, pergunto-me, mais sisudamente, porque haverá tanta gente a indignar-se com o vestuário de mulheres de outras culturas e modas, que mais não fazem do que andarem como bem lhes parece, seja por tradição de costumes ou étnica, por convicção ou acomodação religiosa e social, ou por simples gosto e opção pessoal?

 

   Ainda por cima, muita dessa indignação é obsessiva, discriminatória e persecutória: acha-se muita graça, por exemplo, à epidemia febril de tatuagens dos futebolistas e às suas fantasias de cortes e cromatismos capilares, quotidianamente expostos pelas televisões, ou às bizarrias vestimentares de estudantes em auditórios universitários, mas aponta-se o dedo, a reclamar coação e punição, ou a alardear troça, à modesta senhora muçulmana ou freira católica, que silenciosamente passa por aí, envergando vestido ou hábito de sua escolha, este já considerado símbolo religioso ou labéu da escravização da mulher e, como tal, desrespeito pela laica e soberana república e suas leis.

 

   Em francês, pergunto: à quoi bon?  Sim, para quê? Além de mesquinhez e arrogância, não haverá aqui também abuso de poder ou posição de força, violação dos princípios fundadores da República, digo, liberté, égalité, fraternité?

 

   Até já ouvi dizer-se que o porte de véu pelas mulheres, além de inadmissível afirmação pública de um repudiável estatuto de inferioridade, era um desafio às nossas leis e instituições, uma tentativa de subversão da nossa ordem social e política! E o conhecido homem público que assim se indignava, acrescentava lembrar-se bem de um imã egípcio, entretanto expulso de França, dizer que "por causa das vossas leis democráticas, ainda havemos de vos conquistar!". O ilustre causídico interpretara tal afirmação como insinuando que a debilitação das nossas penalizações e castigos iria sustentando a destruição da nossa sociedade e civilização pelos mouros... Esquecia-se de que a fortaleza, indispensável virtude, não se confunde com a dureza, pois resistir a ameaças e superar o mal é uma conversão interior à esperança do bem, não é combater cegamente o mal pelo uso de mal maior...

 

   Já em tempos te escrevi como pensossinto que o cristianismo - que é fé na encarnação, paixão e ressurreição de Deus - tem vocação para se laicizar, isto é, para entrar na vida dos homens, como o fermento no pão ou o sal na comida. A nossa cultura, este conjunto de referências que nos guiam, é feita de valores cristãos laicizados, ou seja, tirados do cadinho em que correriam o risco de cristalizar, de perder liberdade e força atuante, tornando-se meras peças de um relicário sectário, em vez de serem sopros do Espírito no mundo. O Iluminismo deu-nos essa ajuda. Mas, por outro lado, continua a sofrer a tentação de, em progresso dialético, se encerrar num sectarismo laico e exclusivo. Tal me parece pouco recomendável, quiçá reprovável, em tempos de encontros e osmoses de povos e culturas.

 

   Finalmente, deixo-te, para ilustração e reflexão, algumas confissões de mulheres sobre o véu que trazem ou não. Porque pensossinto, mesmo, mesmo, que às próprias mulheres deve ser dada, cada vez mais e mais, a pronúncia sobre o que, ao fim e ao cabo, lhes cabe a elas, a elas sim, finalmente decidir. No islão ou na cristandade, quem discute a indumentária dos homens? Pelo menos com tão obcecada frequência...

 

   Ouvi e li, de feministas e outras, muçulmanas e não, depoimentos por e contra o porte do véu. Creio que, hoje, quiçá mais do que antes, nos calha a responsabilidade de sermos prudentes, isto é, de sermos capazes de amor sagaz. Em vez de, preconceituosamente, pretendermos intervir em tudo, deixemos as pessoas face a si mesmas e aos seus diferentes, pensarem, experimentarem e decidirem. A imposição não convence ninguém. O que cada um pode e deve impor-se a si mesmo - o que todos devemos pretender de todos - é que tudo se faça e passe em paz. Não há outra receita. Nem de outro modo a liberdade faria sentido. Os exemplos que te prometi ficam para a próxima carta. Vão desde testemunhos de freiras católicas aos de muçulmanas laicas e feministas...

 

     Camilo Maria

 

 

Camilo Martins de Oliveira